Clássicos e novos desafios à generalização da inclusão social na ordem capitalista, relativamente ao Direito do Trabalho

AutorÉrica Fernandes Teixeira
Ocupação do AutorDoutora e mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas
Páginas62-81

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4.1. Desafios à generalização do direito do trabalho no brasil e os impasses à inclusão social

Destoando-se do padrão europeu de desenvolvimento e generalização do ramo jurídico trabalhista, no Brasil é possível constatar um cenário de exclusão social causado, em grande medida, por forte resistência à generalização do Direito do Trabalho, em reiterados momentos, ao longo da história. Nas palavras de Delgado:

Na verdade, parece claro que o decisivo segredo acerca da impressionante exclusão social neste país reside no fato de o desenvolvimento capitalista aqui, ao longo do século XX, ter-se realizado sem a compatível generalização do Direito do Trabalho na economia e sociedades brasileiras - o que não permitiu a sedimentação de um eficaz, amplo e ágil mecanismo de distribuição de renda e poder no contexto socioeconômico. (DELGADO, 2005, p. 129).

Conforme valioso entendimento do autor, a justificativa para esse cenário de desprestígio é certamente encontrada nos resultados necessariamente promovidos pela generalização do Direito do Trabalho, pautados em elevados níveis de cidadania e justiça social. Ocorre que, no Brasil, a tradição autoritária de suas políticas públicas sempre demonstrou clara resistência à promoção da distribuição de renda e poder a todos os cidadãos.

Iniciando-se pela Carta Constitucional de 1824, que, apesar de ter sido inspirada no liberalismo francês1, não se mostrou eficaz instrumento de legitimação das lutas sociais. A industrialização ainda não se havia expandido no País, fazendo com que as regras contidas em seu texto estivessem distanciadas da realidade social, incapazes de efetivação. Assim, a sociedade continuou vinculada à hegemonia agroexportadora, amplamente dominada pelos proprietários de terra e discriminando o trabalho manual.

Conforme doutrina de Delgado, desde a República Velha, após a promulgação da Lei Áurea (1888), nosso País não soube engendrar um sistema

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capitalista estruturado essencialmente na relação de emprego, o que certamente lhe proporcionaria uma conexão digna do cidadão ao sistema econômico social. Tampouco buscou efetivar plenamente seus dispositivos normativos heterônomos ou incentivar a produção normativa autônoma, através da negociação coletiva, até o início da década de 1930. (DELGADO, 2005, p. 129).

De 1930 até 1945, na busca pelo desenvolvimento industrial e pela absorção de novos trabalhadores no setor urbano, as políticas públicas deixaram transparecer acatamento das diretrizes do Direito do Trabalho em sua atuação. Por tal razão, esse período pode ser caracterizado como de considerável inclusão social, se comparado ao anterior, tendo como base as características econômicas e sociais vigentes nas décadas anteriores a 1930.

A sistematização do Direito do Trabalho representou um fundamental contraponto à tradicional tendência de total exclusão social precedente. Contudo, não se pode afirmar que houve generalização plena desse ramo jurídico, já que se tratou de um avanço bastante limitado.2 Isso porque, a grande número de trabalhadores brasileiros, tal proteção justrabalhista não conseguiu atingir, eis que, conforme indica Delgado, "cerca de 70% da população brasileira ficaria excluída dos efeitos modernizantes e progressistas do Direito do Trabalho, uma vez que a taxa de urbanização do País situava-se, durante os anos de 1930 e 1940, apenas em torno de 30%."(DELGADO, 2005, p. 130).3 O esperado Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado no governo de João Goulart pela Lei n. 4.214/1963, buscava fortalecer a ação sindical nas empresas e, consequentemente, melhorar as condições de vida e de trabalho dos operários. Contudo, tal diploma não logrou efeitos concretos, em razão da queda do regime democrático em 1964. Em 1973, a Lei n. 5.889 passou a disciplinar as relações empregatícias do trabalhador rural, conferindo-lhe direitos com grande proximidade em relação ao trabalhador urbano.4

Assim:

O Estado demonstraria não mais possuir interesse político na busca da generalização do Direito do Trabalho para toda a economia e sociedade. Em consequência, sequer equipou-se com os instrumentos institucionais necessários para realizar, eficazmente, semelhante processo de generalização. (DELGADO, 2005, p. 132).

