O cheque 'pós-datado': a realidade brasileira e à solução legal Argentina

AutorRoberta Nioac Prado
Páginas135-158

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Pretendem-se discutir neste traba-lho algumas questões que envolvem o cheque pós-datado: enquanto instrumento amplamente inserido nos usos e costumes comerciais, mas sem amparo legal, e seu paralelo em um sistema jurídico que o recepcionou e o regulou.

Conforme veremos adiante, a situação jurídica do cheque pós-datado, vulgarmente denominado "pré-datado", é distinta no Brasil e na Argentina.

Tal se dá pelo fato de haver o legislador Argentino, através da Lei 24.452, de 1995, arts. 54 e ss., incorporado-o na legislação cambial denominando-o "cheque de pago diferido".

No Brasil, ao contrário, o cheque pós-datado não possui amparo legal. E assim que dispõe a nossa legislação atualmente em vigor - Lei 7.3572 de 2.9.1985, em seu art. 32: "O cheque é pagável à vista. Considera-se não-escrita qualquer menção em contrário. Parágrafo único. O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação".

Ademais, dispõe o art. 1° da mesma lei: "O cheque contém: (...) V - a indicação da data e do lugar de emissão".

Isto significa que o cheque, segundo os dispositivos pátrios supramencionados, é obrigatoriamente ordem de pagamento à vista, tendo como um de seus requisitos formais a data de sua emissão, também necessária para efeitos de contagem de prazo de prescrição (art. 33 da Lei do Cheque).3

Por outro lado, em razão do corrente uso comercial que se faz de cheques pós-datadòs, ainda na vigência da Lei Uniforme de Genebra,4 anterior à atual Lei do Cheque, a jurisprudência pátria predominante, podendo-se quase dizer absoluta, há algumas décadas firmou-se seguindo a doutrina no sentido de que o cheque, ainda que emitido com data futura, ou sem data - em branco -, não se desnatura como título cambiariforme que é, nem tampouco como título executivo extrajudicial.5

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Neste sentido citamos algumas jurisprudências, em ordem cronológica:

"(...) Cheque pós-datado: a pós-data no cheque não acarreta a sua nulidade. O art. 28 da Lei Uniforme admite o cheque pós-datado quando determina ser o cheque pagável no dia de sua apresentação, antes mesmo do dia indicado como data de emissão."6

"(...) Cheque pós-datado. Segundo jurisprudência amplamente predominante nesta corte, o lançamento de data futura no cheque não o descaracteriza como tal, nem lhe retira a força executória. Precedentes pretorianos e aplicação do art. 28 da Lei Uniforme (...),"7

E após o advento da Lei do Cheque, de 1985:

"Cheque em branco e pós-datado. Validade e eficácia. Irregularidade no seu preenchimento, em desacordo com o que fora pactuado entre emitente e favorecido original. Aval. Boa-fé do avalista. Não invalida o cheque o fato de ter sido dado em branco, nele aposta apenas a assinatura do emitente. O essencial é que o cheque esteja completo e devidamente preenchido no momento em que o portador exerça direito dele decorrente. Dando cheque em branco, o emitente outorga mandato ao portador para preenchê-lo no momento adequado8.

"Declaratória. Cambial. Cheque. Título que mesmo pré ou pós-datado não perde a cambiaridade. Decisão saneadora que designou data para realização de audiência e deferiu dilação probatória. Desnecessidade. Recurso Provido para esse fim."9

"Cheque pós-datado. Executividade. O cheque pós-datado, emitido em garantia de dívida, não se desnatura como título cambiarifofme, nem tampouco como título executivo extrajudicial. Precedentes do STJ. Recurso especial conhecido, mas improvido."10

"Execução. Cheque pré-datado. Executividade. O cheque não perde a força executiva pelo fato de ter sido emitido 'pré ou pós datado'. A alegação de que o beneficiário não emitiu as notas fiscais relativas a compra e venda realizada não exime o emitente do cumprimento da obrigação cambiaria."11

Temos, assim, já consolidado o entendimento dos Tribunais no sentido de que a pós-datação do cheque, ou a sua emissão sem data, não pode ser arguida como causa de nulidade ou de descaracterização do título cambial, que mantém a sua validade e força executiva.

Neste mesmo entendimento, na vigência da Lei Uniforme de Genebra, a doutrina de Tito Fulgêncio: "Emitido com data falsa, aposta a data antes da emissão, o título, revestido dos demais requisitos, produz todos os efeitos cambiais (...) O cheque com data falsa é formalmente regular, nem o sacado, munido da provisão, teria razão para não pagá-lo".12

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Também, Pontes de Miranda: "A pós-data e a antedata não atingem o cheque, quer em sua existência, quer em sua validade, quer em sua eficácia".13

Finalmente, Rubens Requião: "A Lei Uniforme consignou o princípio vitorioso de que se considera não escrita qualquer menção que importe em tornar o cheque não à vista e, mesmo que indique outro vencimento, pode não obstante ser apresentado imediatamente a pagamento".14

Ademais, é costume dos bancos, quando o emitente tem fundos na conta, pagar os cheques pós-datados antes da data nele escrita, como se fora a data constante a do dia da sua apresentação. Tal conduta, por ser amparada pela atual Lei do Cheque - art. 32 c/c art. 40 - não pode implicar em responsabilidade da instituição financeira.

