O cibercrime

AutorJosé de Oliveira Ascensão
Páginas407-427
O CIBERCRIME
José de Oliveira Ascensão
1. Os antecedentes
A disciplina dos direitos intelectuais é frequentemente reforçada pelo
recurso a sanções penais.
Em Portugal, essa tendência é exacerbada. Logo a primeira lei geral so-
bre a chamada propriedade industrial estabelecia com abundância tipos pe-
nais. Essa tendência manteve-se sempre, por vezes com efeitos quase anedóti-
cos: é assim que no Código da Propriedade Industrial de 1940 a concorrência
desleal é meramente prevista como um tipo de crime, ao ponto de se ter posto
em dúvida que houvesse um ilícito civil de concorrência desleal!
Idêntica tendência se manifesta no domínio do direito autoral.1 A OMPI e a
Unesco, nomeadamente, associam-se desde há tempos à pressão neste sentido.2
Essa tendência comunica-se logo às primeiras leis sobre informática. Os
bens informáticos são apresentados, por pressão dos Estados Unidos da Amé-
rica, como objeto de direitos de autor, não obstante terem caráter meramente
tecnológico; deste modo, a sujeição à lei penal é defendida como consequência
automática da subordinação ao CDADC. Acresce a vulnerabilidade intrínse-
ca dos bens, redes e dados informáticos, que motiva uma grande pressão em
nível mundial para com o recurso a sanções violentas intimidar os eventuais
utilizadores.
1 Entendemos por direito autoral o ramo de direito que abrange o direito de autor e os direitos
conexos.
2 É assim que no mesmo volume do Bulletim du droit d’auteur da Unesco (vol. XXVI, n.º 3, 1992)
são publicados dois artigos sobre a matéria: um de Denis de Freitas, La piraterie en matière de
propriété intellectuelle et les mesures à prendre pour la réprimer; outro, este de caráter científico,
de Carlos A. Villalba, La répression pénale dans l’ordre internationale. Le régime international des
sanctions pénales du droit d’auteur. Note-se no primeiro o recurso ao termo pirataria, que é já de
si um termo engajado e não científico.
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Na Europa, essa pressão produziu a Recomendação do Conselho da Eu-
ropa nº R (89) 9, de setembro de 1989, que continha uma lista mínima e outra
facultativa de crimes informáticos.
Na sequência, foi aprovada em Portugal a Lei n.º 109/91, de 17 de agosto,
que regula a criminalidade informática, copiando praticamente aquela Reco-
mendação.3 Chega-se a consequências aberrantes. Entre os tipos previstos en-
globa-se a lesão do exclusivo de programas de computador (art. 9º). O surpre-
endente é que ao tempo não fora estabelecida ainda a proteção dos programas
pelo direito de autor em Portugal. A lei respectiva só foi aprovada em 1994. A
previsão do art. 9º tem de ser entendida como uma regra penal em branco, cujo
conteúdo só foi dado em 94, tornando-a eficaz.
Não é aliás a única anomalia, resultante do açodamento na cópia de um
texto alheio. O art. 9/1 pune também quem divulgar sem autorização um progra-
ma. Mas não há na ordem jurídica portuguesa nenhuma proibição de divulgar
programas. A previsão está na linha da tutela norte-americana do segredo: este é
ali altamente empolado e constitui objeto de um direito autônomo. Mas não é o
que se passa entre nós. Não há nenhum direito cujo objeto seja a preservação de
um segredo; nem a referida proteção do programa de computador pelo direito
de autor o veio introduzir. Poderá ser secreto o código-fonte, mas o programa
não é objeto de segredo. O art. 1/2 do Dec.-lei n.º 252/94, de 20 de Outubro,
atribui ao programa proteção análoga à conferida às obras literárias. A proteção
conferida às obras literár ias é uma proteção da expressão. Um alegado direito ao
segredo sobre o código-fonte nada tem que ver com a expressão do programa.
Há nisto mais uma manifestação d a atual deriva do Direito Penal Eco-
nômico. Enquanto o Direito Penal nuclear sofre uma contração cada vez maior,
para o reconduzir a um mínimo representado por infrações com conteúdo éti-
co, o Direito Penal Econômico é ampliado e instrumentalizado para defesa dos
interesses econômicos dominantes. Multiplicam-se e tornam-se mais abran-
gentes os tipos e agravam-se as penas aplicáveis.
Hoje, aumenta a convicção de que o Direito Penal é pouco adequado para
a defesa do Direito Intelectual, fora do núcleo justamente dos tipos com conteúdo
3 Sobre esta lei, veja-se o nosso Criminalidade Informática, in “Direito da Sociedade da Informa-
ção”, vol. II, APDI / C oimbra Editora, 2001, 203; A. G. Lourenço Martins, Criminalidade Infor-
mática, in “Direito da Sociedade da Informação”, vol. IV, APDI / Coimbra Editora, 2003, 9 e segs.
Sobre a dogmática da tutela penal da internete, veja-se Sérgio Seminara, La pirataria su internet e
il diritto penale, in “Riv. Trimestrale di Diritto Penale dell’Economia, nº 1-2, Janeiro-Junho 1997,
71 e segs. Sobre a situação de lege ferenda e de lege lata no Brasil, veja-se Guilherme Guimarães
Feliciano, Informática e Criminalidade, Nacional de Direito 2001.

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