Transversalidade da ação coletiva: a experiência em redes como possibilidade de crítica e publicização

AutorAlexandre Almeida de Magalhães
CargoDoutorando em Sociologia. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
Páginas325-357

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Introdução

P objetivo deste artigo situase na observação do modo como os atores sociais são capazes de constituir uma ação coletiva, mesmo confrontados e inseridos em certos contextos que tornam sua atuação precária, procurando apontar as questões levantadas nas lutas por eles empreendidas e como a partir de determinadas

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demandas específicas uma ação coletiva pode ser constituída1. Além disso, o que interessa fundamentalmente a este trabalho é o processo de publicização (FREIRE, 2005) de certas demandas particulares e o acesso ao espaço público realizados por estes atores. O que se coloca aqui é a construção efetuada por estes de um processo que é capaz de tornar uma demanda particular em um problema público, passível de generalização e dos recursos que necessitam ser mobilizados neste processo. Pensar a transformação de um problema considerado privado a certos grupos em um problema que solicite uma resposta pública envolve levar em consideração que “esta ascensão ocorre durante um processo de apropriação do assunto por um determinado grupo que se considera responsável por fazer algo para resolver este problema” (ibid, p. 41).

Ao ressaltar o processo de publicização e o como dos atores sociais, pretendo romper com uma perspectiva que analisa a ação coletiva pelo signo da falta, isto é, ou pelo que os movimentos não têm ou pelo que eles deveriam ser. Mais ainda, ao ressaltar o como dos atores pretendo operar numa chave analítica que considera as capacidades destes em fazer uma crítica (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999) e os argumentos que eles acionam para definir e justificar uma situação que eles considerem como sendo injusta.

Para a compreensão da capacidade dos atores sociais em realizar uma crítica e definir uma dada situação como sendo injusta, partirei das contribuições do pragmatismo francês2, notadamente a produção que Luc Boltanski (e também Laurent Thévenot) nos oferece para o entendimento do como dos atores em relação. Segundo os autores, o terreno empírico sobre o qual começaram a trabalhar eram as disputas nas quais as pessoas trocavam críticas e elaboravam justificações. A intenção era construir um quadro que

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permitisse explicitar e unificar os constrangimentos que pesavam sobre a crítica e sobre a justificação. O objetivo principal era “sair” da sociologia crítica, suspender a posição crítica do sociólogo a fim de obter os meios para tomar a atividade crítica desenvolvida pelas pessoas ordinárias como objeto de uma Sociologia. A finalidade era a de fazer uma sociologia das competências críticas que as pessoas colocam em prática em sua vida cotidiana3 e, desta forma, procurar construir um quadro de análise das críticas e das justificações constituídos no curso das disputas.

Boltanski (2008) ressalta que a Sociologia teria, portanto, como tarefa principal explicitar, clarificar e, quando for possível, modelizar os métodos colocados em prática no mundo social para fazer e refazer os laços. Neste sentido, a Sociologia seria tratada como uma disciplina de “segundo ordem” que apresenta (em certo formato submetido a uma exigência de ordem e clareza) uma competência que seria aquela dos próprios atores. A sociologia atingiria então seu objetivo quando ela criasse um quadro satisfatório de competências sociais dos atores.

Ao invés de definir agentes por meio de atributos estáveis, de lhes assinalar interesses e disposições inscritas em seus próprios corpos capazes de gerar intenções objetivas e não conscientes, e de se propor a tarefa de explicar a ação desses atores quando confrontados com obstáculos exteriores, esta abordagem sociológica demonstraria de que modo os atores elaboram discursos sobre a ação4.

As questões acima apresentadas são de suma importância, pois o objetivo fundamental desta sociologia (também chamada de “sociologia da crítica”) seria a de considerar que, em certas situações, especialmente aquelas em que as relações de força estão relativamente equilibradas, impõese às pessoas uma exigência de

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justificação. O modelo se apóia na analise das justificações dadas pelos atores e, por isso, apresentase como sendo um modelo de competência. Esta competência não seria somente a da linguagem, mas também aquela que deve tanto permitir formar argumentos aceitáveis em termos de justiça quanto construir objetos, dispositivos duradouros cujo ajustamento pode ser comprovado. Com efeito, para evitar que as pretensões de justiça apresentadas em uma dada situação de disputa não se reduzam a manobras associadas à defesa de interesses particulares ou a ilusões sem fundamento, seria necessário mostrar de que forma estas pretensões satisfazem condições de validade que são passíveis de tolerar uma exigência de universalização (BOLTANSKI, 2000).