Por outro lado, como se sabe, é amplamente aceito pelos usos e costumes comerciais brasileiros a utilização do cheque pós-datado, podendo-se dizer que em inúmeras situações, na prática, o cheque é transformado de instrumento de ordem de pagamento à vista em instrumento de promessa de pagamento.

Entretanto, tal situação, de usos e costumes comerciais diversos do que dispõe a lei, pode desencadear um problema de difícil solução, qual seja, a de o beneficiário apresentar o cheque para saque antes da data convencionada, causando prejuízos ao emitente que pode não ter fundos, ou ter outros cheques devolvidos em razão deste desconto.

Neste caso, pergunta-se: terá o emitente de boa-fé que, amparado pelos usos e costumes comerciais, realizou negócio contrariamente ao que dispõe a lei, alguma pro-teção legal?

A questão não é de fácil solução. Temos na nossa jurisprudência decisão, data-da de mais de 30 anos, que preceituou ser o cheque pós-datado instrumento de mera garantia, deixando, portanto, de ser ordem de pagamento à vista. Vejamos:

"Cheque pós-datado equipara-se à promissória, desnatura-se, deixa de ser ordem de pagamento à vista, para garantir apenas execução de contrato."15

Também decisão recente, no mesmo sentido:

"Contrato. Cheques pós-datados ou pré-datados. Promessa de pagamento. (...) o cheque pós-datado ou pré-datado, de uso corrente nos dias de hoje, inclusive componente essencial de inúmeras campanhas comerciais e promoções publicitárias, desvirtua totalmente o citado título de crédito, transformando-o em promessa de pagamento, como se fosse uma nota promissória. A partir do caucionamento de tais cheques com reforço de garantia a cédula de crédito, vincularam-se os mesmos como mera garantia e não como ordens de pagamento a vista (...)."16

Tais decisões são importantes na medida em que recepcionam a validade do cheque pós-datado, de ampla utilização comercial, e abrem caminho para criar jurisprudência de fundamental importância na proteção de pessoas que agem de boa-fé, levadas pelos usos e costumes e, muitas vezes, induzidas em erro por desconhecimento da lei.17

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Referimo-nos à questão da imputação de penalidade criminal àquele que no momento em que emite cheque pós-datado não possui fundos disponíveis depositados na instituição financeira - o sacado.

Como se sabe, a emissão de cheques sem provisão configura-se crime contra o património, punível com reclusão de 1 a 5 anos, nos termos do art. 171, §-29, inc. IV do Código Penal: "§ 2°: Nas mesmas penas incorre quem: IV - Emite cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento".18

Ora, não seria razoável processar-se e, mais grave ainda, punir-se com reclusão, pessoa que emitiu cheque pós-datado, com anuência do beneficiário, em momento que não contava com fundos necessários, mas que na data acordada teria tais fundos disponíveis.

Neste entendimento, a jurisprudência caminhou no sentido de não acatar como figura delitual penal, consubstanciada em crime contra o património, a emissão de cheques pós-datados, sem fundo disponível, vindo a surgir a Súmula 246 do Supremo Tribunal Federal, que assim dispõe "comprovado não ter havido fraude, não se configura o crime de emissão de cheque sem fundos".

Atualmente, no plano penal, a questão é pacífica, conforme se vê do acórdão a seguir:

"Estelionato. Cheque sem provisão de fundos. Pós-datação - garantia de dívida. Conforme a torrencial jurisprudência dos Tribunais, a consensual emissão de cheque com data posterior, de uso corrente nas operações comerciais a curto prazo, não configura emissão de cheque sem fundos (Súmula 246 - STF)."19

Todavia no plano civil a questão ainda não é pacífica, muitas vezes deixando desamparado aquele que age de boa-fé e dentro de práticas aceitas pelos usos e costumes.

William Marinho de Faria, em sua dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,20 lembra, ao citar Valdir de Oliveira Rocha, que: "Não se pode esquecer que o cheque pós-dâtado é acatado nâs transações por conveniência do emitente e do beneficiário. Às vezes, o emitente não dispõe de fundos no momento; ou pretende reservar a disponibilidade para outro negócio; ou então quer deixar pago (ou melhor, encaminhado) o pagamento das prestações futuras. Por seu turno, o beneficiário vê no

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cheque pós-datado a possibilidade de fechar negócios a prazo, com muita rapidez, boa margem de segurança. Diante do acatamento do cheque pós-datado, é inconcebível a apresentação antes do prazo pactuado. Esse é o risco que corre contra o emitente, que poderá ter seu nome registrado no Cadastro de Emitentes de Cheque sem Fundos".

Ou seja, presume-se que, ao menos na maior parte das vezes, o cheque tenha sido emitido pós-datado em razão do interesse e consentimento...

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