A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
CargoProfessora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio e Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ.
Páginas233-258

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Em cada época há palavras às quais se vincula intimamente o espírito objetivo de uma sociedade. Atualmente, o conceito de responsabilidade parece desempenhar este papel (Klaus Günther).

1. A constitucionalização do direito civil

Nos1 quase* vinte anos que já se passaram desde a promulgação da Constituição da República, uma verdadeira reviravolta ocorreu no âmbito do direito civil. Na atualidade, poucos civilistas negam eficácia normativa ao texto constitucional ou deixam de reconhecer seu impacto sobre a regulação das relações privadas. Estudos de teoria geral do direito acerca da aplicação dos princípios constitucionais e da metodologia de sua ponderação foram determinantes para afastar definitivamente a cristalizada concepção da Constituição como mera carta política, endereçada exclusivamente ao legislador.2

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Neste contexto, dito pós-positivista, o respeito das normas inferiores à Constituição não é examinado apenas sob o ponto de vista formal, a partir do procedimento de sua criação, mas com base em sua correspondência substancial aos valores que, incorporados ao texto constitucional, passam a conformar todo o sistema jurídico. Valores que adquirem positividade na medida em que consagrados normativamente sob a forma de princípios. 3 Assim, a solução normativa aos problemas concretos não se pauta mais pela subsunção do fato à regra específica, mas exige do intérprete um procedimento de avaliação condizente com os diversos princípios jurídicos envolvidos.4

Mesmo a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República no art. 1º, iii, da CF, dispositivo inicialmente observado com ceticismo, hoje é reconhecidamente uma conquista determinante e transformação subversiva de toda a ordem jurídica privada. De fato, a escolha do constituinte ao elevá-la ao topo do ordenamento alterou radicalmente a estrutura tradicional do direito civil na medida em que determinou o predomínio necessário das situações jurídicas existenciais sobre as relações patrimoniais.5

Claramente, o efeito desta alteração na interpretação-aplicação dos institutos civilísticos tem sido notável e, deve-se mesmo afirmar, ainda não está completamente realizada. As influências do contexto histórico burguês e liberal em que o direito civil era concebido, como a regulação mínima necessária para garantir o livre jogo dos negócios, voltado unicamente para a proteção do patrimônio, fundado exclusivamente na tutela da propriedade e da autonomia privada de cunho econômico e que erigia o Código Civil como centro do sistema, vão porém se dissipando paulatinamente.

A proliferação da legislação esparsa sob a forma de estatutos especializados, por vezes tidos como “microssistemas legislativos”, 6 tornou insustentável afirmar a centralidade do Código diante deste verdadeiroPage 235polissistema, que encontra, agora, na Constituição sua unidade sistemática e axiológica.

A suposta segurança oferecida pela estrutura milenar do direito civil clássico, que justificaria seu predomínio sobre a instável normativa constitucional, revela-se como apenas mais um mito elaborado para a manutenção de status quo individualista e patrimonialista.7 Já o imprescindível reconhecimento da relatividade e historicidade dos institutos jurídicos demonstra que sob a sua aparente continuidade terminológica se ocultam radicais transformações semânticas.8 Em especial, a afirmação da democracia como fundamento de legitimidade de todo o ordenamento justifica a prevalência da Constituição, elaborada pela soberana assembléia nacional constituinte, com intensa participação popular, sobre a atividade regular do legislador, representante ordinário do povo. Em atendimento à função promocional do Direito, o princípio da democracia impõe a máxima eficácia ao texto constitucional, expressão mais sincera das profundas aspirações de transformação social.

Por conta disso, a funcionalização dos institutos clássicos do direito civil às finalidades superiores consagradas na Constituição, tal como se observa, por exemplo, na instrumentalização da família ao livre desenvolvimento de seus membros e na subordinação da tutela do contrato e da propriedade à realização da função (rectius, justiça) social, tornou-se uma conseqüência necessária do respeito obrigatório à hierarquia das fontes. Evidentemente, o mesmo ocorre na seara da responsabilidade civil.

A análise da jurisprudência destas duas décadas, especialmente no âmbito do direito privado, serve a desfazer – com as exceções normais – o justificado receio de que a aplicação direta das normas constitucionais, especialmente por meio de cláusulas gerais carentes de preenchimento valorativo, viesse a ocasionar arbitrariedades, violando a esfera de autonomia individual por meio de um perigoso salto sobre o legislador ordinário.9 Daí também a importância fundamental da motivação das decisões – anteriormente acentuada10 –, revelando os princípios jurí-Page 236dicos envolvidos e as ponderações realizadas pelo magistrado ao julgar o caso concreto, de modo a permitir o debate em bases racionais e a determinação de critérios capazes de nortear novas decisões de maneira isonômica.

