Civil disobedience--The limits of the opposition to the law/ Desobediencia civil--Os limites da oposicao a lei.

AutorSchirmer, Mario Henrique Gebran
  1. Introducao

    Ha um abismo separando Thoreau e Eichmann. Entre o pensador estadunidense, que se refugiou em uma floresta e nao pagava tributos para nao compactuar com as injusticas que seu governo cometia,1 e o burocrata nazista, que "simplesmente cumpria ordens", (2) ha uma distancia colossal. Esta contrariedade se manifesta na problematica da imperiosidade da lei em contraste com a desobediencia civil--e mais amplamente em um conflito entre uma ideia de justica material dissidente e o ordenamento juridico. (3) Nao sao raras as situacoes em que nossos ideais de justica parecem conflitar com a imperiosidade das leis. Em uma sociedade complexa e plural, constantemente nos deparamos com leis das quais discordamos, pois expressam diretrizes que consideramos equivocas ou ate mesmo injustas. O que fazer, entao, quando nos e imposta uma lei cujo cumprimento desafia nossa consciencia? Sacrificamos nossa integridade, em nome do dever legal e da cordialidade comunitaria, ou objetamos o ordenamento juridico, como delincuentes--sujeitos a sancoes pelo descumprimento da norma?

    Se existem questoes perenes na historia da humanidade, certamente uma delas e a indagacao de quando ha justificativa para desobedecer uma lei. (4) Desde que nascemos somos ensinados a obedecer. Esta logica, que nos e apresentada ainda quando criancas, segue-nos por toda a vida. Mas, sera mesmo que sempre devemos lealdade as leis? Sera sempre correto cumprir com ordenacoes--mesmo com aquelas que nao concordamos? Ou sera que temos o direito (ou mesmo o dever) de descumprir leis que consideramos injustas? Sera este suposto direito de desobediencia uma prerrogativa moral ou um direito, na acepcao juridica do termo? E nesta perspectiva que se coloca a problematica da desobediencia civil.

    A desobediencia e um assunto delicado. Ela contraria toda a logica a que somos acostumados. E o dissenso em contraste com um aparente--e, por vezes, enganoso--consenso. (5) Por esta razao, ha uma tendencia de oposicao a desobediencia civil. (6) A heranca hobbesiana, na previsao de uma guerra de todos contra todos, e a cultura de exaltacao da lei, presente desde os classicos de nossa tradicao democratica moderna, nos indicam fortes motivos para argumentar contra a desobediencia civil. (7) Nem mesmo as vicissitudes do pensamento positivista classico, expostas durante o seculo XX, foram suficientes para nos afastar do excessivo legalismo que permeia o pensamento sobre a democracia moderna desde seus primordios. (8) Por outro lado, e contraditorio que algumas culturas prezem tanto pela liberdade e neguem a desobediencia civil (9)--um instrumento que e, muitas vezes, uma demonstracao democratica de liberdade, em que pese sua ilegalidade. (10)

    Quando pensamos na desobediencia civil enquanto ato ilegal a tendencia e a objecao. Mas, quando ponderamos se a lei que deve ser cumprida e justa e chegamos a uma resposta negativa, a questao torna-se angustiante. Afinal, o que deveria fazer Eichmann, quando recebeu a ordem da solucao final? (11) O que deve fazer o soldado ao qual e ordenada a execucao de um inocente? E este o confronto que anima este estudo: a imperiosidade da lei em contraste com um ideal de justica dissidente. Conflito exposto no dever de obedecer a lei em face da escusa moral-politica-etica de nao fazer aquilo que considera errado. A problematica esta exatamente na relacao entre a imperiosidade da lei e a desobediencia legal motivada por razoes nao egoistas e que nao atentem contra a ordem social em sua totalidade. Uma angustia que se concentra na oposicao entre o cumprimento de uma lei injusta e o descumprimento de uma obrigacao; um dialogo entre desobediencia civil, liberdade, democracia e a imperiosidade das leis; um confronto entre o ordenamento juridico e a justica. (12)

  2. A desobediencia civil

    Nao ha duvida de que a desobediencia civil e um desafio a consciencia. Por um lado, nao podemos deixar de reconhecer que os desobedientes agem, em sua visao, com bons motivos e propositos, visando, em seu ponto de vista, a exaltacao da justica e da liberdade em face de uma ordenacao que tem como injusta. Por outro lado, nao se pode olvidar que os desobedientes se arrogam na prerrogativa de quebrar todo o pacto comunitario, exposto no ordenamento juridico (13) e no suposto consenso que o legitima. Embora motivada por bons principios, a desobediencia demonstra a atitude de um cidadao (ou um grupo minoritario de cidadaos) que se coloca em posicao privilegiada em relacao aos demais, descumprindo aquilo que a maioria determinou. E neste conflito que se coloca a angustia da desobediencia civil: um polo dinamizado pelos nobres sentimentos de justica e liberdade; outro, pelo egoismo de desrespeitar a lei com a qual nao se concorda, a despeito do suposto consenso que a legitima.

