Clássicos e novos desafios à generalização da inclusão social na ordem capitalista, relativamente ao Direito Previdenciário

AutorÉrica Fernandes Teixeira
Ocupação do AutorDoutora e mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas
Páginas118-160

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O cenário de exclusão social que assombra o nosso país é em grande parte resultado da resistência à implementação e à generalização de políticas públicas que objetivem a melhoria do padrão de vida dos trabalhadores, em especial, os de baixa renda. Assim é que, tal como vivenciado pelo Direito do Trabalho, os institutos do Direito Previdenciário também são alvo de críticas, o que contribui para obstaculizar sua afirmação como universal e eficaz instrumento de inclusão econômico-social no sistema capitalista.

A trajetória das políticas públicas brasileiras ao longo da história foi marcada por atuações autoritárias, evidenciando, um descompromisso com a promoção da distribuição de renda e justiça social para todos os cidadãos. Assim, podemos afirmar que a justificativa para os entraves à difusão do Direito Previdenciário muito se relaciona àquelas expostas no capítulo três deste estudo, guardando forte semelhança com as razões de oposição à generalização do Direito do Trabalho. Isso porque, além serem ambos ramos sociais do direito, direcionados à plena promoção da pessoa humana, proporcionam também a potencialização do indivíduo no cenário socioeconômico. Através da difusão "do mais importante veículo de afirmação socioeconômica da grande maioria dos indivíduos componentes da sociedade capitalista": (DELGADO, 2005, p. 29) a relação de emprego - o cidadão é conectado à proteção do Direito Previdenciário, visto que se trata de um regime obrigatório, a teor do que prevê o art. 201 da Constituição Federal.1

A imperiosidade da vinculação ao regime geral de previdência social para todos os empregados é certamente uma garantia coerente com o avanço da democracia, consolidada no Estado Democrático Brasileiro. Como demonstrado no capítulo 1, item 1.2, o intervencionismo estatal visando, essencialmente, à proteção à pessoa humana é característica fundamental do Estado Democrático de Direito. Assim, deve ser o caminho a ser percorrido pela sociedade brasileira na busca da democratização de poder. Nesse sentido, as brilhantes palavras de Delgado:

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[...] grande parte das noções normativas de democratização da sociedade civil (e, em certa medida, também o Estado), garantia da dignidade da pessoa humana na vida social, garantia da prevalência dos direitos fundamentais da pessoa humana no plano da sociedade, subordinação da propriedade à sua função social, garantia da valorização do trabalho na atividade econômica e do primado do trabalho e especialmente do emprego na ordem social, desmercantilização de bens e valores cardeais na vida socioeconômica e justiça social, em suma, grande parte das noções essenciais da matriz do Estado Democrático de Direito estão asseguradas, na essência, por um amplo, eficiente e incisivo Direito do Trabalho disseminado na economia e sociedade correspondentes. (DELGADO, 2011, p. 1.167)

A relevância do Direito do Trabalho no Estado Democrático de Direito, já exposta neste trabalho, revela, na mesma medida, a magnitude do Direito Previdenciário. Como direitos sociais, ambos se complementam na promoção da pessoa humana, obviamente, por meio de suas respectivas funções próprias e distintas.

No Brasil, o Estado Democrático de Direito vivenciou consideráveis avanços protagonizados pelas políticas sociais. Porém, certo é que muitos desafios à efetivação do verdadeiro papel inclusivo inerente ao Direito Previdenciário ainda precisam ser superados ou mesmo desmistificados.

6.1. A hegemonia do pensamento econômico liberal

A generalização do neoliberalismo como pensamento econômico fomenta a supremacia da economia privada prevalecendo sobre a normatividade pública e a autoridade estatal. Também incentiva o sucesso do capital financeiro especulativo, devendo as regras estatais se adequarem ao êxito dessas práticas comerciais. Propõe a redução de gastos do Estado, o recuo das políticas sociais, inclusive previdenciárias, em favor da livre atuação do mercado de bens e serviços. (DELGADO, 2005, p. 19).

A generalização desse pensamento foi alcançada em razão de uma convergência de fatores e agentes, em especial, graças aos esforços de organismos internacionais de grande influência no cenário político e econômico, como o Banco Mundial (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Organização Mundial do Comércio (OMC), dentre outros. (DELGADO, 2005, p. 19).

