A Cláusula Geral da Função Social como Norma de Invalidade dos Contratos

AutorGerson Luiz Carlos Branco
Páginas6-22

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A transformação ocorrida no final do século XX e início deste no âmbito da liberdade contratual foi o afastamento definitivo da clássica regra do direito francês (reproduzida no art. 145 do Código Civil de 1916), segundo a qual não há nulidade sem previsão legal (pas de nullité sans texte), para um novo paradigma, baseado na construção de cláusulas gerais de controle da invalidade dos negócios jurídicos e dos contratos em especial, pelas quais tais estruturas visam a realizar uma concepção de liberdade contratual funcionalizada, abandonando o modelo estrutural que predominou no período anterior.

Além de uma regra de abertura como a do art. 166, VII do Código Civil, o ordenamento pátrio contém outras disposições também abertas tratando sobre hipóteses de invalidade não descritas expressamente na lei, como é o caso do ca-put do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor. Em situação similar à disposição do artigo 421, que é o objeto deste artigo, também está a regra do art. 422 do Código Civil, que atribui caráter invali-dante à boa-fé objetiva, conforme largamente reconhecido pela jurisprudência.

Essa transformação traz como razões da invalidação dos contratos a incompatibilidade entre o conteúdo do preceito negocial e o ordenamento jurídico que lhe recepciona. Trata-se de uma reação do ordenamento em razão do que Joaquim de Souza Ribeiro chamou de "inoperância funcional da autonomia privada" quando analisa o papel da boa-fé como norma de invalidade1. A cláusula geral da função social é similar à da boa-fé objetiva no que respeita ao controle de conteúdo do contrato, mas se separa desta por não se poder afirmar que a função social seja uma cláusula de proibição tal qual a da boa-fé, que embora não permita a definição em abstrato, permite a identificação de preceitos de conduta nas hipóteses de sua incidência.

A função social, por não ter sido reconhecida como princípio jurídico, mas como uma das dimensões essenciais para o exercício válido da liberdade contratual, não incide, já que não possui estrutura normativa externa em dimensão afastada da liberdade contratual, tal como a boa-fé.

A imbricação entre liberdade contratual e a aptidão para que os atos de seu exercício realizem dos fins que lhe são inerentes atribuem à funcionalidade um papel integra-tivo do contrato, sem a qual este não será válido.

É claro que isso traz o questio-namento sobre como aplicar a função social como norma de invalidade, reflexão central deste texto.

Deixa-se de lado as concepções que consideram a função social em simples limite da autonomia privada, e portanto mero instrumento de controle da liberdade de estipulação2, assim como este artigo afasta-se do discurso jurídico-político

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pela realização de uma suposta justiça social, em face de um alargamento exagerado da funcionaliza-ção que transforma a cláusula geral da função social dos contratos em verdadeira norma em branco, retirando suas peculiaridades dogmáticas.

Por isso, este artigo busca traçar elementos para construir dog-maticamente os parâmetros que permitam entender a incidência do art. 421 do Código Civil brasileiro como norma de invalidade, levando em consideração as regras a respeito da invalidade e ineficácia no contexto atual da funcionalização do contrato.

I Da invalidação de negócios jurídicos pelo controle dos fins

Problematizar invalidade e funcionalidade depende do exame de dois aspectos centrais. O primeiro (1.1) é a relação entre função e finalidade no direito privado contemporâneo; e o segundo (1.2) é a atribuição ao contrato de uma "fac-tualidade social" que o transforma, em certa medida, em referência para a produção das regras para definir as hipóteses de invalidade por problemas em sua funcionalidade.

A Função e finalidade

A última década tem se caracterizado por uma tendência de aumento contínuo da complexidade da vida social. Quanto mais avança a tecnologia da informação e aumentam os níveis de interação social, tanto nos ordenamentos nacionais quanto no plano internacional, mais o legislador tem usado da técnica legislativa das cláusulas gerais e do recurso à funcionalização, superando o debate de meados do século passado que contrapunha estrutura e função do direito3.

Parte-se das ideias de Bobbio ao considerar que a amplitude da autonomia privada no Estado Liberal corresponde a uma função pro-mocional da atividade econômica e da circulação de bens. Limitar a liberdade contratual é restringir a esfera do "deixar fazer": restringir coativamente a liberdade de agir está de acordo com a função pro-mocional, pois estimula os particulares a realizar as atividades que continuam não proibidas4.

