Cinema e ciência, natureza e cultura

AutorMarcio Barreto
CargoDoutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
Páginas19-38
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2017v14n2p19
CINEMA E CIÊNCIA, NATUREZA E CULTURA
Marcio Barreto
1
Resumo:
Diante de questões contemporâneas que colocam em xeque as fronteiras entre
natureza e cultura, homem e máquina, sociedade e ambiente, o cinema é tomado
aqui como fio condutor de uma reflexão sobre a ciência moderna a partir de textos
de Bergson, Deleuze e outros autores. Operando a passagem da ciência à arte e da
arte à ciência, o cinema é aqui assumido como objeto técnico e o objeto técnico
como instrumento de ampliação da percepção. A lei da atração gravitacional de
Newton, reconhecida como o coroamento da ciência moderna, é tratada no texto em
suas implicações físicas e metafísicas a partir de escritos de Betty Dobbs e do
próprio Newton para realçar a artificialidade das referidas fronteiras. Através das
lentes do cinema, especialmente dos filmes 2001 Uma Odisseia no Espaço, de
Stanley Kubrick e Out of the present, de Andrei Ujica, o artigo procura demonstrar a
potência do cinema para a percepção de que dimensões da ciência que vão além de
suas alianças com o Estado e com o mercado são relevantes para os desafios que
despontam no horizonte do século XXI.
Palavras-chave: Cinema. Bergson. Ciência. Newton. Modernidade.
1 INTRODUÇÃO
Orientada pela seta do tempo, a vida avançou sobre a matéria, dividiu-se em
animal e vegetal e, em cada ramo, criou múltiplas formas de se manifestar. Por um
capricho da evolução criativa, deu-se que uma forma inteligente de vida, a humana,
espichou seu pescoço e chamou de natureza, a natureza, de pedra, a pedra, de
árvore, a árvore, e o homem de homem, que se pôs a encontrar veios de ordem no
caos, a dominar relações que construiu na teia dos fenômenos e a isso chamou de
ciência. A evolução criativa não se aquietou e pela inteligência escapou uma
segunda natureza: a técnica, esse prolongamento dos nossos sentidos.
Não há, entretanto, oposição entre a primeira e a segunda natureza, entre
aquilo que tradicionalmente chamamos de natureza e a que se prolonga na
tecnosfera, mas está em curso uma reconfiguração do humano e da natureza na
medida em que a técnica se desenvolve numa aceleração vertiginosa. Como aponta
1 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-Doutorado na Université
Paris-1, Sorbonne, França. Professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual
de Campinas e dos Programas de Pós-graduação do Laboratório de Estudos Jornalísticos,
Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e do Programa de Lógica e Informação do
Centro de Lógica e Epistemologia na mesma universidade em Campinas, SP, Brasil. E-mail:
marcio.barreto@fca.unicamp.br
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R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.14, n.2, p.19-38 Mai.-Ago. 2017
Laymert Garcia dos Santos, é preciso “saber qual é o potencial transformador que
existe nas tecnologias, e ao qual você pode acoplar o potencial de transformação do
humano” (SANTOS, 2016, p.22). Nas palavras de Gilbert Simondon,“o objeto
técnico, pensado e constituído pelo homem, não se limita apenas a criar uma
mediação entre o homem e a natureza; ele é um misto estável do humano e do
natural, contém o humano e o natural [...]” (SIMONDON, 1969, p.245).
Os objetos técnicos, antes de serem instrumentos de ação no mundo, como
armas ou ferramentas, são instrumentos para a ampliação da percepção que
modificam nossa relação com o mundo. Nesse sentido, o cinema é descoberta e
construção do homem, realização de uma historicidade com potencial de
autocriação que submete a humanidade a um novo modo de consciência e de
conhecimento, de apreciação e de representação, e sua força está na relação entre
o universo desvendado na consciência do espectador e o aparato técnico que o
possibilita.
Em sociedades consideradas primitivas, há também tecnologias ampliadoras
da percepção: um xamã yanomami, por exemplo, utiliza técnicas insuspeitadas para
aceder a dimensões da natureza as quais desconhecemos e, provavelmente por
desconhecê-las, entramos numa sinuca ecológica que coloca em xeque a
“civilização apoiada exclusivamente na trindade Estado no Mercado e na Ciência”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.23). Se uma pena ou uma substância alucinógena
extraída da mata podem ser objetos técnicos que permitem a transcendência
xamânica, o cinema é, analogamente, um objeto técnico para o acesso a dimensões
da realidade em que o tempo liberta o espectador de sua percepção ordinária de si
próprio e do mundo.
A antropologia simétrica de Bruno Latour propõe que os modernos sempre
fizeram a mesma coisa que fazem os indígenas. Do ponto de vista destes povos, a
tecnociência do mundo civilizado aparece numa relação de forças diferente da
estabelecida na pretensão de domesticar as forças da natureza. “O aporte mais
significativo desta retro antropologia seria uma revisão completa do status ontológico
do objeto industrial, tornado objetivo e subjetivo, natural e cultural, técnico e mágico”
(GODDARD, 2016).
2 O CINEMA: FILHO DA CIÊNCIA E PAI DE UMA NOVA ARTE

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