Cidadania Sexual: Postulado Interpretativo da Igualdade

AutorAdilson José Moreira
CargoDoutor em Direito pela Universidade de Harvard (2013)
Páginas10-46
Direito, Estado e Sociedade n.48 p. 10 a 46 jan/jun 2016
Cidadania Sexual: Postulado Interpretativo
da Igualdade
Sexual Citizenship: An Interpretive Principle of Equality
Adilson José Moreira*
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo-SP, Brasil
1. Introdução
O processo de restauração e consolidação da democracia no Brasil possi-
bilitou a articulação política de vários movimentos sociais ao longo das úl-
timas três décadas. Seus líderes formularam inúmeras reinvindicações du-
rante esse período, demandas que muitos consideram ser compatíveis com
os princípios centrais do nosso sistema constitucional. Muitas delas podem
ser caracterizadas como uma defesa de garantias que procuram superar os
problemas decorrentes do status inferior que esses grupos sempre ocupa-
ram na nossa sociedade. Pretende-se com isso eliminar estigmas culturais
e práticas discriminatórias responsáveis pela permanência desses indivídu-
os em uma situação de subordinação estrutural. Os representantes desses
segmentos af‌irmam que a Constituição Federal não permite que cidadãos
permaneçam em uma condição de exclusão social indef‌inidamente1.
* Doutor em Direito pela Universidade de Harvard (2013), Doutor em Direito Constitucional pela UFMG
(2007), Mestre em Direito pela Universidade de Harvard (2005) e Bacharel em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (1999). Professor na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie
(São Paulo, SP, Brasil). Agradeço os comentários e sugestões de Alexandre Melo Franco Bahia, André Muggiati,
Danilo Tavares, Dimitri Dimoulis, Felipe Scherrer Oliveira, Mara Salles, Marco Antônio Alves, Marco Aurélio
Alves, Pedro Henrique de Cristo e Rafael Polidoro. E-mail: ajmoreirabh@gmail.com.
1 O artigo terceiro da Constituição Federal estabelece: “Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento
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Esta tem sido uma das premissas centrais da mobilização política de
homens e mulheres homossexuais nos últimos trinta anos. Eles almejam
o reconhecimento social de que são pessoas igualmente dignas e merece-
doras das mesmas oportunidades e direitos garantidos a pessoas heteros-
sexuais. Embora o objetivo f‌inal dessa política do reconhecimento ainda
esteja longe de ser plenamente realizado, muitas das demandas formuladas
pelos membros dessa coletividade foram atendidas. Casas legislativas mu-
nicipais e estaduais promulgaram leis que vedam discriminação baseada na
orientação sexual, as últimas administrações federais classif‌icaram direitos
de minorias sexuais como um tema de direitos humanos e os tribunais
têm condenado repetidamente aqueles que discriminam homossexuais.
A equiparação jurídica entre casais homossexuais e heterossexuais foi ou-
tro grande avanço, principalmente quando consideramos a resistência que
esses relacionamentos ainda encontram na nossa sociedade2.
Porém, esta história de sucesso teve uma contrapartida preocupante: o
surgimento de uma grande oposição que adquiriu a forma de um projeto
cultural e político. Muitos atores sociais protestaram contra a recente deci-
são do Supremo Tribunal Federal que estendeu todos os direitos decorren-
tes da união estável a casais homossexuais3. Essa insatisfação aumentou
ainda mais em função da autorização do casamento civil entre pessoas
do mesmo sexo alguns meses após o acórdão que equiparou uniões es-
táveis homossexuais às heterossexuais4. Lideranças religiosas e políticas
interpretaram esses acontecimentos como o prenúncio de uma possível
desestruturação social, pois eles alteraram a conf‌iguração tradicional da
família. Segundo eles, essa instituição tem sido pensada como a união de
dois adultos de sexos opostos que ocupam papéis claramente def‌inidos
dentro de uma relação matrimonial. Políticos e juristas argumentam que
uniões homossexuais e heterossex uais são essencialmente diferentes, mo-
tivo pelo qual o nosso sistema jurídico não deveria equipará-las. Além de
nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV –
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação”.
