A civilizaão ocidental e a acirrada dialética intelectual em torno do fascismo

AutorGianni Fresu
Páginas45-69
A CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL E A ACIRRADA DIALÉTICA INTELECTUAL EM TORNO DO
FASCISMO1
Gianni Fresu 2
Resumo
Falando de fascismo, muitas vezes, encontramos leituras bastante superficiais que atribuem essa definição para qualquer
movimento conservador ou fenômeno autoritário. Na realidade, o fascismo tem suas próprias características, que precisam
ser conhecidas. Estudar todo o conjunto complexo e articulado de contradições que, de forma direta ou i ndireta,
caracterizaram a história da ci vilização ocidental fica essencial para compreender umas das épocas mai s dramáticas na
história da humanidade contemporânea. O fascismo é o produto das contradições objetivas e subjetivas das sociedades
liberais em crise, mas também um desenvolvimento político e cultural não alheio à brutal civilização europeia que submeteu
e escravizou os chamados “povos primitivos”. Não reconhecer esses elos orgânicos, recusando-se a historicizar e
enquadrar filosoficamente premissas e causas racionais desse fenômeno, leva, inevitavelmente, à utilização das categorias
anti-históricas da teratologia, que pretendem representar a realidade como resultado inexplicável da loucura, da
monstruosidade e da deformidade.
Palavras-chave: Fascismo. Civilização ocidental. Crise de hegemonia.
WESTERN CIVILIZATION AND INTELLECTUAL DIALECTIC FIRST AROUND FASCISM
Abstract
Speaking of fascism, we often find rather superficial readings that attribute this definition t o any conservative movement or
authoritarian phenomenon. I n reality, fascism has its own characteristics, which need to be known. To study the whole
complex and articulated set of contradictions that have directly or indirectly characterized the history of Western civilization is
essential to understand one of the most dramatic times in the history of contemporary humanity. Fascism is the product of
the objective and subjective contradictions of liberal societies in crisis, but also a political and cultural development not
unrelated to t he brutal European civilization that subjected and enslaved the so-called "primitive peoples". Not recognizing
these organic links by refusing to historicize and philosophically frame premises and rational causes of this phenomenon
inevitably leads to t he use of the anti -historical categories of teratology, which claim to represent reality as the inexplicable
result of madness, monstrosity and deformity.
Keywords: Fascism. Western civilization. Crisis of hegemony.
Artigo recebido em: 11/11/2019. Aprovado em: 12/03/2020
1 O presente artigo, fruto de estudos desenvolvidos a partir da minha relação à IX Jornada
Internacional de Políticas Públicas (IX JOINPP) de São Luís, foi publicada também no número de abril de 2020 da Revista
plurilíngue italiana “Ammentu. Bollettino storico archivistico del Mediterraneo e delle Americhe”
2 Bacharel em Filosofia. Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de Uberlândia (MG/Brasil). Presidente da
International Gramsci Society Brasil. E-MAIL: giannifresu@ufu.br
Gianni Fresu
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1 INTRODUÇÃO
Em se tratando do fascismo, não é difícil encontrar leituras que, sem abordar as múltiplas
contradições que o geraram, limitam-se a retirar essa ideologia e seu movimento correspondente do
terreno real da história, reduzindo-a quase a problema psicológico, à objetivação político-coletiva da
“banalidade do mal” (ARENDT, 2017). Como tentaremos explicar nesse artigo, o fascismo não foi um
parêntese irracional, ou apenas um método, nem o fruto de uma psicose que derrubou as defesas
morais da civilidade europeia, surgida fora do seu corpo social e da sua cultura. O fascismo é um
movimento social e uma ideologia original historicamente determinada, fruto de específicas condições
sociais e culturais, funcionais aos interesses de determinadas exigências históricas. Mas apesar das
condições excepcionais que determinaram o seu aparecimento, ligadas à crise de hegemonia das
classes dirigentes da Europa na primeira metade do século XX, esse movimento representou a
tentativa de instaurar algumas concepções da ideologia tradicional do colonialismo e do imperialismo
dentro dos mesmos confins ocidentais. A sua verdadeira raiz totalitária, portanto, se encontra nessa
história que gerou a forma mais extrema e orgânica de totalitarismo que a humanidade conheceu: a
escravidão.
2 FASCISMO E MODERNIDADE
Um dos erros mais comuns nas avaliações sobre o fenômeno fascista, que não nos ajuda
a entender a diferença entre esse movimento e outras manifestações (anteriores ou sucessivas) da
tradição autoritária e conservadora, consiste em reduzir a sua essência ao uso monopolista,
sistematicamente organizado, da força e dos aparatos repressivos. Todavia, nas sociedades
avançadas do mundo ocidental contemporâneo, cada “bloco histórico” nunca pode basear o seu poder
apenas sobre o exercício (por quanto eficiente) do domínio, por meio de uma ditadura
permanentemente empenhada na tarefa de impedir a afirmação de visões de mundo alternativas 1.
Também as mais autoritárias viradas políticas necessitam reconstruir um novo apa rato hegemônico e,
portanto, ministrar a arte do consenso fundindo domínio e hegemonia2. A Itália do pós-guerra ficou
dramaticamente envolvida na queda de hegemonia das suas classes dirigentes, como Gramsci
esclarece na nota 80 do parágrafo Passado e presente do Caderno 7, voltando às relações entre
consenso e força, a partir de uma pergunta fundamental: como reconstruir o aparato hegemônico do
grupo dominante desagregado pelas consequências da guerra em todos os Estados do mundo?
(GRAMSCI, 1975).

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