Proteção jurídica ao consumidor no Mercosul

AutorAndréa Benetti Carvalho
Páginas116-137

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Introdução

A Constituição Federal de 1988 trouxe à sua esfera a defesa do consumidor em face da necessidade de ação terapêutica do Estado em certas situações de desequilíbrio social. O artigo 5º, XXXII, preceitua que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. O artigo 170, V1 apresenta a defesa do consumidor como princípio geral da atividade econômica, juntamente a princípios, como soberania nacional, propriedade privada e livre concorrência. Mais alusões são feitas ao tema, como o artigo 24, V2 (legislação concorrente dos entes federados no que se refere à normatização sobre produção e consumo e à responsabilidade por dano ao consumidor) e o artigo 150, §5º3 (direito de informação ao consumidor a respeito de impostos incidentes sobre mercadorias e serviços). É neste contexto que surge o Código de Defesa do Consumidor em 1990, a fim de equilibrar as relações entre fornecedor e consumidor, tendo por objeto os produtos e os serviços prestados, conceitos que serão explorados no decorrer do presente trabalho.

A formação do Mercado Comum no Cone Sul4 e sua ampliação a parceiros latino americanos5 representam a possibilidade de desenvolvimento sustentável na região. A livre circulação de mercadorias torna mais propenso o surgimento de controvérsias e futuros litígios na questão referente à responsabilidade sobre a produção e a distribuição de bens e serviços. Foi visando dirimir eventuais dúvidas acerca das relações de consumo no Mercosul que o Comitê Técnico nº 7 passou a trabalhar com enfoque na harmonização legal do tema neste bloco regional.

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1. Direito do Consumidor
1. 1 Histórico e evolução

O século XIX teve como destaque econômico o surgimento do liberalismo, doutrina defensora da livre concorrência e da não-intervenção estatal na economia6. Suas conseqüências jurídicas são o positivismo e a concepção do Direito como sistema jurídico. Emerge, assim, o Direito Obrigacional, tendo como princípios básicos a autonomia da vontade das partes7 e a pacta sunt servanda8.

Dada a evolução do liberalismo, o capitalismo ganha força, as sociedades passam a concentrar os meios de produção, e surge, assim, a sociedade de consumo, que, por sua vez, prioriza a produção em série e a busca do maior mercado consumidor possível. Desta forma, o consumo (como fenômeno emergente) passa a ser influenciado pelo sistema econômico. Isto não somente porque sua origem está na cadeia produtiva da economia de mercado mas também porque “o lucro atua significativamente tanto no centro como na periferia do fenômeno; tanto na ordem material como na ordem simbólica de tudo aquilo que representa para os sujeitos”9.

Todavia, mesmo sendo o consumidor figura imprescindível ao processo produtivo, sua fragilidade e vulnerabilidade perante o poderio econômico da classe produtora são patentes. Assim, a proteção jurídica ao consumidor tornou-se fato, “instando a adoção de medidas preventivas e punitivas, visando conceder ao consumidor proteção à vida, à saúde, à segurança, à liberdade de escolha e à igualdade de condições nos contratos”10.

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A partir das primeiras décadas do século XX, o cenário mundial muda, e os contratos de consumo não se realizam mais entre sujeitos livres e conscientes de suas conseqüências, mas entre grupos econômicos (representados por empresas com grande aporte financeiro) e sujeitos isolados, “carentes de conhecimentos e informações adequadas em relação ao acordo”11 ao qual se submetem e com o qual anuem. Tal desequilíbrio contratual faz-se presente pelo poderio econômico e financeiro desses grupos econômicos, que se utilizam das normas legais genéricas ao seu favor e pelo contrato abusivo que coloca o consumidor fora do mercado.

“Ao mesmo tempo, o desequilíbrio econômico, em detrimento do consumidor, gerava tensões estruturais no seio do desenvolvimento das políticas econômicas estatais. Portanto, o tratamento jurídico desfavorável do fenômeno do consumo tornou-se um problema para os governos”.12

Como forma de atuação consciente a fim de regular tal disparidade, o Estado passa a adotar políticas de consumo por meio de programas governamentais.

Com o grande desenvolvimento econômico global após a II Guerra Mundial, a produção e o comércio (nacional e internacional) massificaram-se, evidenciando a necessidade da tutela legal estatal específica dos consumidores.

