Uma sociologia do cinema: a questão do autoral Ruy Guerra na pós-modernidade

AutorEduardo Portanova Barros
CargoJornalista, doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos (PNPD/CAPES/Unisinos/PPGCS)
Páginas200-237
http://dx.doi.org/10.5007/1984-8951.2013v14n105p200
Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, ISSN 1984-8951
v.14, n.105, p.200- 237, ago/dez 2013
Uma sociologia do cinema:
a questão do autoral Ruy Guerra na pós-modernidade
A sociology of cinema:
the question of authorial Ruy Guerra in postmodernity
Eduardo Portanova Barros
1
Resumo
Como ter um novo olhar para além das possibilidades que a câmera (nos) dá? Mas
o aparelho (nos) outras possibilidades que não sejam as de sua
operacionalidade? Neste intervalo, entre a objetividade maquínica e a subjetividade,
é que reside o social cinematográfico e a proposta deste artigo, de viés
fenomenológico. Pioneiro do Cinema Novo, nos anos 1960, para Ruy Guerra, nosso
sujeito de pesquisa, o cinema é a expressão da sua personalidade. Nesse caso, o
que o motiva? Como se dá o equilíbrio nele entre a subjetividade e o racionalismo?
Uma indagação Bachelardiana nos aponta para o seguinte paradoxo: como pode o
homem, apesar da vida, tornar-se poeta? Esse é o questionamento que fundamenta
o trágico pós-moderno e no qual se poderia caracterizar, para finalizar, o atual
estado da autoria, conforme veremos no cinema de Ruy Guerra.
Palavras-chave: Cinema. Imaginário. Sociologia. Pós-modernidade.
Abstract
How to have a new look for possibilities beyond the ones that camera give? But,
does the camera give other possibilities than those of its operation? In this gap
between objectivity and subjectivity lies the social and cinematic purpose of this
article, phenomenological bias. Cinema Novo pioneer in the 1960s, a film, for Ruy
Guerra, is an expression of his personality. In this case, what motivate him? How
does it balance between subjectivity and rationalism? How can a man, in spite of life,
become a poet? This is the question that underlies the tragic postmodernity, in which
one might characterize, to finalize the text, the current state of authorship, as we
shall see in the movies of Ruy Guerra through the sociological phenomenology.
Keywords: Cinema. Imaginary. Sociology. Postmodernity.
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
1 Jornalista, doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos
(PNPD/CAPES/Unisinos/PPGCS). E-mail: eduardoportanova@hotmail.com
Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, ISSN 1984-8951
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Em quais circunstâncias pode-se falar de uma sociologia no cinema, através
da noção de autor, neste mesmo cinema, dentro de um quadro social pós-moderno?
Para tentarmos avançar neste artigo, escolhemos um cineasta cujas características
se apresentam sob uma perspectiva autoral, como é o caso de Ruy Guerra. Trata-se
de um diretor cujo trabalho transitou do Cinema Novo à Pós-Retomada, o que se
reveste diante desse aspecto trajetivo, de uma importância ainda mais significativa.
Isso porque acompanha um período de novas sociabilidades e arranjos sociais com
a entrada em cena, para muitos autores, da chamada pós-modernidade (Maffesoli,
sobretudo) e a consequente crítica das vanguardas, sejam elas na literatura, nas
artes ou no próprio cinema. Como observar nessa questão autoral cinematográfica
um viés sociológico, ou seja, em sintonia com a perspectiva do paradoxo entre o Eu
(identitário) e o Outro (coletivismo).
Neste artigo, portanto, perseguiremos essa temática, começando por uma
reflexão sobre a fusão entre autor e sua obra, sob a perspectiva do imaginário,
procurando situá-lo (tanto o autor quanto o imaginário) sob o viés de um trajeto.
Esse trajeto é o que vai da objetividade à subjetividade. É o espaço de ação entre
determinantes materiais (o mercado cinematográfico, para este ou aquele cineasta)
e subjetivos (a imaginação autoral), em outras palavras. Nossa perspectiva de
imaginário, que tentaremos aprofundar na sequência, é baseada em Gaston
Bachelard, Gilbert Durand e Michel Maffesoli. Falaremos também, logo depois, da
noção de autoria com a qual trabalhamos. Em seguida, trataremos especificamente
sobre alguns movimentos que reforçaram a ideia do autor, como a Nouvelle Vague,
o Cinema Novo e o Neorrealismo italiano. Depois disso, focaremos em Ruy Guerra:
suas opções, sua trajetória, seu espírito fílmico, incluindo a “leitura” de um de seus
filmes mais emblemáticos, Estorvo (2000).
E, finalmente, faremos uma reflexão que se divide em dois aspectos: um, com
Maffesoli, abordando a pós-modernidade, outro, com Morin, salientando aspectos
sobre a cultura de massa. Assim, autor e obra, conforme uma sensibilidade autoral
se fundem na produção cinematográfica. Uma leitura dessa relação pode levar em
conta o autor como instância abstrata, mas, aqui, privilegiamos a pessoa que se
expressa por meio da câmera. É desta sociologia cinematográfica da qual falamos.
A noção de sensibilidade autoral indica, em primeiro lugar, o gosto do cineasta por
atuar de forma orgânica com o seu trabalho. É uma maneira de sentir e de
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materializar a imaginação criadora. O sentir e o materializar se inscrevem no que
poderíamos denominar raízes do etéreo: a ambivalência constante entre o aparato
técnico que nos rodeia e a imaginação que nos possibilita o ato de criar e,
finalmente, comunicar. Raízes nos remetem ao que é terreno, material. Etéreo ao
inefável e às emoções que não cabem no conceito. O sentido de raízes do etéreo é
similar ao que Maffesoli (2012, p. 243) entende por “trajeto antropológico”, metáfora
de Durand (1997), na qual vivemos uma oscilação entre aspectos pulsionais
(subjetivos) e a objetividade.
Maffesoli (2004, p. 102) traduz essa metáfora no fato de que, para ele, “a
matéria é espiritual, assim como o espírito é material”. É uma expressão, a de
sensibilidade autoral, que procura não conceituar ou rotular o cineasta. Não se trata,
porém, de escrutinar o seu pensamento, mas considerar que um filme, em
determinadas circunstâncias, pode ser a representação de uma individualidade
sensível à poética da criação, e, só por isso, ele já se justificaria. Esse imaginário
autoral será visto como obra aberta, em processo, através de Ruy Guerra, cineasta
cuja trajetória identifica-se com o Cinema Novo e que hoje, na pós-modernidade,
não mais se enclausuraria sob a bandeira ideológica da luta política. Trata-se de um
tripé: autoria, cinema e imaginário. Essas três “categorias” se inserem no grande
eixo que é a sociologia compreensiva, aquilo que nos é comum e que comungamos
na chamada pós-modernidade.
1 Autor e sensibilidade
Mais de meio século depois do Cinema Novo, Ruy Guerra, nascido em 1931,
continua em atividade, só que agora em outra época. Como se deu essa trajetória
de um período
2 em que a luta ideológica fazia parte da identidade nacional para
outro, como hoje, em que o papel do Estado já não assegura qualquer tipo de
garantia em um futuro estável e “o político parece perder todo sentido”
(MAFFESOLI, 1997, p. 43)? Procuramos identificar, nesse percurso, o que ainda o
motiva, sem os referenciais de uma ideologia utópica, mostrando (e não
demonstrando, como prova irrefutável) o equilíbrio nele entre suas pulsões
2 Um período que poderíamos denominar ciclo não elimina outro, mas antes se complementam.

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