A coleção de tours de atas do concílio de éfeso (431): um testemunho carolíngio de ressignificação doutrinária e circulação de textos no mediterrâneo tardo antigo

AutorRobson Murilo Grando Della Torre
CargoDoutor. Professor adjunto, Universidade Estadual de Montes Claros, Centro de Ciências Humanas, Departamento de História, São Francisco, MG, Brasil
Páginas60-77
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 59-77, jan./abr. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e70231 60/156
RESUMO
Este trabalho visa compreender a multiplicidade de sentidos e experiências históricas que se cruzam
no manuscrito latino conservado na Bibliothèque Nationale de France sob o número 1.572, outrora
conservado em Saint-Martin de Tours e que preserva uma coleção de “atas do concílio de Éfeso (431)”
nomeada a partir dele. Defendo inicialmente a própria desconstrução da ideia de que o concílio de
Éfeso tenha produzido atas em sentido estrito, alinhando-me às ideias de Eduard Schwartz acerca
tanto do faccionalismo desse encontro como do caráter propagandístico das coleções documentais
produzidas pelos partidos em choque nesse momento e por novos grupos eclesiásticos que deram
novos sentidos à disputa cristológica após o concílio de Calcedônia (451). Passando em revista, em
seguida, pela recepção do debate efesino no Ocidente latino, procedo a uma breve descrição dessa
dita coleção de Tours, levantando hipóteses sobre a datação e o local de seu arquétipo (segundo quarto
do século VI em Constantinopla). Por m, voltando-me ao contexto da Gália, ofereço uma hipótese de
transmissão da coleção por meio de um itinerário mediterrânico associado à dita controvérsia dos Três
Capítulos, concluindo que sua recepção e produção no período carolíngio se deu tanto por meio da
recuperação de sentidos produzidos ao longo dessa longa e difusa cadeia de transmissão mediterrânica
quanto por novos interesses e necessidades que surgiam nesse momento na Gália carolíngia e que
não necessariamente se vinculavam à polêmica cristológica.
PALAVRAS-CHAVE
Concílio de Éfeso (431). Coleções canônicas medievais. Tours.
ABSTRACT
This paper aims to understand the multiplicity of historical meanings and experiences that intersect in the
Latin manuscript preserved in the Bibliothèque Nationale de France under the number 1572, formerly
preserved in Saint-Martin of Tours and that preserves a collection of “acts of the Council of Ephesus
(431)” named after it. Firstly, I support the very deconstruction of the idea that the council of Ephesus
produced acts in a strict sense, aligning myself with Eduard Schwartz’s ideas on both the factionalism of
this meeting and the propagandistic character of the documental collections produced by both clashing
parties at that time and by new ecclesiastical groups that gave new meanings to the Christological
dispute after the council of Chalcedon (451). Then, I review the reception of the Ephesian debate in
the Latin West, proceeding to a brief description of this so-called collection of Tours, raising hypotheses
about the dating and location of its archetype (second quarter of the 6th century in Constantinople).
Finally, turning to the context of Gaul, I oer a hypothesis of transmission of the collection through a
Mediterranean itinerary associated with the so-called Three Chapters controversy, concluding that its
reception and production in the Carolingian period was through the recovery of meanings produced
along this long and diuse chain of Mediterranean transmission as much as through new interests
and needs that arose at that time in Carolingian Gaul and which were not necessarily linked to the
Christological polemic.
KEYWORDS
Council of Ephesus (431). Medieval canonical collections. Tours.
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 59-77, jan./abr. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e70231
A Coleção de Tours de atas do concílio de Éfeso (431)
61/156
Um dos preceitos dos estudos que envolvem a produção doutrinária antiga e
medieval na atualidade diz respeito a seu caráter não essencialista e não
imanente. De acordo com ele, não há nada de eterno, imutável e universal
nas proposições de qualquer autor ou tradição de pensamento cristão que seja. Pelo
contrário, a ênfase atual recai sobre o enraizamento da produção teológica desses
personagens em seus referenciais históricos, losócos e geográcos próprios,
articulando, assim, a doutrina à experiência de vida e à realidade político-social
vivenciada por cada um deles.
Esse preceito tem sido fundamental para a desconstrução da ideia de heresia
como um desvio doutrinário cuja existência apenas ou serviria para chancelar a
autoridade do pensamento dito ortodoxo, entendido como ontologicamente verdadeiro
ou correto, ou marcaria estágios diversos de entendimentos incompletos e imperfeitos
sobre a fé verdadeira. Todavia, o alcance e a repercussão dessas novas perspectivas
de trabalho ainda custam a se fazer sentir no estudo das múltiplas manifestações de
doutrinas tidas como ortodoxas na história do pensamento cristão. Dito de outro modo,
é aceito com relativa facilidade na historiograa que não há nada de essencialmente
herético ou desviante nas dezenas de correntes arianas dos séculos IV e V, e que
sua marginalização frente a tradições niceístas se deve, em grande medida, ao
contexto histórico da época – e não há uma maior ou menor coerência losóca de
suas proposições. Entretanto, o estudo da pluralidade de ideias dentro de correntes
ditas ortodoxas no mesmo período ainda caminha a passos lentos, e isso se agrava
quando empreendemos uma compreensão da doutrina em sua longa duração ou
mesmo quando investigamos seu desenvolvimento em espaços distintos.
A meu ver, essa é uma questão importante porque a doutrina, assim como
qualquer outro produto da ação humana, assume formas variadas conforme se
transformam as condições históricas em que é recebida e posta em uso. Ademais,
por mais que certa concepção religiosa tenha assumido uma posição hegemônica
em boa parte das comunidades cristãs em um dado momento, isso não garante que
as comunidades de épocas futuras a aceitem de forma inalterada. Digamos que seja
preciso que essa crença passe por um processo contínuo de atualização nos casos
em que de fato estende sua hegemonia sobre formas de pensamento concorrentes, e
que tal atualização por vezes implique o surgimento de rupturas ou inovações frente
ao pensamento original.
No texto que se segue, procuro aplicar as preocupações aqui expostas para um
estudo de caso centrado na materialidade da transmissão doutrinária e na produção
de uma memória sobre certa concepção tida por ortodoxa durante a Alta Idade Média,
ainda mais pensada em diferentes espaços conectados do Mediterrâneo nesse
período. Parto aqui de uma cópia latina das ditas “atas do concílio de Éfeso (431)”,
produzida muito provavelmente na abadia de Saint-Martin de Tours, na segunda
metade do século VIII, hoje conservada em Paris. A produção dessa cópia em um
contexto histórico e geográco bastante diferente daquele que suscitou a polêmica
entre Cirilo de Alexandria (bispo entre 412 e 444) e Nestório de Constantinopla (bispo
entre 428 e 431) é tão mais signicativa porque essas ditas atas foram preservadas
em dezenas de formas diferentes nas mais diversas línguas do cristianismo
mediterrânico desse período. A versão de Tours, para surpresa ainda maior, é única
em seu conteúdo e na organização do material, ainda que algumas partes tenham
sido recuperadas por coleções canônicas posteriores. Por mais que sua transmissão
do Oriente para o Ocidente possa ser explicada por uma série fortuita de acidentes,

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