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Em referência à Constituição de 1937, a necessária inclusão trabalhista pôde ser verificada com a outorga de diversos direitos e vantagens aos trabalhadores, apesar do forte caráter paternalista do governo e da intervenção estatal nos sindicatos. A industrialização brasileira foi fomentada com a criação de estatais como a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Companhia Nacional de Álcalis (1943), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Companhia Hidroelétrica de São Francisco (1945), consolidando o primeiro estágio da "nacionalização formal da economia" (BARROSO, 2006, p. 23). Entretanto, tal diploma desarticulou a construção coletiva desses direitos sociais e:

Não desempenhou papel algum, substituída pelo mando personalista, intuitivo, autoritário. Governo de fato de suporte policial e militar, sem submissão sequer formal à lei maior, que não teve vigência efetiva, salvo quanto aos dispositivos que outorgavam ao chefe do Executivo poderes excepcionais. (BARROSO, 2006, p. 24).

A Constituição de 1946 estabeleceu a redemocratização do País, repudiando o estado totalitário no poder desde 1930. Procurou harmonizar o princípio da livre iniciativa (ideias liberais de 1891) com o da justiça social (já expressos na Carta de 1937 e nela reiterados). Assim, garantiu a democracia política e as liberdades civis, indicando que deixaria de ser apenas um estatuto político para ser também um instrumento de participação popular. Ressalta-se que tal abertura, em um País com tradição política autoritária e que enfrentava sérias questões sociais, agravadas pela falta de apoio das camadas populares no sentido de efetivar a democracia, deixou a desejar. Por tudo isso:

Foi exaltada pela doutrina como a melhor de nossas Cartas. [...] Como instrumento de governo, ela foi deficiente e desatualizada desde a primeira hora. Como declaração de direitos e de diretrizes econômicas e sociais, foi ágil e avançada. (BARROSO, 2006, p. 26).

O vasto regramento acerca dos direitos e garantias individuais, assim como a previsão de princípios que regiam a ordem econômica e social, representaram os principais pontos de inserção social promovidos pela Carta de 1946. Por outro lado, a produção legislativa brasileira foi restrita à época, mostrando-se:

Morosa e insatisfatória. [...] Ao ângulo da realização da justiça social acenada pelo Texto (art. 145), faltou substancial efetividade à Carta de 1946, notadamente pela não edição da maior parte das leis complementares por ela previstas ou impostas por seu espírito. (BARROSO, 2006, p. 26).

Tal omissão obstou a plena efetivação de seu sistema de direitos e garantias, bem como o cumprimento de diversas normas programáticas contidas em seu texto, num momento em que, contrário ao Brasil, a maioria dos países ocidentais intensificava a produção legislativa de cunho social. O texto de 1946 passou por

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21 emendas, 4 atos institucionais e 37 atos complementares, o que demonstra a instabilidade do cenário político da época.

Fundamental aqui expor o ensinamento de Bonavides sobre as constituições em vigor no nosso País entre 1824 e 1969:

A crise não é, por conseguinte, a crise de uma Constituição, senão a crise do próprio poder constituinte; um poder que, quando reforma ou elabora a Constituição, se mostra nesse ato de todo impotente para extirpar a raiz dos males políticos e sociais que afligem o Estado, o regime, as instituições e a sociedade mesma no seu conjunto. A crise constituinte tem sido, aliás, desde as origens do Estado brasileiro, a crise que ainda não se resolveu. (BONAVIDES, 2000, p. 347).

Inegável concluir que, mesmo marcadas por textos fortemente autoritários até o fim do regime militar, as constituições brasileiras foram também fundamentais na criação de uma consciência coletiva sobre a falta de implementação de suas regras diante da dura realidade nacional, o que repercutiu na eclosão de movimentos sociais, na década de 80 (século XX).

Com o regime militar no poder entre os anos de 1964 e 1985, retomou-se no País o período de desprestígio do Direito do Trabalho e, por conseguinte, da exclusão social. O autoritarismo das políticas de governo dessa época freou a generalização do ramo justrabalhista e a efetividade das normas tuitivas, o que foi agravado pela estrutura ainda tímida da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho. A todo esse cenário, acresça-se a forte repressão sofrida pelos sindicatos, cuja atuação defensiva em prol dos trabalhadores foi silenciada. Por tudo isso, "o processo de amadurecimento democrático, de consciência política e de prática da cidadania ficou truncado." (BARROSO, 2006, p. 35).

Entre 1964 e fins dos anos 70 houve considerável avanço da industrialização e urbanização do País, que contribuiu para reduzir o desastre da exclusão social brasileira. Nesse sentido, Delgado expõe:

O fato é que, em 1960, ainda tínhamos mais de 50% da população situada no campo, ao passo que nos anos seguintes a urbanização generalizou-se, atingindo cerca de 55% em 1970, em torno de 67% em 1980, para alcançar mais de 80% no Censo do ano de 2000. (ALMANAQUE apud DELGADO, 2005, p. 133).

E continua o doutrinador:

Não se desconhece a existência de questionamentos aos critérios de enquadramento estatísticos...

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