A interpretação do fato gerador do icms diante da lei complementar 87 e da súmula 166 do STJ

AutorIrapuã Beltrão
CargoProcurador Federal .Professor de Direito Tributário e Constitucional
Páginas13

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De todos os impostos previstos no atual Sistema Tributário Nacional, o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços (ICMS), sem dúvida, é aquele cuja exação enfrenta as maiores dificuldades para reconhecer-se o fato imponível, encerrando interpretações diversas para que ocorra sua incidência nas transações comerciais.

Dentre as lições mais comezinhas da análise tributária está a inevitável afirmação de que a primeira disciplina estrutural das espécies deve ser feita, sempre, através da Constituição, eis que o assunto caracteriza-se como materialmente constitucional. Por esta razão afirma-se que a definição do poder de tributar, suas limitações e repartições entre os entes políticos estarão necessariamente previstos em normas do texto político e, a partir de suas definições básicas, será produzida toda a legislação pertinente para a implantação dos tributos na vida social.

Por este motivo estrutural, a sistematização constitucional do Direito Tributário pátrio reconheceu a necessidade de uma "norma meio", responsável pela ligação entre os ditames constitucionais e a lei de cada um dos tributos, elaborada pelo ente federativo competente in casu. Na forma do art. 146 da CRFB1, esta norma, além de ser dotada de natureza complementar com o correspondente quórum da maioria absoluta, é responsável pelo estabelecimento de normas gerais, sobremaneira pelo tratamento dos impostos discriminados na Constituição, definindo os respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.

Naturalmente, esta missão legislativa deve sempre buscar seu fundamento de validade no texto constitucional que o orienta, ou, como pontifica o professor Roque CARRAZZA, "a lei complementar que está a merecer nossos cuidados só será válida quando se entrosar com as linhas mestras do Texto Supremo"2.

Certamente, no cumprimento desta tarefa constitucional, deve o legislador complementar adotar máxima acuidade na disciplina das hipóteses de incidência dos impostos, por toda a sua importância para a matéria, conforme já há muito assinalado por Amílcar FALCÃO3. Isto porque, ao descrever geral e abstratamente, o fato gerador da obrigação tributária deve fazê-lo de forma completa e perfeita, ou, na expressão do art. 114 do CTN4, com os seus elementos suficientes e necessários para posterior caracterização, não causando dúvidas ao aplicador e ao intérprete da subsunção dos fatos àquela norma.

Neste ponto, o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços (ICMS) já apresenta sua primeira dificuldade legislativa. Como se afirmou, a partir do previsto na Constituição, cabe à norma infraconstitucional disciplinar os fatos geradores, através de lei complementar (art. 146), que, no caso do ICMS, encontrou ainda o reforço do art. 155, § 2º, XII5, exigindo uma coerente lei de maioria absoluta. Por tais dispositivos, o constituinte originário trouxe ainda outra função à lei complementar, destacando aquela necessidade de normas gerais de ligação, inclusive para os fins da legislação tributária.

Não se pretende aqui esmiuçar todas as funções da lei complementar no ICMS, mas, tão-somente, sua missão quanto à definição do seu fato gerador e os problemas que já advêm do exercício desta conceituação. Por óbvio, não há máxima liberdade nesta tarefa, eis que a sistematização existente estabeleceu, a priori, matrizes diretivas.

É de se destacar que, no momento de redigir tais hipóteses, o legislador complementar não pode jamais desconhecer os conceitos já existentes nos demais ramos do direito, notadamente ao usar os institutos do direito privado. Como já assinalava o art. 109 do CTN6, a integridade do Direito é única e as definições, conteúdos e alcances havidos nos institutos do Direito Privado devem sempre ser respeitados pelo legislador tributário.

Justificando esta "importação" dos institutos privados utilizados no Direito Tributário com observância da unicidade jurídica, o professor Luciano AMARO recorre à doutrina clássica para pontuar que, "como assinala Becker, com apoio em Emilio Betti e Luigi Vittorio Berliri, o direito forma um único sistema, onde os conceitos jurídicos têm o mesmo significado, salvo se a lei tiver expressamente alterado tais conceitos, para efeito de cada setor do direito"7.

Não por outro motivo, os primeiros passos no caminhar da ciência jurídica exigem o destaque para a linguagem do Direito, tanto assim que o saudoso jurista Miguel REALE identifica, já para os iniciantes que, "para realizarmos, entretanto, esse estudo e conseguirmos alcançar a visão unitária do Direito, é necessário adquirir um vocabulário"8. Ora, esta adoção de uma linguagem própria do campo jurídico, em nome do princípio constitucional da segurança jurídica, deve ser única, assegurando aquela existência unitária defendida pelo renomado professor.

Mesmo ao buscar uma visão didática do estudo de qualquer ramo jurídico, através da separação histórica entre o Direito Público e o Direito Privado, todos os autores são concordes em afirmar a unicidade do Direito, como ilustra o professor José dos Santos CARVALHO FILHO: "o estudo moderno do Direito não mais comporta a análise isolada e estanque de um ramo jurídico. Na verdade, o Direito é um só; são as relações jurídicas que podem ter diferente natureza9".

Exatamente para preservar situações como estas, as normas codificadas previram a necessidade de respeito aos limites do predomínio do Direito Privado no que tange ao exercício do poder de tributar. Ou, nas inspiradoras palavras Page 14 de Aliomar BALEEIRO, "para maior clareza da regra interpretativa, o CTN declara que a inalterabilidade das definições, conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas do Direito Privado, é estabelecida para resguardá-los no que interessa à competência tributária. O texto acotovela o pleonasmo para dizer as 'definições'; e limites dessa competência, quando estatuídos à luz de Direito Privado, serão as deste, nem mais, nem menos"10.

Assim, as normas codificadas ainda detalham mais, vedando ao legislador tributário, no momento das definições dos efeitos fiscais (art. 110, CTN11), a adoção de qualquer conceito distinto daqueles já havidos no campo privado, sob o argumento lógico de que, se tal ocorresse, estar-se-ia diante de uma deturpação clara do escopo e da amplitude constitucional ao definir as linhas preliminares da tipificação dos impostos.

Esta solução encontrada pelas normas gerais do Direito Tributário mereceu reconhecimento de sua efetividade no processo de interpretação dos tributos e demais institutos, não só entre os tributaristas pátrios, mas também alhures, como se destaca na obra de Antônio Braz TEIXEIRA12, que, ao analisar a mesma situação, refere-se à lei brasileira com entusiasmo. Assim, ao se deparar com a questão de "quando nas normas fiscais empregam termos próprios de outros ramos do direito ou designativos de conceitos neles gerados", critica o autor português a solução daquele país que permite a eventual atribuição de significado diferente, sugerindo que o melhor seria adotar a solução brasileira, igualmente existente naquele momento na lei espanhola.

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