A Autodeterminação Coletiva sob Controle do Poder Judiciário

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho e professor de direito do trabalho da Universidade Federal de Sergipe (licenciado) e do IESB - Instituto de Ensino Superior de Brasília. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha, com revalidação no...
Páginas214-223

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Uma justa homenagem

O Ministro Antônio José de Barros Levenhagen alcança o vértice da carreira jurídica, como magistrado, no ápice de sua erudição e a contagiar os que usufruem o privilégio de testemunhar, dia a dia, o seu talento para a resolução de conflitos individuais e coletivos que medram, cem cessar, das relações entre o capital e o trabalho. Homem afável no trato pessoal, revela-se firme e desassombrado ao destrinçar as quizilas laborais, nos embates com os pares e interlocutores processuais. Lúcido e claro em sua argumentação, é homem do bem.

Somando-me aos que lhe querem homenagear com esta coletânea de artigos jurídicos, endereço-lhe, e aos que porventura lerem este ensaio, uma singela reflexão sobre tema que põe em eterna inquietude os que atuam o direito do trabalho: o limite de positivação normativa das convenções e acordos coletivos de trabalho. Até que ponto devemos prestigiar a negociação coletiva como modo autônomo e inexcedível de prevenção e solução dos conflitos que envolvem os sujeitos das relações de emprego? Ser ou não ser?

O controle judicial como experiência indissociável do estado democrático

A defesa de uma negociação coletiva sem qualquer limite ou controle esbarra em premissa antitética vigorosa: não há, abaixo do plano constitucional e nas democracias de nosso tempo, centros de positivação jurídica inteiramente imunes ao controle, por órgão externo1, de sua atuação normativa. Mesmo o poder constituinte somente estaria investido de soberania em seu estado inicial ou primário, como bem assinala Carlos Ayres Britto:

"Quando pronunciamos a locução ‘poder constituinte’, sem dúvida que estamos a falar de um poder genuinamente político. Mais até, estamos a falar de um poder exclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a polis, naqueles raros instantes em que a polis se sobrepõe ao Estado para dizer, por ela mesma, sob que tipo de Direito-Constituição quer viver."2

E ainda assim o poder constituinte se ressente, na atualidade, do grau absoluto de autoridade que

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o teria caracterizado em tempos outros, quando a transversalidade do princípio da dignidade da pessoa humana e a universalidade dos direitos fundamentais não se impunham, como se impõem hoje mais enfaticamente, por meio de tratados internacionais de direitos humanos. Cogitando um constitucionalismo global, anota Canotilho:

"Qualquer que seja a incerteza perante a ideia de um standard mínimo humanitário e quaisquer que sejam as dificuldades em torno de um sistema jurídico internacional de defesa de direitos humanos, sempre se terá de admitir a bondade destes postulados e reconhecer que o poder constituinte soberano criador das constituições está hoje longe de ser um sistema autônomo que gravita em torno da soberania do Estado. A amizade e abertura ao direito internacional exigem a observância de princípios materiais de política e direito internacional tendencialmente informadores do direito constitucional interno."3

Na experiência brasileira, o controle, pelo Poder Judiciário, da constitucionalidade das leis se inspirou inicialmente no modelo estadunidense que corresponde ao controle difuso, inaugurado com o caso Marbury vs Madison em 1803, e se expandiu com a adoção, a partir da Emenda Constitucional n. 16, de 1965, do modelo europeu de controle concentrado. Temos, portanto, um sistema misto que impede a proliferação de unidades normativas cujo conteúdo destoe dos princípios e valores consagrados no conjunto de normas constitucional4.

A necessidade de controle judicial se associa, naturalmente, ao garantismo das C onstituições ocidentais contemporâneas. O garantismo que parece ser, como pareceu a Ferrajoli, "a outra face do constitucionalismo". Luis Prieto Sanchís explica essa definição de Ferrajoli:

"[...] o Estado constitucional de direito expressa a fórmula política do garanstimo, o único marco institucional no qual pode prosperar o ambicioso programa garantista. Um programa cujo elemento medular consiste em uma concepção instrumental das instituições a serviço dos direitos que só se pode alcançar desde o Estado constitucional; somente esse modelo político incorpora um rigoroso ‘princípio de estrita legalidade’, que supõe a submissão do poder não unicamente a limites formais, senão também aos limites substanciais impostos pelos princípios e direitos fundamentais."5

Não estaria a negociação coletiva infensa, portanto, a essa contingência de se ajustar aos princípios e direitos fundamentais, com normatividade assegurada na Carta constitucional. As convenções e acordos coletivos de trabalho, como qualquer outra fonte de direito, devem, assim e sobremodo, amoldar-se aos lindes jurídicos do princípio da dignidade da pessoa humana, que impedem, segundo a celebrada compreensão kantiana, a prevalência de cláusulas indiferentes ao bem-estar do homem-trabalhador, à sua saúde e ao pleno desenvolvimento de sua personalidade, a pretexto de viabilizar ou favorecer a atividade econômica. Nem mesmo a manifestação do próprio titular do direito fundamental, tolerando o seu holocausto ou o sacrifício de sua dignidade, gera qualquer autorização ou esfera de imunidade para o ofensor.

