Responsabilidade civil por fato/ vício do serviço nas profissões liberais: aspectos controvertidos da responsabilidade médica

AutorSamuel Dal-Farra Naspolini
CargoMestrando pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: snaspolini@hotmail.com
Páginas599-619

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1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a responsabilidade civil dos profissionais liberais decorrente de fato e/ou vício dos serviços prestados aos clientes, interpretando-a no contexto jurídico do Código de Defesa do Consumidor (CDC - Lei nº. 8.078/ 90), com ênfase especial sobre a responsabilidade dos prestadores de serviços médicos. Justifica a relevância do tema selecionado, além de sua evidente atualidade, a [aparente] controvérsia doutrinária e jurisprudencial provocada pelo regime especial de responsabilização das profissões liberais, expressamente vinculado à teoria subjetivista da responsabilidade civil1 pelo próprio CDC (art. 14, §4º), muito embora constitua traço característico do sistema introduzido a partir de 1990 a obrigação reparatória dos fornecedores independente da comprovação de culpa (CDC, arts. 12, 14, caput, 18 e 20).

Para tanto, urge a princípio precisar os contornos gerais das categorias utilizadas pelo diploma consumerista, delineando os âmbitos próprios da responsabilidade por fato e vício dos serviços. Na seqüência, impende-se caracterizar as profissões liberais, resgatando alguns aspectos históricos de sua evolução até a definição contemporânea. Discutir-se-á neste tópico, em linhas gerais, os principais fatores jurídicos, políticos e econômicos que impulsionaram a criação - ou a preservação - de um regime próprio de responsabilização civil para estes profissionais.

A principal destas razões - a natureza da atividade desempenhada - será analisada de forma mais aprofundada, verificando-se aqui o elemento essencial para a melhor exegese do art. 14, §4º do Diploma Consumerista pátrio segundo a moderna Teoria Geral das Obrigações.

Por fim, tratar-se-á de uma atividade específica - a Medicina -, talvez a atividade profissional em que a precisão dos limites entre os dois sistemas de responsabilização estabelecidos pelo CDC - o regimePage 600 geral objetivo e a exceção subjetiva - provoque maior controvérsia, dado o conteúdo essencialmente pessoal dos "danos" médicos, incidentes sobre os mais caros direitos da personalidade. Apresentarse-ão argumentos fáticos e jurídicos, expostos por juristas e profissionais da Medicina, que variam desde a violenta denúncia até o elogio explícito do sistema consumerista. Tópico essencial para o desenvolvimento do artigo, serão os argumentos ilustrados por excertos jurisprudenciais selecionados, que bem atestam a polêmica que [ainda] permeia a interpretação judicial sobre algumas questões referentes à responsabilidade civil das profissões liberais.

Em síntese, busca o presente artigo oferecer respostas adequadas para a problemática suscitada pelos preceitos legais já referidos, na seqüência: a) quem são, nos dias de hoje, os profissionais liberais a que se refere o art. 14, §4º do CDC; b) em que medida podem os vínculos estabelecidos com a clientela no desempenho de suas atividades ser classificados como relações de consumo e, por conseqüência, regidos pelas normas protetivas do CDC; e, por fim, c) especificamente sobre o disposto no art. 14, §4º, qual seria o alcance de tal preceito, quando analisado sob a ótica de uma teoria geral das obrigações negociais pretensamente conciliatória entre os sistemas objetivo e subjetivo de responsabilidade civil.

2. Responsabilidade por fato e por vício do produto ou serviço

A dualidade na disciplina da responsabilidade dos fornecedores, traduzida no CDC pelas regras distintas das Seções II e III do Capítulo IV ("Da qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos"), concernentes ao fato e ao vício de produtos e serviços respectivamente, decorre dos âmbitos diferenciados de tutela das duas seções, conquanto derivados de uma razão única, qual seja, o defeito do produto ou serviço.

Segundo Denari entende-se por defeito ou vício de qualidade a qualificação de desvalor atribuída a um produto ou serviço por não corresponder à legítima expectativa do consumidor, quanto à sua utilização ou fruição (falta de adequação), bem como por adicionar riscos à integridade física (periculosidade) ou patrimonial (insegurança) do consumidor ou de terceiros. (2001, p.155).

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Ora, se todo defeito pode ser traduzido em uma expectativa frustrada do consumidor quanto às vantagens prometidas pelo produto ou serviço, desdobrar-se-ão tais defeitos algumas vezes somente na inutilização parcial ou total da coisa ou serviço para os seus fins declarados, e aí caracterizar-se-á o vício do produto ou serviço; ou o defeito comprometerá direitos outros do consumidor, tais como a segurança e a incolumidade física, não diretamente conexos com o desempenho do produto ou serviço considerado em si.

