Cidadania, democracia e direitos sociais: impasses e desafios em um século de história no Brasil

AutorLucília de Almeida Neves Delgado
Páginas36-67
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CIDADANIA, DEMOCRACIA E DIREITOS SOCIAIS: IMPASSES E DESAFIOS EM
UM SÉCULO DE HISTÓRIA NO BRASIL
CITIZENSHIP, DEMOCRACY AND SOCIAL RIGHTS: IMPASSE AND
CHALLENGES DURING ONE CENTURY OF BRAZILIAN HISTORY
Lucília de Almeida Neves Delgado
1
RESUMO: Análise dos impasses e desafios que os fenômenos da cidadania, da democracia e
dos direitos sociais vivenciaram no Brasil ao longo de, aproximadamente, cem anos de História
da República, entre a sua proclamação, ocorrida em 1891, e a promulgação da Constituição de
1988. Partindo do estudo dos projetos e modelos de cidadania vivenciados no mundo ocidental
no processo civilizatório contemporâneo, o artigo investiga os diversos períodos republicanos
característicos do País, com os avanços e os recuos relativamente à cidadania, à democracia e
aos direitos sociais.
Palavras Chaves: Cidadania; Democracia; Direitos sociais; Cidadania na república brasileira;
Constituição de 1988 e cidadania.
ABSTRACT: This article aims to discuss the impasse and challenges faced by citizenship,
democracy and social rights in Brazil during one hundred years of republican history which
goes from the Republic's proclamation in 1891 until the Constitution of 1988. We study the
projects and models of citizenship that took place in the Western during the contemporary
Artigo recebido em 02 de dezembro de 2016
1 Professora Titular do Mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas do Centro Universitário do Distrito
Federal (UDF). Doutora em Ciência Humanas/Ciência Política pela USP (19 89). Mestre em Ciência Política pela
UFMG (1979). Bacharel em História pela Universidade Fed eral de Juiz de Fora (1974 ). Autora de dezenas de
livros e artigos sobre a História da República no Brasil. Pesquisadora da FAPEMIG e do CNPq no período de
1990 a 2007. Presidente d o Conselho Curador da FAPEMIG de 2004 a 2008. Consultora ad hoc da CAPES e da
FAPESP (atual).
RDRST, Brasília, Volume 2, n. 2, 2016, p 36-67, jul-dez/2016
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civilization in order to discuss the Brazilian republican periods and their progresses and
regresses related to citizenship, democracy and social rights.
Keywords: Citizenship; Democracy; Social rights; Citizenship in the Brazilian republic;
Constitution of 1988 and citizenship.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca abordar a evolução, durante o primeiro século de existência da
República no Brasil, de 1891 a 1988, dos temas correlatos da cidadania, da democracia e dos
direitos sociais, com seus impasses e desafios nesse significativo período de história.
Apresenta, inicialmente, um panorama introdutório sobre o assunto, consideradas as
fases e principais problemas enfrentados pela cidadania e democracia no País, desde a
Proclamação da República até a promulgação da Constituição de 1988.
Em seguida, faz uma abordagem sobre as correlações entre cidadania e direitos, para destacar,
nesse quadro, os direitos sociais. Apresenta, então, dentro de uma perspectiva mais ampla, os
projetos de cidadania e seus modelos comparativos no processo civilizatório contemporâneo.
Passa o artigo, logo após, a discorrer sobre os impasses e desafios na construção da
cidadania na história da República Brasileira. Enfoca as distintas fases de vivência dessas
temáticas, desde a Primeira República (1891-1930), passando pela República Nacional
Centralizadora (1930-1945), em seguida pela República Democrático-Desenvolvimentista
(1945-1964), o período autoritário civil e militar (1964-1985), até a instituição da Nova
República (1985) e o sentido da promulgação da Constituição Federal de 1988.
O estudo se conclui com a análise do papel da Constituição da República de 1988, na
qualidade de momento e mecanismo de afirmação e institucionalização da cidadania, da
democracia e dos direitos sociais no País.
2
2 O tema da cidadania e da democracia tem sido recorr ente nas pesquisas e obras realizadas por esta autora ao
longo de décadas. Especificamente, citam-se dois artigos anteriormente publicados. De um lado, Cidadania e
república no Brasil: história, d esafios e projeção no futuro. In PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria
Tereza Fonseca (Org.) Cidadania e Inclusão Social: estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de
Sousa Gustin. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 321 -335. De outro lado, Democracia, república e cidad ania hoje.
Análise e Conjuntura, Belo Horizonte, v. 2/3, 1 989, p. 341-342.
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1. PANORAMA HISTÓRICO PRELIMINAR
Uma característica recorrente da República Brasileira é o permanente desafio referente
à consolidação da democracia. Na verdade, a prática da democracia no Brasil e a plena
realização da cidadania apresentam-se como um enigma histórico a ser decifrado, pois a
tradição do País tem sido marcada por dois tipos de movimentos: o primeiro refere-se à
facilidade com que experiências democráticas são interrompidas e/ou descaracterizadas no
decorrer do período republicano; o segundo relaciona-se à permanência residual e paradoxal de
práticas políticas autoritárias em conjunturas de exercício político da democracia.
Esse dilema histórico, que marca como tatuagem a História do Brasil, deve-se, entre
outras razões, à trágica herança do passado colonial e patrimonialista do Brasil. Desta forma,
retrocedendo-se às origens do Estado nacional brasileiro, é identificada uma série de obstáculos
à plena realização da cidadania. Naquele período, era particularmente difícil se constituírem
formas de participação política e social efetivas e extensivas a um amplo espectro da população
componente da primitiva sociedade civil brasileira. Tais dificuldades relacionavam-se,
principalmente, à situação de forte dependência (ausência de autonomia) política e econômica
do País.
Neste sentido, nos primórdios da luta pela constituição da nacionalidade brasileira, os
esforços para a conquista e o estabelecimento dos direitos da cidadania confundiram-se com
movimentos em prol da independência nacional. Tal fato repetiu-se nas diferentes conjurações
reivindicativas da soberania política para o Brasil. Todavia, tornou-se paradigmático com a
Inconfidência Mineira, marcada pela rebeldia dos inconfidentes, que difundiram a idéia de
república representativa, aliada à proposta de independência política da nação.
Naquela conjuntura, alcançar o estatuto da cidadania significava, simultaneamente,
constituir em Estado Nacional independente, cujos habitantes não fossem simplesmente
súditos, mas sim cidadãos livres. Dessa forma, no Brasil, bem como nos demais países latino-
americanos, a formação da cidadania relacionou-se a um objetivo que se tornou permanente, a
própria formação da nacionalidade. Cidadania e identidade nacional, desde então, passaram a
constituir dois lados de uma mesma moeda, pois como afirma Carvalho:
Cidadania é também a sensação de pertencer a uma comunidade, de participar de valores
comuns, de uma história comum, de experiências comuns. Sem esse sentimento de identidade

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