A afinidade com os tratados internacionais de direitos humanos também não pode ser esquecida, dando ensejo ao que se tem denominado "controle de convencionalidade". Sobressaem as oito Convenções Fundamentais da OIT, que tratam da liberdade de associação e negociação coletiva (Convenções ns. 87 e 98), da eliminação do trabalho forçado (Convenções ns. 29 e 105), da eliminação do trabalho infantil (Convenções ns. 138 e 182) e da eliminação de condutas discriminatórias no ambiente de trabalho (Convenções ns. 100 e 111).

A limitação do conteúdo da norma coletiva de trabalho, mediante controle judicial, não afeta a força ou relevância do princípio da autodeterminação coletiva, antes o fazendo consentâneo com uma característica comum a todas as normas jurídicas, qual seja, a de compatibilizarem-se com o programa normativo e superior de matriz constitucional e com as normas internacionais cogentes.

É o que se nota, a propósito, no direito comparado. Não obstante os sistemas jurídicos estejam

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compreensivelmente inclinados a prestigiar a auto-nomia da vontade coletiva, é falso dizer que todos a autarquizem como se a vontade dos atores sociais estivesse incólume a qualquer controle de conteúdo. Em escrito recente (2004), Engels e Salas observam que na Bélgica, por exemplo, o art. 51 da Lei de 5 de dezembro de 1968 estabelece uma hierarquia das fontes jurídicas, atribuindo o grau mais destacado às "disposições obrigatórias da lei" para em seguida graduar, em linha descendente, as convenções firmadas junto a órgãos oficiais, as convenções coletivas, os contratos individuais escritos, as convenções coletivas que se declaram sem força vinculante, os regulamentos de empresa, as disposições complementares de lei, os contratos individuais verbais e, no último grau hierárquico, o costume6.

Na França, segundo Jacques Rojot, professor da Universidade de Paris II, "a relação da convenção coletiva com a lei pode resumir-se em duas proposições que estabelecem o regime básico e assim se matizam: em princípio, uma convenção coletiva não pode ir de encontro à política e à ordem públicas e pode dar aos trabalhadores vantagens mais favoráveis que aquelas estabelecidas em lei". O autor esclarece que, para os tribunais franceses, os textos legais imunizados seriam aqueles que, pelos seus termos, teriam caráter imperativo7.

O respeito às normas imperativas pelas convenções coletivas prevalece igualmente na Itália, como se extrai do texto de Bruno Veneziani:

"[...] os legisladores consideram que uma convenção coletiva é um instrumento mais adequado e flexível, aberto a soluções inovadoras mais próximas às situações e aos problemas específicos. Alguns exemplos da ‘integração funcional’ entre a legislação e a autonomia coletiva são visíveis: 1) no caso das funções derrogatórias, é dizer, quando a lei autoriza às partes coletivas derrogar normas legais quase obrigatórias; 2) no caso da função integradora, quando a lei permite que o acordo integre a norma legal; 3) no caso das cláusulas legais complementares que somente se aplicam à falta das que fixam as convenções coletivas; 4) no caso de um paralelismo das instituições que atuam sobre um mesmo tema, como no caso em que a lei autoriza que a convenção coletiva regule um tema. Mas, ao mesmo tempo, a lei cria um órgão público administrativo: a) para controlar o respeito às normas imperativas e b) para substituir as partes privadas quando fracassa um acordo."8

Também Asscher-Vonk, a propósito da oponibilidade da norma imperativa nos Países Baixos, assinala que ali "as convenções coletivas têm que cumprir os requisitos gerais dos acordos. Especial-mente importante é que não podem ser contrários às disposições obrigatórias da legislação nacional ou europeia (igualdade salarial). Se as cláusulas de uma convenção coletiva são contrárias às disposições obrigatórias, são nulas de pleno direito"9.

Em suma, são muitos os povos que atentam para a inaptidão das normas coletivas para vulnerar direitos mínimos que, assegurados em lei ou em tratados internacionais, emprestam identidade e conteúdo jurídico ao princípio da dignidade da pessoa humana. Falta verificar, porém, a que tipo de controle pode se submeter a convenção ou o acordo coletivo de trabalho, ante a sua característica...

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