Haverá aqui, por conseguinte, fato do produto ou serviço, potencialmente lesivo tanto ao consumidor quanto a terceiros alheios à relação de consumo, mas sujeitos contudo aos riscos provocados por esta categoria especial de defeito. Na concisa explicação de Denari:

Para bem explicitar a distinção entre os dois modelos de defeitos e responsabilidade, podemos considerar as seguintes situações jurídicas: a) um produto ou serviço pode ser defeituoso sem ser inseguro; b) um produto ou serviço pode ser defeituoso e, ao mesmo tempo, inseguro. (2001, p.156).

Na primeira hipótese, estar-se-á diante de vício do produto ou serviço; no segundo caso, cuidar-se-á de fato.

No mesmo sentido, comenta Noronha que não obstante a existência de três outras modalidades de responsabilidade do fornecedorpré-contratual, negocial e civil em sentido estrito - a responsabilidade por fato e vício dos produtos e serviços assume relevância ímpar no sistema do CDC. Ao recepcionar os critérios distintivos dos defeitos por inadequação ou insegurança, afirma o autor que: enquanto na responsabilidade por vício do produto ou do serviço os danos ainda são 'internos ao contrato', isto é, ainda são devidos a um defeituoso adimplemento da obrigação contratualmente assumida pela fornecedor (...) na responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço o defeito é causa de danos fora da relação contratual. (2002, p.397).

Assim, o vício do produto ou serviço atine ao defeito da prestação em si, aproximando-se da responsabilidade negocial por inadimplemento, dado o vício in re ipsa do objeto negocial. Por sua vez, a responsabilidade por fato do produto ou serviço vincula-se à responsabilidade civil geral, ou em sentido estrito, dado que sua configuração deriva de violação expressa ao princípio jurídico dePage 602 neminem laedere. Eis a razão pela qual nesta segunda modalidade prevê a lei a equiparação de terceiros eventualmente lesados à figura do consumidor (CDC, art. 17), hipótese pouco provável quando da ocorrência de vícios do produto ou serviço, submetidos que estarão estes últimos aos interesses específicos do consumidor contratante.

O princípio geral de ambas as modalidades aponta para a responsabilidade objetiva e solidária dos fornecedores (CDC, arts. 12, 18 e 20). No que tange aos profissionais liberais, a cláusula excepcional que preconiza a culpa como elemento indispensável de sua responsabilidade insere-se na seção relativa aos fatos dos serviços, razão pela qual alguns autores indicam a vigência plena do sistema objetivo quando ocorrido vício do serviço prestado.2 Ressalte-se que muito embora na Medicina, por exemplo, seja tal distinção pouco operante, considerando os danos pessoais extracontratuais inerentes ao fato do serviço médico, sua recepção na disciplina jurídica de outras atividades liberais praticamente inutilizaria a exceção subjetivista do art. 14, §4º, daí sua reduzida aceitação doutrinária e jurisprudencial.

3. Os profissionais liberais
3.1. Aspectos históricos

O exercício profissional análogo ao que hoje se conhece por liberal já pode ser percebido na Antigüidade clássica greco-romana. Em tais sociedades, erigidas sobre o modo de produção escravista, tendiam as classes superiores à vida ociosa e contemplativa3, em razão do disseminado desprezo pelo trabalho manual considerado indigno para homens livres. Na escala social da época, gozavam de status pouco superior aquele dos escravos mesmo os homens livres dedicados a trabalhos manuais, conhecidos como mercenários devido a remuneração percebida mediante salário (merces). (VASCONCELOS, 2003, p.17-37).

Havia em Roma, entretanto, certo estamento que, conquanto não dispusesse de recursos materiais para financiar a contemplativa vida aristocrática, exercia, à época, ofício sumamente distinto daquele dos trabalhadores manuais. Tal classe, com efeito, caracterizava-se peloPage 603 domínio de certos saberes especiais, cujo cultivo e desenvolvimento seus membros alçavam à condição de meta primaz de suas vidas, o que lhes rendia considerável apreço social. Os serviços prestados por estes profissionais jamais poderiam ser confundidos com a locatio conductio operarum, que viabilizava a contratação de trabalhadores braçais. Do contrário, por serem autônomos, somente operavam por mandato expresso do cliente ou acerto amigável entre as partes, pelo qual as benesses de seus conhecimentos especializados eram distribuídas mediante contraprestação de honorários. Tais eram os profissionais liberais - médicos, jurisconsultos, artistas etc.

No fim da Idade Média, o surgimento dos burgos realça a...

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