No entanto, as conquistas até aqui obtidas não diminuem a extensão do desafio que temos diante de nós. Diversos obstáculos persistem e novos problemas se põem à metodologia civil-constitucional no século

XXI. O principal deles foi a promulgação da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – o novo Código Civil. Alguns civilistas, animados com a suposta novidade, vieram a afirmar o ocaso do direito civil-constitucional diante do novo diploma, que já teria nascido “constitucionalizado” em virtude de sua promulgação posterior à Constituição.11

Post hoc ergo propter hoc. 12 Tal falácia pode ser desfeita já a partir da análise dos diversos anacronismos e deficiências que o texto, elaborado na década de 1970, traz em seu corpo, consagrando, em numerosos dispositivos, entendimentos que se opõem ao movimento de personalização que se vinha operando em doutrina e jurisprudência.13 Neste momento, portanto, e talvez mais firmemente do que antes, será preciso persistir no esforço de conferir aos institutos civilísticos a interpretação condizente com a tábua axiológica prevista na Constituição.

2. A responsabilidade civil como mecanismo de proteção dos interesses da pessoa humana

Na definição de Ulrich Beck, vivemos atualmente em sociedades de risco. 14 O sentido da expressão, porém, não se vincula diretamente àsPage 237crescentes hipóteses de risco – entendidas estas como o aumento real do número de acidentes – mas às sociedades que se organizam para fazer frente ao incremento daquelas hipóteses, introduzidas principalmente pelos avanços tecnológicos e pela intensa interferência humana no meio ambiente. Trata-se de sociedades preocupadas com o seu futuro, com a sobrevivência das gerações futuras, 15 e que necessitam desenvolver instrumentos aptos a garanti-lo. No entanto, assinala Stefano Rodotà, a angústia em relação ao futuro não acarreta uma recusa ao futuro: “ao lado da percepção, sempre mais clara, dos riscos do progresso tecnológico, existe a consciência da impossibilidade de parar tal progresso, mesmo se este não se apresenta mais com estimativas apenas positivas.” 16

O sentimento de angústia aprofunda-se diante do descompasso existente entre a velocidade do progresso tecnológico e a lentidão com a qual amadurece a capacidade de organizar, social e juridicamente, os processos que acompanham esse progresso. A todo momento, de fato, percebe-se a obsolescência das soluções jurídicas para fazer frente a um novo dado técnico ou a uma nova situação conflituosa.

A conceituação como sociedades de risco é, na realidade, conseqüência do fim da fase de fé cega no progresso da humanidade, confiança que havia definido a sociedade ocidental do séc. XiX como a de um “mundo de segurança” e delineado a legislação que o regulava mediante um sistema fechado e pretensamente completo que continha todas as respostas normativas.

No decorrer do séc. XX, porém, a segurança foi sendo irreversivelmente corroída. Como reflexo do novo panorama, pleno de incertezas, o legislador começa a utilizar-se de uma diversa linguagem normativa, passando a adotar cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que, ao abrirem amplo espaço ao intérprete, acabam por acentuar a sensação de indeterminação e de insegurança perante o Direito.

Adverte-se então a necessidade de individuar os princípios jurídicos que devem direcionar cada interpretação-aplicação do direito, de referilos continuamente para enfrentar tendências de mais longo prazo, ePage 238de adotá-los para o preenchimento, em cada caso, das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, os quais funcionam assim como instrumentos de incidência dos princípios e valores constitucionais nas relações intersubjetivas.

Não é tarefa simples. A dificuldade na identificação dos princípios envolvidos não provém, contudo, somente do fato de que se trata de regular uma demanda em transformação. Decorre ainda da necessidade de se levar em consideração uma multiplicidade de exigências, de interesses e de necessidades com freqüência conflitantes entre si. A única constante a ser seguida encontra-se na prevalência da tutela da pessoa humana, princípio previsto no art. 1º, iii, da Constituição Federal, considerada a sua dignidade como o valor precípuo do ordenamento, configurando-se como “a própria finalidade-função do Direito.” 17

O princípio da proteção da pessoa humana, determinado constitucionalmente, gerou no...

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