A difusão dos ideais neoliberais também recebeu notória contribuição de palestras, cursos, debates que sempre se incumbiam de prescrever receituários de políticas a serem adotadas pelos países dependentes, a exemplo do Consenso de Washington. A generalização do pensamento econômico não encontrava fronteiras, atingindo grandes complexos universitários que passaram a reproduzir esse pensamento econômico. Atingem também as finanças públicas nacionais e, de forma impressionante, até mesmo os meios de comunicação de massa. (DELGADO, 2005, p. 19).

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Todo esse conjunto de ideias foi dominante a partir dos anos de 1970 nos países desenvolvidos, em contraposição ao Estado de Bem-Estar Social. (DELGADO, 2005, p. 21). Essa readequação do liberalismo é descrita por Delgado:

O pensamento liberal renovado sustenta, em síntese, na linha da velha matriz oitocentista, o primado do mercado econômico privado na estruturação e funcionamento da economia e da sociedade, com a submissão do Estado e das políticas públicas a tal prevalência. Em consequência, a atuação econômica estatal deve ser restringida de modo muito substantivo, em contraponto ao modelo multifacetado, normatizante e intervencionista do Welfare State. (DELGADO, 2005, p. 21).

Continua o autor afirmando que a facilitação para o êxito dos investimentos privados significava a redução da atuação estatal na economia, na busca pelo estado mínimo, seja através de privatizações de empresas estatais ou pela máxima desregulamentação de atividades econômicas privadas. Para vencer todas as resistências, era necessário, inclusive, efetuar a desregulamentação normativa e garantir o livre acesso do capital a diferentes nações do mundo. (DELGADO, 2005, p. 22).

A assunção ao poder de importantes lideranças políticas ultraliberais também contribuiu para a afirmação da influência neoliberal nas searas econômica, política e cultural. Da década de 1970 até 1990, tais ideologias alcançaram controle político de importantes países do capitalismo, espraiando essa forte influência para todas as nações do mundo. (DELGADO, 2005, p. 22). Nesse sentido:

Esse simultâneo controle político de Estados-chave do capitalismo ocidental, por substantivo período de tempo, permitiu a sedimentação e generalização da influência de tal pensamento econômico, com seus reflexos políticos e culturais. A articulação concertada desses Estados líderes do sistema capitalista mundial, viabilizando a atuação também concertada das mais importantes agências oficiais nacionais e internacionais de índole econômica, gerando um caldo cultural uniforme para os meios de comunicação de massa em todo o Ocidente, tudo conduziu à construção de sólida hegemonia da matriz teórica contraposta ao Welfare State. (DELGADO, 2005, p. 23-23).

Durante as décadas de 1980 e 1990, a hegemonia neoliberal encontrou solo fértil para sua generalização, também, por inexistir um eficaz contraponto político consistente e eficaz ao capitalismo completamente desprovido de controles civilizatórios. A adoção de políticas públicas descomprometidas com o aspecto social foi impulsionada com o desaparecimento da União Soviética, que representava a ameaça política socialista, além de contar com a redução das forças populares nos países ocidentais. (DELGADO, 2005, p. 24).

No plano interno, o enfraquecimento do contraponto democrático-popular resultou, conforme nos ensina Delgado, da combinação de três fatores. O primeiro

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deles consiste na redução da força coletiva, causando o enfraquecimento dos sindicatos a partir de meados dos anos de 1970. Também, a perda de consistência dos projetos político-democráticos populares e, finalmente, um recuo do pensamento crítico clássico, que passa a absorver, ainda que indiretamente, pressupostos neoliberais sobre a sociedade capitalista. (DELGADO, 2005, p. 24).

O recuo do movimento sindical é desencadeado em boa medida a partir da crise econômica da década de 1970 e da majorada elevação das taxas de desemprego nos anos seguintes. Certamente que a postura inflexível das lideranças políticas diante de reivindicações coletivas também contribuiu para o decréscimo da força dos sindicatos. Contudo, afirma Delgado:

É bem verdade que este incremento do desemprego já seria resultante da nova orientação econômica imposta aos países capitalistas desenvolvidos pelo receituário ultraliberal em expansão - responsável no Ocidente, nos últimos 20/25 anos, por taxas de desocupação inusitadas se comparadas aos índices tradicionais do período Welfare State. (DELGADO, 2005, p. 24).

A perda de consistência de projetos político-democráticos pode ser exemplificada com o governo político de Felipe González (1982-1996), na Espanha. Na década de 1980, houve uma forte alteração dos rumos governamentais nesse país, adotando o receituário desregulador e flexibilizatório do Direito do Trabalho e Previdenciário.

Sobre o enfraquecimento das forças políticas democráticas, assevera Delgado:

Nas duas últimas décadas do século XX, portanto, o contraponto político ao liberalismo...

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