2 COSTA, 2008, pp. 165-200; MOREIRA, 2012, pp. 1015-1039.
3 BRASIL. STF, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental No. 132, Órgão Julgador: Tribunal
Pleno, Relator: Carlos Ayres Brito, DJe 24.08.2011.
4 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução No. 175/14.05.2013 (autorizando o casamento civil
entre pessoas do mesmo sexo).
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ser uma condição essencial para a procriação, alegam esses atores sociais, a
diversidade de sexos dos pais é uma condição para o desenvolvimento psi-
cológico infantil saudável, sendo um mecanismo facilitador da formação
da identidade heterossexual5.
A política da virtude moral não faz parte apenas do discurso virulento
propagado por certas lideranças políticas e religiosas contra os avanços dos
direitos de homens e mulheres homossexuais. Muitos tribunais brasileiros
utilizaram esses mesmos argumentos para negar proteção jurídica a casais
formados por pessoas do mesmo sexo nas duas últimas décadas. Havia
uma posição jurisprudencial bastante consolidada contrária a essa possibi-
lidade, ponto de vista fundado na premissa de que normas jurídicas ape-
nas reproduzem a moralidade presente na ordem natural. Inúmeras cortes
brasileiras af‌irmaram em vários julgados que a diversidade de sexos é uma
condição essencial para o acesso à união estável e ao casamento. Embora
houvesse um consenso no sentido de que uniões homoafetivas poderiam
ser classif‌icadas como sociedades de fato, o que garantiria a divisão do pa-
trimônio entre os parceiros, muitos desembargadores argumentavam que
os demais direitos matrimoniais estariam restritos a casais heterossexuais6.
Essa posição estava construída sobre a seguinte lógica: um casal homos-
sexual não pode ser considerado como uma entidade familiar porque essa
categoria pressupõe a existência de um homem e uma mulher. Apenas
casais heterossexuais podem procriar e o tratamento privilegiado dos mes-
mos está legitimado pelo interesse estatal na reprodução. Reconhece-se
o direito ao exercício da liberdade sexual de pessoas homossexuais, mas
acredita-se que esse é um comportamento de caráter privado e sem re-
percussões na esfera pública7. Esses argumentos que eram utilizados para
5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial No. 502995, Órgão Julgador: Quarta Turma, DJ
16.05.2005 (af‌irmando que casais formados por pessoas do mesmo sexo não podem desempenhar o papel
de marido e esposa perante um ao outro e nem de pai e mãe perante aos f‌ilhos).
6 Os tribunais brasileiros começaram a classif‌icar uniões homoafetivas como sociedades de fato desde o
f‌inal da década de 80 para garantir a divisão equitativa de patrimônio entre companheiros homossexuais, o
mesmo procedimento que eles utilizaram desde as primeiras décadas do século passado para prover prote-
ção jurídica às concubinas. Ver MOREIRA, 2012, pp. 83-91.
7 Ver, por exemplo, BRASIL. Tribunal de Justiça de Goiás, Conf‌lito de Competência 2003.00.2.009683,
Órgão Julgador: 1ª Câmara Cível, Rel. Fernando Habibe, 10.12.2003 (af‌irmando que o direito brasilei-
ro não reconhece casais homossexuais como entidades familiares); BRASIL. Tribunal de Justiça de Sergipe,
Conf‌lito de Competência No. 0100/06, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Rel. Gilson Go is Soares, 21.0 3.2007
(decidindo que só as varas cíveis têm competência para decidir casos relativos às uniões homoafetivas por-
que a legislação brasileira não as reconhece como entidades famil iares); BRASIL. Tri bunal de Justiç a de São

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