“Especialmente nesse período viu-se desenvolver de maneira bastante generalizada entre as economias capitalistas mundiais a ‘sociedade de consumo’ (mass consumption society) nos padrões pioneiramente estabelecidos nos Estados Unidos, tendo sido rapidamente acompanhada pelas demais sociedades capitalistas avançadas, e é nesse ambiente que se desenvolverá o direito do consumidor”.13

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1.1. 1 Proteção ao consumidor nos Estados Unidos da América

No ano de 1899, surge, nos Estados Unidos, a National Consumer League14, a fim de proteger o consumidor estadunidense do capitalismo monopolista e oligopólico que ganhava força naquele país. Sete anos depois, em 1906, são aprovados o Pure Food and Drug Act e o Meat Inspection Act15, resultando na criação, em 1914, da Federal Trade Comission16. Mara Suely Oliveira e Silva Maran explica, em seus estudos17, que, além da FTC, há outras quatro agências governamentais especializadas que podem ser citadas:

“a) Consumer’s Education Office, com a incumbência de promover e administrar programas educacionais voltados para a formação e treinamento de pessoal especializado em educação e orientação do consumidor;

  1. Food and Drug Administration, encarregada da fiscalização de produtos comestíveis, farmacêuticos, cosméticos e drogas;

  2. Consumer Product Safety Comission, que cuida das normas e padrões de segurança dos produtos e fiscaliza sua aplicação;

  3. Small Claim Courts, que é semelhante aos nossos Juizados de Pequenas Causas, que atendem as reclamações de consumidores desobstruindo a Justiça Comum”.

Na década de 30, novo destaque teve o movimento consumeirista estadunidense, desta vez, com os protestos populares por causa do aumento de preços em resposta à Grande Depressão de 1929. Contudo, somente na década de 60, a proteção jurídica ao consumidor ganhou efetividade nos Estados Unidos. Já em campanha presidencial, John Kennedy assumiu a causa. Em 1962, encaminhou ao Congresso americano a Special message to the Congress on protecting the consumer interest18, e, no ano seguinte,Page 121 implantava o Consumer Advisory Council First Report19. O Direito do Consumidor aparece nos Estados Unidos com perspectiva individualista e reparatória, protegendo-se, inicialmente, o indivíduo consumidor para, depois, passar à proteção coletiva.

“(...) em ambos os sistemas – common law e civil law – o Direito do Consumidor, que havia nascido como corpo legal eminentemente repressivo (penal e administrativo), foi aos poucos se transformando, em face de certas características do mercado (...). E hoje o Direito do Consumidor é fundamentalmente preventivo”.20

1.1. 2 Proteção ao consumidor na Europa

A partir de 1910, o movimento consumeirista europeu inicia-se com a instituição de organismos administrativos em favor dos consumidores na França, na Inglaterra, na Suécia e na Holanda21. Em 1957, surge, na Inglaterra, a Consumers Association. Um ano mais tarde, instaura-se a comissão especial no Parlamento inglês, o Committee on Consumer Protection. Como resultado do trabalho, promulgou-se, em 1961, o Consumer Protection Act, e publicou-se, em 1963, o Molony Report (Final Report of the Committee on Consumer Protection)22.

No início da década de 70, é criado, na Suécia, o ombdusman, órgão público especializado em atendimento de reclamações de consumidores com competência para dar o prosseguimento judicial cabível caso a mediação não resulte em satisfação a ambas as partes (reclamante e reclamado). O modelo é seguido pelos demais países escandinavos23.

A pioneira na normatização contra cláusulas abusivas em contratos de adesão é a Alemanha, com a Lei sobre Regulamentação das Condições Gerais de Contratação, de 1976. Enfim, na Comunidade Européia, o movimento consumeirista consolidou-se, tendoPage 122 evoluído o Direito do Consumidor não só na União Européia como também em seus Estados-Membros. Por toda a Europa, a evolução da proteção jurídica ao consumidor surgiu do esforço em tutelar o coletivo, “sendo secundária a preocupação de reparar os danos sofridos pelos consumidores”24, distintamente do que ocorreu nos Estados Unidos.

1.1. 3 Proteção internacional ao consumidor

Em âmbito mundial, pode-se indicar que o movimento consumeirista inicia-se em 1960, com a International Organization of Consumers Unions, hoje, conhecida por Consumers International. Esta organização internacional representada por mais de 200 associações, distribuídas em mais de 80 países, exerce influência junto a governos e organismos internacionais na defesa aos direitos dos consumidores.

A Organização das Nações Unidas inovou na defesa do consumidor ao recomendar que este deve ser convenientemente educado quanto aos seus direitos pela Resolução 2.542, que declara os Direitos Fundamentais e Universais do Consumidor. Mas, o avanço...

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