Cédula de crédito bancário

AutorPaulo Salvador Frontini
Páginas52-67

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1. Introdução

O provimento do Poder Executivo que "dispõe sobre a Cédula de Crédito Bancário", sujeito por ora às oscilações legislativas próprias à sua textura de medida provisória, faz por merecer, desde logo, algum destaque, pelas inovações que introduz no complexo normativo formado por títulos de crédito e valores mobiliários.12

2. Título de crédito criado por medida provisória

A primeira observação que o diploma sugere diz respeito à sua discutível consti-tucionalidade. Optou o Poder Executivo Fe-

"MEDIDA PROVISÓRIA N. 1.925, DE 14 DE OUTUBRO DE 1999 (DOU 15.10.1999)

"Dispõe sobre a Cédula de Crédito Bancário.

"O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:

"Capítulo I - Da Cédula de Crédito Bancário

"Art. 1°. A Cédula de Crédito Bancário é título de crédito emitido, por pessoa física ou jurídica,

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deral por instituir o novo texto legal pelo caminho - surpreendente, no caso - da edição de medida provisória.

Surge, assim, desde logo, a pergunta: estaria o objeto da novíssima norma reves-tido daqueles pressupostos de relevância e urgência, que, no texto escrito da Constituição (art. 62, caput), figuram como os únicos fatores que ensejam a adoção de medida provisória? .

Pedindo vénia aos cultores do Direito Constitucional, ousamos antecipar entendimento negativo. A relevância da questão,

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para os efeitos do art. 62 da CF, por óbvio não significa sua importância para a área sócio-econômica a que se destina, já que todo assunto que é passível de converter-se em lei é, ipso facto, relevante. A rele-vância a que a Constituição se refere tem conteúdo excepcional sob o ponto de vista das questões de Estado, que hão de repercutir, direta ou indiretamente, sobre toda a coletividade nacional. Não parece que seja o caso, eis que a medida provisória em pauta apenas pode ser vista, em tese, como um

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aperfeiçoamento dos instrumentos legais destinados à regência jurídica de operações de crédito.

O mesmo cabe dizer do requisito constitucional da urgência, que inèxiste no caso. É que pelo menos a partir de 1908 - data de promulgação do Decreto 2.044, sobre letras de câmbio e notas promissórias - inú-meros diplomas foram promulgados, e estão em vigência, dando funcionalidade e segurança jurídica às relações que se formam em torno a operações de crédito e aos títulos criados com base nestas. E é no tópico da segurança jurídica que os institutos jurídicos instituídos pela MP 1.925 deverão ensejar fortes cautelas, para todos os

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interessados, devedores - inclusive coobri-gados e garantes - e credores, que deles se utilizarem.

Como ficarão os créditos incorporados à Cédula de Crédito Bancário ou ao Certificado de Cédula de Crédito Bancário (título de crédito criado também pela mesma medida provisória, em seu art, 19, para fins de alavancagem no mercado financeiro nacional ou internacional, conforme abaixo, n, 3) se no futuro, e em instância final, vier a ser reconhecida a inconstitu-cionalidade dessa medida provisória? Ario-te-se que foi aforada perante o Supremo a ADIn 2.150-8, questionando a incompatibilidade com a Constituição dos arts. 11 e 18 da medida provisória em foco.

Haverá alguma dúvida de que devedores executados argiiirão a inconstitucio-nalidade da Cédula de Crédito Bancário criada por tão exótico meio de iniciativa de processo legislativo?

Restará, então, aos credores apenas o acesso às vias ordinárias?

Nesse caso, como ficarão os garantes e as garantias?

Dir-se-á, em resposta, que o Legislativo e o Judiciário têm sido dóceis ao expanr sionismo legiferante do Executivo, via ado-ção de medidas provisórias.

Assim já aconteceu inúmeras vezes, não sem fortes objeções, aliás crescentes, pelo quê, a nosso ver, o horizonte não se mostra assim tranquilo para que credores dispensem sua prudente cautela em tema de formalização jurídica de operações de cré-dito por meio do novel título de crédito.

É verdade que, se o Congresso Nacional converter a medida provisória em lei, será forte o argumento de que a avaliação sobre a pertinência do processo legislativo adotado é matéria política, de apreciação exclusiva do Congresso Nacional, uma questão interna corporis, não apreciável, quanto a seu mérito, pelo Poder Judiciário: Nesse sentido há o precedente da ADIn 1.667-9-DF, relator o Exmo. Min. limar Galvão, em plenária do STF, cuja ementa destaca: "(...) nao cabe ao Poder Judiciário aquilatar a presença, ou não, dos critérios de relevância e urgência exigidos pela Constituição, para a edição de medida provisória (cf. ADIn 162,526,1.397 e 1.417)".

