Codificação, decodificação, recodificação: a empresa no código civil brasileiro

AutorRachel Sztajn
Páginas11-20

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Introdução

Qual a lógica dos legisladores que, em 2002, aprovaram a Lei n. 10.406, unificando o direito das obrigações até então disciplinado em dois códigos de direito privado? E, em face de tal unificação, o que explica a manutenção e a aprovação subsequente de leis especiais ou extravagantes?

O vigente Código Civil Brasileiro, baseado em anteprojeto de 1975, vale dizer, elaborado antes da aprovação da Constituição da República de 1988, que, diz-se tem filiação no Códice Civile de 1942, não foi nem tão longe quanto este, nem teve alguns cuidados seguidos pelo legislador italiano da época. Por exemplo, a inclusão da atividade empresária na lei civil, não especifica, com clareza, como na Itália, quais são as atividades comerciais, o que dá margem a alguma confusão.

Demais disso, anote-se o significativo lapso temporal que medeia entre a última versão do1 anteprojeto e a redação final do Código Civil, sem que se atentasse para as significativas mudanças da base social sobre-a qual a lei se aplica, o desenvolvimento da economia incluído o agronegócio, com o que deixaram de ser pensados os incentivos corretos para que as fricções sociais fossem reduzidas.

E, como aquela Constituição ampliara não apenas os direitos individuais, mas recepcionou os coletivos, muitos não previstos nos antigos Códigos Civil e Comercial, a edição de leis especiais, que alguns denominam estatutos, deu origem ao que Natalino Irti discute em L'Età delia Deco-dificazione, isto é, a criação de microssis1 temas normativos. Essa proliferação de normas "especiais, discutida pelo jurista italiano em publicação de 1978, aborda a questão dos microssistemas, importante transformação no que diz respeito à ideia de códigos, ou seja, a organização sistemática de regras dispondo, de forma compreensiva, sobre o direito oú áreas do direito.

Se o fenómeno da decodificação, tal como apontado por Irti, estiver esgotado, então é provável que outra etapa do processo legiferante esteja em curso, a da recodificação. Em assim sendo, que vantagens há em unificar o direito das obrigações? A especialidade da legislação comer-

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cial é preservada desde que disciplinada em normas extravagantes ou microssistemas. Talvez melhor fora manter os dois códigos de direito privado como se dá na expressiva maioria dos países da Europa continental. E, no que diz respeito aos princípios fundamentais do Código Civil, será plenamente compatível com o escopo e função, sua aplicação à matéria do Livro II - Do Direito de Empresa?

Essas são algumas questões que o texto procurará responder.

1. Codificação

Os modernos códigos são produtos de processo histórico único, impulsionado pela Revolução Francesa de 1879, de que resultou a queda da monarquia absolutista e se alterou o polígono de forças, numa luta de classes na qual a burguesia prevaleceu.

A tomada do poder por Napoleão, porém, em certa medida, correspondeu a um retorno ao ancien regime e Napoleão, vitorioso, tratou de encontrar mecanismos legais para controlar as relações entre particulares. Para tanto, nada melhor do que códigos, estruturas normativas completas, claras e que impediam os juizes de fazer leis, eliminar costumes locais e privilégios de classes. Argumento interessante é que a existência de normas únicas representava a certeza e segurança para os agentes ao eliminar o desconhecido, o poder do juiz que não se limitava a aplicar a lei, mas julgava segundo critérios pessoais e classistas. Dos vários códigos aprovados no período na-poleônico, dois são os de direito privado: o civil, que entrou em vigor em 1804, e o de comércio, de 1807, ambos com o escopo declarado de reformar o sistema francês de acordo com os princípios da Revolução.

A ideia era ter leis completas, sem lacunas, claras e coerentes. A associação do Code Civil des Français ao Cor pus Júris Civilis de Justiniano resulta de que a estrutura e a organização das matérias seguiram aquele modelo.

Esses códigos, ditos de primeira geração, reconhecem direitos individuais, entre os quais a propriedade privada, a apropriação privada dos resultados da ativida-de económica, a igualdade, conquanto formal, das pessoas, os cidadãos. Não estranha, pois, que, com base no fim dos privilégios e na clareza das normas legais, outros países europeus e latino-americanos, colónias ou antigas colónias europeias, ado-tassem normas à semelhança daquelas francesas, pois é inegável a importância da ideia de igualdade entre sujeitos, da certeza e segurança de que não haveria privilégios de classe e de que as pessoas, antecipadamente, saberiam quais os efeitos e consequências de suas ações. Diz-se que com a codificação subsequente à Revolução de 1789 passa-se do status ao contrato.

No Brasil, depois da Independência, em 1850, foi aprovada a Lei n. 556, o Código Comercial, assim como os Regulamentos ns. 737 e 738. O Regulamento n. 737, no art. 17, definia as matérias de competência dos Tribunais de Comércio, enquanto que a Lei n. 556/1850, disponha sobre a qualificação do exercente de tal atividade, o comércio, contratos mercantis, a organização das sociedades mercantis, o comércio marítimo, entre outras.

Lembre-se que na elaboração das leis comerciais, tal como fizera Napoleão, colaboraram práticos, operadores comerciais o que, talvez, tenha dado aos textos, a par do pragmatismo, uma flexibilidade que não se imaginaria no sistema codificado e disso é exemplo o art. 121 da lei revogada. Práticas comerciais das diferentes praças, usos e costumes, serviam à interpretação e diria eu, completamento dos contratos mercantis. E, mesmo depois da aprovação do Código Civil de 1916, no que tange a contratos e obrigações, essa lei só seria aplicada, supletivamente, depois dos usos e costumes mercantis na interpretação dos negócios.

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Esse texto, de extrema relevancia para o exercicio de atividades económicas em que contratos de execucao continuada ou de execucao diferida sao comuns falta no novo Código Civil. O que parece grave nessa ausencia e que, de um lado usos e costumes mercantis a par de facilitarem a realizacao de operacoes e de conterem os elementos que ao depois acabam sendo recepcionados nas normas positivadas tambem refletem o germe de instituicos tipicas de certas pracas e/ou sectores da economia que adotadas pelos comerciantes na linha da universalizacao do direito mercantil reduzem custos de transacao.

Pode-se dizer que os usos e costumbes servem para harm,onizar o direito posto com as instituicoes que aos poucos sao criadas e modeladas pelas personas pois o direito e um sistema aberto que influi e influencia do pela sociedade sobre a queal incide.

E, por ser un sistema aberto e importante que mesmo no direito codificado haja espaco para mudancas. Diz se que as clausulas abertas que facultam aos juizes interpretarem o direito, sao um desses mecanismos. Contuido, diante da assimetroa informacional entre juiz e interessados, isso pode nem sempre ter o resultado visado.

De toda sorte, as codificacoes, tal como propostas ao longo do seculo XIX, deixaram de atender as demandas das sociedades pelo que se pasa a aprovacao de leis extravagantes que dispoem sobre materias especificas ao lado e a margem dos codigos no processo que Irti denominou decodificacao.

Como argumento central, apresenta-se o reconhecimiento de que os códigos estariam desatualizados e que as Constituicoes europeias aprovadas apos o termino da 2a. Guerra Mundial, por contemplarem direitos inexistentes nas codificacoes do seculo XIX, se tornaram o centro dos sistemas juridicos. Com isso, abriu-se espaco para la producao de normas estranhas aos codigos os microssistemas e, portanto, para a decodificacao.

2. Decodificação

Decodificação e o processo derivado da proliferacao de leis especiais estranhas ao corpo dos códigos o que indica fissuras naquele corpo de leis que se imaginava...

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