    Trata-se de um conflito democratico: a regra majoritaria, representada na lei, em confronto com os direitos de liberdade, participacao e busca da justica, que arguem os desobedientes. (14) Mas, afinal, o que e a desobediencia civil?

    2.1. Desobediencia civil--um paradigma da democracia liberal moderna

    Muito tem se escrito em busca de um conceito de desobediencia civil. (15) Entretanto, a proliferacao de conceitos e antes causa de discussao e debates do que engrandecimento e aprofundamento do tema. Nao pretendemos, entao, determinar o que e a desobediencia civil e quais os tipos de desobediencia legal que pertencem a esta categoria. A literatura tecnica ja e suficientemente recheada de conceituacoes e nao parece que possamos ofertar novos contributos. Alem disso, as distincoes feitas poucas vezes nos pareceram uteis--ou, ate mesmo, acertadas. (16)

    Em respeito aqueles que desejam um conceito, remetemo-los ao pensamento de Thoreau. Em sua amplitude e generalidade, a classificacao parece abarcar, com suficiente complexidade, todas as hipoteses de desobediencia civil. (17) Trata-se de um conceito classico e extremamente amplo. Em sentido pratico, as ideias do autor de Walden parecem mais adequadas do que muitas das conceituacoes ditas modernas, que em sua sede por categorizacoes acabam por separar iguais. (18)

    Nossa aversao por um conceito estrito nao pode, no entanto, nos afastar de uma determinacao de nosso objeto. Dai que parece adequado determinarmos, ao menos, algumas caracteristicas da desobediencia civil. Nao em busca de uma conceituacao, mas objetivando delinear um panorama que diferencie esta atividade de oposicao a lei de outros atos ilicitos. (19) O que procuramos e apenas apresentar caracteristicas da desobediencia civil, almejando clarificar algumas questoes que serao debatidas. Olvidando, propositalmente, eventuais distincoes que ainda possam ser feitas, a desobediencia civil parece gravitar em torno de tres caracteristicas primordiais. (20)

    A primeira delas e facilmente identificavel: a desobediencia civil e, a priori, um ato que viola a lei. Nao ha grandes misterios nesta afirmacao. Ao contrario, a aprioristica ilegalidade e a propriedade fundamental da desobediencia civil. Por esta razao, virtualmente, todos os escritos sobre o tema sao unissonos na aceitacao desta caracteristica. Por ora, deixaremos de lado a questao de saber se a desobediencia civil pode ser legalmente justificada com base em criterios juridicos que sobrepujem a desconformidade entre a atitude do agente e legislacao objetada. Aqui, importa perceber que a ilegalidade--aprioristica que seja--e elemento fundamental da desobediencia civil. A desobediencia e a ilegalidade nao sao, porem, necessariamente prejudiciais a sociedade. Muitas das maiores transformacoes sociais ocorridas ao longo da historia foram impulsionadas por comportamentos, a priori, entendidos como ilegais. (21) Senao a promocao de atos ilegais, o que eram as campanhas lideradas por Gandhi e Martin Luther King Jr.? Mas, entao, o que diferencia a desobediencia civil dos demais atos ilegais? (22)

    A segunda, nos remete ao fato de que a desobediencia civil e motivada por razoes de justica e liberdade, se diferenciando da atividade criminosa ordinaria. Aqueles que desrespeitam alguma lei por razoes morais, eticas ou politicas (no sentido de busca do bem, de ideal de vida boa), nao podem ser equiparados aos que praticam delitos motivados por sentimentos egoistas, crueis, raivosos ou insanos. Seria um erro igualar aqueles que agem contrariamente ao ordenamento juridico por motivos nobres com aqueles que o fazem por razoes torpes. (23)

    A terceira, e perceber que a desobediencia civil se distingue da atividade revolucionaria. Ao contrario do revolucionario, o desobediente aceita a legitimidade do sistema, nao havendo um ataque a autoridade fundamental do Estado, mas apenas uma pontual objecao. Seria, pois, erroneo equiparar aqueles que pretendem abalar toda a estrutura da sociedade e aqueles que desejam apenas a alteracao ou suspensao de determinadas leis. (24) Dai que a desobediencia civil e contraria a lei, mas nao ao Estado; e as motivacoes de contrariedade nao sao de carater individualista, mas em respeito a ideais de justica diversos daqueles expostos na norma juridica. (25)

    Assim, para alem de outras distincoes que ainda se possam imaginar, e importante perceber que a desobediencia civil se foca na aprioristica ilegalidade de sua acao e em razoes de justica que nao contrariam a legitimidade do Estado em sua totalidade, diferenciando-a das atividades criminosas e revolucionarias. (26) Neste contexto, "a expressao 'desobediencia civil' e uma expressao moderna, que vem sempre associada a ideia de dissenso nao convencional e nao institucional contra certa atividade do poder publico, por motivos de justica." (27). Estas caracterizacoes nos conferem bases minimamente solidas para que possamos progredir.

    Ha, por fim, uma questao muito debatida pela qual passaremos muito rapidamente. Trata-se de saber se a desobediencia civil e necessariamente nao violenta. Ha, aqui, grande influencia da Satyagraha gandhiana (28), da doutrina de Martin Luther King Jr. (29) e...

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