Urge reconhecer, todavia, que esta questão já não está sendo vista de modo tão pacífico, especialmente quando se invoca a teoria do excesso do poder de legislar, trazida à colação por Clémerson Merlin

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Clève (Medidas Provisórias, 2- ed., São Paulo, Max Limonad, 1999, p. 139), colacionando precedentes jurisprudenciais em que a matéria foi posta, tendo em um caso sido acolhida (ADIn/MC 1.753-DF, rei. Min. . Sepúlveda Pertence, DJU 12.6.1998).

3. Nasce também o Certificado de Cédula de Crédito Bancário

Convém, ao exame da matéria, não deixar desapercebido que a MP 1.925, que "dispõe sobre a Cédula de Crédito Bancário" (omitindo-se a ementa sobre a rotineira complementação "e dá outras providências", inexistente, no caso), na verdade criou Um segundo título circulatório; o Certificado de Cédula de Crédito Bancário, cuja sigla é CCB (e teria sido melhor CCCB), conforme desponta no art. 19 do diploma presidencial. Em.contrapartida, a MP 1.925, rompendo com a tradição das normas que regem os títulos de crédito congéneres, não criou Nota de Crédito Bancário, o que será analisado adiante.

4. A solução brasileira das cédulas de crédito

Interessante, de qualquer modo, é fa- zer o registro desse caminho brasileiro para os títulos de crédito, bem relatado por Brandão de Oliveira (Direito Cambiado, Belém, CEJUP, p. 314). Apareceu, entre nós, em 1937, na forma da primitiva Cédula de Cré-dito Rural, regida, posteriormente, com nova feição, pela Lei 3.253, de 27.5.1957, e atualmente pelo Decreto-lei. 167, de 14.2.1967, e vem ganhando formato próprio e típico, através da Cédula de Crédito Industrial (Decreto-lei 413, de 9.1.1969), Cédula de Crédito à Exportação (Lei 6:313, de 16.12.1975), Cédula de Crédito Comercial (Lei 6.840, de 3.11.1980) e Cédula de Produto Rural (Lei 8.929, de 22. 8. 1994). Façà-se o registro, também, da Cédula Hipotecária (Decreto-lei 70, de 21.11.1966) e da Cédula de Debêntures, surgida na reforma parcial da Lei de Sociedades Anóni-mas, em maio de 1997 (nova redação ao art. 72 da Lei 6.404, conforme Lei 9.457, de 1997). Estes dois últimos títulos, todavia, têm função diferente das demais cédulas, parecendo adequado dizer que se voltam mais para o mercado de capitais, tendo marcada vocação para operar como valores mobiliários, inserindo-se no sistema próprio dos títulos padronizados, lançados no mercado, sob autorização e fiscalização do Poder Público (CVM) e negociados em massa. Deles se diferencia o sistema dos títulos de crédito, como bem registra Bulgarelli ("Os valores mobiliários como títulos de crédito", Títulos de Crédito, 13-ed., São Paulo, Atlas, pp. 98 e ss.). Das cédulas vocacionadas para o mercado de capitais não se ocupará este estudo, salvo para referir, desde já, que o Certificado de Cédula de Crédito Bancário (supra, n. 3) em tudo propende para o mercado de capitais, como valor mobiliário.

A verdade é que a modelagem de títulos de crédito como. cédulas de crédito e notas de crédito até hoje deu bons resultados, especialmente pela associação dessas promessas de pagamento a sistemas especializados, oficiais ou não, de linhas de cré-: dito, em correspondência, estas, com o interesse de segmentos especializados da produção e com políticas públicas valorizado-ras dessas áreas de atividade económica.

Quer dizer que sempre que foi adota-da pelo Governo da República determinada política económica, por força da qual certa área de produção passou a merecer o amparo de linhas especiais de crédito, destinadas a segmentos preferenciais da atividade económica, foi, ao mesmo tempo, ela-. borada legislação destinada a instrumentalizar as respectivas operações de crédito. Essa instrumentalização deu-se através da criação de cédulas de crédito e notas de crédito, próprias para os empresários contemplados com os respectivos financiamentos.

Daí decorre a fácil identificação, na história económica recente do Brasil, da Cédula de Crédito Rural com uma política de financiamento oficial à agricultura, ser-

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vida porfunding exclusivo; do mesmo modo, a Cédula de Produto Rural é uma ten-tativa de política de financiamento priva-do à produção rural, que o mercado seria capaz de cumprir (1994). A Cédula de Crédito Industrial tem sua aparição associada à política de consolidação de um parque industrial brasileiro, nos fastos do milagre brasileiro (1969); a Cédula de Crédito à Exportação nasceu em plena política económica voltada a obter saldo credor na balança comercial, impondo o favdrecimento dos...

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