Como afirmam Breviglieri e StavoDebauge (1999), o modelo proposto por Boltanski (e também por Laurent Thévenot) permitiria descrever, sem mudar o registro da descrição, as operações cognitivas e morais colocadas em prática pelos atores para denunciar uma injustiça. Segundo Boltanski (2000), o interesse seria proporcionar um modelo que seja capaz de apontar as operações através das quais se entregam os atores sociais quando se orientam à justiça e dos dispositivos sobre os quais podem se apoiar, nas situações concretas em que se desdobram suas ações, para fundamentar desta maneira suas pretensões de justiça.

Neste sentido, e para tornar factível a interpretação do processo de publicização supracitado, irei trabalhar com a seguinte chave metodológica para a compreensão da ação coletiva: redes (ou teias) de movimentos5. Tal perspectiva é importante para os objetivos deste trabalho, haja vista que pretendo realizar um esforço analítico para apresentar uma determinada experiência de ação coletiva levada a cabo por moradores de favelas: a que se estrutura a partir da crítica a violência policial. Portanto, o eixo que permitirá

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descrever e interpretar os inúmeros agenciamentos e articulações que são tecidos pelos diversos grupos que lutam contra a violência policial na cidade do Rio de Janeiro será o formato assumido por essa experiência: o formato em rede.

1. O formato em rede: a construção da ação coletiva

Pensar a constituição dos movimentos sociais na contemporaneidade remetenos ao fato de considerálos inseridos em um ambiente conflitivo cambiante que leva os atores coletivos a oscilarem entre o que Doimo (1995) denominou, por um lado, da face expressivodisruptiva e, de outro, da face integrativocorporativa destes movimentos. Além disso, segundo a mesma autora, estes não surgiriam mais a partir das contradições entre capital e trabalho, mas sim nos interstícios do Estado, do mercado e da cultura, possuindo uma base social não homogeneizada, pelo contrário, dispersa e volátil. Em face disto, gostaria de ressaltar o fato de que o formato constituído pelo movimento aqui analisado (isto é, o formato em rede) é uma chave para compreender a forma pela qual um conjunto determinado de indivíduos decide agir coletivamente e transformar uma demanda social específica (segurança) em uma ação coletiva e a partir desta tornar público (com pretensões à generalidade) um problema particular a certos segmentos da sociedade.

A análise da ação coletiva a partir do formato em rede, considerando o aspecto intricado de sua constituição, levanos a considerar o fato de que a mobilização coletiva se constitui e se efetiva de múltiplas maneiras e a partir do acionamento de inúmeros “pontos de apoio”. Estes ora se referem a um conjunto de atores e grupos que se articulam a partir das mesmas questões e possuem uma “vivência comum dos problemas”, ora se referem a um conjunto de atores e grupos que, mesmo não tendo a mesma experiência com certos problemas, atuam na possibilidade de operarem como articuladores e “canais de transmissão” entre grupos e instituições. Estes “pontos de apoio” também poderiam ser observados no interior do aparato do Estado, posto que a maneira de atuação em rede seria capaz de acionar indivíduos pertencentes a este de forma a integrálos, de alguma maneira, à construção da luta.

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A importância da análise da ação coletiva a partir do formato em rede, seguindo Marques (2006), situase no fato de que esta perspectiva estaria localizada em um “plano de análise intermediário”, visto que operaria a dicotomia entre ação e estrutura tentando superála no sentido de considerar o caráter simultâneo dessas duas dimensões da existência social. A unidade de análise empregada são as relações estabelecidas entre indivíduos e entre grupos (LAVALLE et alli, 2007), e, num movimento que ora se expande, ora se retrai, dependendo de determinadas circunstâncias (como por exemplo, a capacidade e a disponibilidade para a organização de certos indivíduos), entre indivíduos e grupos, e entre esses e instituições do Estado6.

O estudo das redes se torna importante a partir do momento em que permite compreender a atuação dos atores sociais em seus contextos relacionais, no fluxo das relações estabelecidas entre eles e diversos grupos e instituições, as disputas surgidas destas interações, as dificuldades para o estabelecimento de alianças, e fundamentalmente a possibilidade de observar as estratégias a partir das quais esses atores em movimento elaboram para transformar, ao acionar um “ponto de apoio” numa dada rede (ou em várias delas simultaneamente), seu problema particular em um problema público.

Com efeito, é necessário chamar a atenção para o fato de que as relações estabelecidas e as posições ocupadas nas redes...

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