Seguindo a linha do pensamento de Bobbio, o modelo jurídico da funcionalização da liberdade contratual é instrumento promo-cional de ações que estejam de acordo com a principiologia do ordenamento; portanto, com a função coativa de proibir contratos no âmbito da circulação de bens contrários aos interesses sociais, ou de estimular contratos que estejam conforme os interesses sociais. Ou, segundo apresenta Francisco Amaral, a funcionalização significa que o Estado se preocupa com a eficácia social de determinado instituto jurídico, que, no caso dos contratos, representa seu condicionamento à utilidade social que a circulação de bens pode represen-tar5.

Por isso, o contrato é considerado meio, instrumento ou até mesmo processo para que sejam alcançados determinados fins6. A funcionalização da liberdade contratual se dá como parte do processo de funcionalização do direito privado, que tem em seu cerne uma concepção de autonomia privada que nas palavras de Betti, "tal como os direitos subjetivos, também os poderes de autonomia, efetivamente, não devem ser exercidos em oposição com a função social a que são destinados..."7

Função e finalidade acabam exigindo um pequeno parêntese não só pela sua presença em todas as discussões acerca da funcionalidade, mas, em especial, porque no direito brasileiro acabaram assumindo papéis distintos em relação ao tratamento da invalidade e da ineficácia, por força da utilização de tais expressões na regulamentação de diversas matérias, em especial nos artigos 187 e 421 do Código Civil brasileiro. O primeiro trata da "finalidade econômica e social" dos direitos e o segundo da "função social" dos contratos.

A distinção entre "função" e "finalidade", quando seguidas da adjetivação social e econômica, pode levar a uma verdadeira confusão, que precisa ser esclarecida, já que parece muito similar, senão idêntico, afirmar que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites de sua finalidade social, assim como de sua função social.

Evidentemente que, ao fazer uma análise da função, não se pode esquecer a importância do adjeti-vo "social", tendo em vista que a cláusula da função social tem por principal objetivo realizar o princípio da socialidade. Apesar disso, a análise da função é indispensável para que se possa dimensionar tecnicamente o âmbito de incidência do artigo 421, com a finalidade de se evitar que o "social" seja o abrigo da utilização indiscriminada da cláusula geral8.

Sempre que se faz uma análise normativa e se busca a "função" de determinado instituto, esta é feita por meio da identificação de sua "teleologia". Em outras palavras, uma análise funcional busca descobrir "para que coisa o direito serve" e não "como é feito o direito"9.

Isso pode ser visto desde as primeiras manifestações da função social, a partir do pensamento de Jhering, Cimbali, Betti, Roppo etc.10, que evidenciam a vincula-ção entre a análise funcional e o estudo da finalidade dos institutos e modelos jurídicos.

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Saber para que serve uma coisa significa buscar saber qual é sua finalidade e, portanto, sua função.

Função e finalidade não são sinônimos; estão vinculadas a um mesmo fenômeno, que é o estudo dos modelos jurídicos a partir das consequências que podem ser produzidas.

Enquanto a noção de função é usada para descrever o caráter instrumental do modelo, que serve para determinados fins, a expressão "finalidade" descreve os próprios fins para os quais o instrumento deve ser usado.

Em outras palavras, a diferença entre o estudo da função social e da finalidade econômica e social está na perspectiva do jurista na análise do fenômeno jurídico em relação aos resultados práticos do ato: o jurista que estuda a função tem seu foco sobre o instrumento para alcançar determinados fins, verificar se o instrumento está servindo para fins predeterminados, sua validade e eficácia condicionada pela funcionalidade; o jurista que estuda os fins tem seu foco sobre os efeitos, não pela contraposição ao instrumento, mas em relação à norma que predetermina os fins a serem alcançados pelo instrumento.

E nesse aspecto temos uma divisão clara no que concerne à forma como a funcionalização afeta o estudo da própria teoria dos negócios jurídicos e dos mecanismos de controle da validade e eficácia dos contratos.

Tem utilidade estudar a função social dos contratos porque o conteúdo dos direitos e deveres é definido por um ato de autonomia. É relevante controlar o cumprimento ou não da função social, para que se possa valorar o preceito nascido a partir da declaração negocial e se identifiquem os efeitos visados pelas partes e...

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