Percepção Científica do Direito

AutorReis Friede
Páginas225-262

Reis Friede. Catedrático, ex-Membro do Ministério Público, Mestre e Doutor em Direito, Professor-Coordenador da Escola de Pós-Graduação em Direito da UniverCidade e Professor-Coordenador dos Cursos de Graduação em Direito da UniverCidade – Campus Centro.

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Introdução

Não obstante a tese segundo a qual o Direito se constitui em efetivo ramo científico ter sido negligenciada no passado por expressiva parcela de estudiosos, na atualidade contemporânea é, no mínimo, majoritária a posição doutrinária que entende o Direito como autêntica e genuína Ciência Autônoma.

Ainda que se possa discutir se o Direito constitui-se na própria ciência, em sua descrição conceitual, ou, ao contrário, restringe-se apenas ao objeto de uma ciência (a chamada Ciência do Direito), a verdade é que, no presente momento evolutivo, poucos são os autores que ousam desafiar a visão dominante do Direito como ciência e suas principais conseqüências, especialmente após o advento – e, sobretudo, a leitura técnica – da notável obra de HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito, em que o autor logrou demonstrar, na qualidade de mentor do racionalismo dogmático (normativismo jurídico), a pureza jurídica do Direito em seu aspecto tipicamente científico.

Mesmo assim, entre nós ainda existem aqueles que simplesmente defendem o ponto de vista do Direito como uma forma não-científica, desafiando não só o caminho lógico-evolutivo doPage 226 estudo do Direito, mas, particularmente, a acepção mais precisa (e correta) do vocábulo ciência.

"(...)não é rigorosamente científico denominar o Direito de ciência. (...). As pretensas ciências sociais, com ranço comtiano, onde se costuma incluir o Direito (...) não oferecem princípios de validez universal que lhes justifiquem a terminologia (...)". (PAULINO JACQUES in Curso de Introdução ao Estudo do Direito, ps. 10/11)

"O Direito não é ciência, mas arte; como também ramo da moral" (GENY in Science et Téchnique en Droit Privé Positif, 2a. édiction, Tome I, Paris, 1927, ps.69/71 e 89)

"As regras do Direito são preceitos artísticos, normas para fins práticos, determinações ordens, que se impõem à vontade. Não se confundem com as afirmações científicas, que se dirigem à inteligência." (PEDRO LESSA in Estudos de Philosophia do Direito, Rio, 1912, p.46)

1 Conceito de ciência

A questão central, nesse contexto de atuação, ao que tudo indica, parece ser, sob o prisma de sua própria especificidade, os múltiplos e variáveis conceitos de ciência, bem como, as possíveis e diferentes traduções do vocábulo em epígrafe.

Nesse sentido, resta oportuna a lição de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. (in Direito, Retórica e Comunicação, Saraiva, SP, 1973, ps. 159/160) para quem "a expressão ciência não é unívoca; não obstante de com ela se pretender designar um tipo específico de conhecimento, não há um critério único e uniforme que determine sua extensão, natureza e caracteres, devido ao fato de que os vários critérios têm fundamentos filosóficos que extravasam a prática científica."

De qualquer sorte, o que caracteriza a ciência, na acepção atual, não pode ser, em nenhuma hipótese, como deseja PAULINO JACQUES, uma pretensa e utópica validez universal de seus princípios, independentemente de meridianos e paralelos, uma vez que, de forma absolutamente diversa, a noção contemporânea de ciência reside no escopo próprio de sua atuação, ou seja, na busca, constante e permanente, pela verdade (ou, ainda, em outras palavras, na perene explicação evolutiva dos diversos fenômenos naturais e sociais).

(Nesse contexto, por força do raciocínio binário, é lícito, inclusive, consignar o conceitoPage 227 antagônico à ciência que se traduz modernamente pela crença.

Enquanto a ciência, reconhecendo que não possui a verdade, objetiva, de forma constante e permanente, encontrá-la (através da busca incessante da explicação verdadeira dos fenômenos fáticos (de valoração objetiva e subjetiva) e de suas conseqüentes ocorrências no mundo real e cultural), a crença, por sua vez, ciente de que já possui a verdade (ou seja, a correta explicação para os fenômenos fáticos do mundo real), simplesmente impõe a sua explicação (interpretação), como única e insuperável tradução da realidade, permitindo, neste sentido, a concepção básica da denominada fé (que é sempre imposta), como fator último a impedir o próprio desenvolvimento da crença.

Não é por outra razão, inclusive, que a essência da fé (na qualidade de fator basilar da crença) se traduz pelo “acreditar em algo que não pode ser provado”, tornando, por efeito, toda crença (como, por exemplo, a religião) igualmente válida (não permitindo, conseqüentemente, padrões de comparação qualitativa e determinante sob a ótica de sua própria abrangência.)

Em essência, - é oportuno ressaltar -, inexiste, de forma insofismável, a efetiva possibilidade de se ter fato gerando normas de validade sinérgica, acima de qualquer possibilidade de contestação no espectro temporal-evolutivo.

Muito pelo contrário, o que a ciência realiza, no âmbito de sua atuação, é exatamente conceber, caracterizando e criando através de interpretações próprias (porém, com necessário escopo de generalização), a melhor explicação de um dado fenômeno particular (natural ou social), em um considerado momento histórico em que aspectos culturais, geográficos, organizacionais, etc, necessariamente possuem sua esfera - maior ou menor - de influência.

(Assim é que nos primórdios da Física, a melhor explicação científica para o fenômeno da queda de um objeto em direção ao chão não passava pela atual e complexa teoria da gravitação universal, preferindo os "cientistas" da época, por ausência de melhor interpretação, entenderem o fato (na qualidade de efetivo acontecimento no mundo real) através da singela concepção da existência de uma pretensa “mão invisível” que simplesmente empurrava todo e qualquer objeto em direção ao solo.

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Mas mesmo com todo o desenvolvimento da Ciência da Física, o homem ainda não foi capaz de explicar, de forma inequívoca, dentro de seu contexto de juízo de realidade, dotado de valoração objetiva, o simples fato da queda de um objeto em direção chão, considerando, sobretudo, que a vigente lei da gravidade (corolário da teoria da gravitação universal) parte de um princípio básico de suposta validez universal, mas amplamente contestável, que poderia ser resumido, não obstante algumas complexidades que deixaremos ao largo, da seguinte maneira: um corpo de massa menor é sempre atraído em direção ao corpo de massa maior, determinando, em conseqüência, que qualquer objeto (de massa relativa desprezível) simplesmente "caia" em direção ao centro do planeta (que possui massa infinitas vezes maior), sendo contido apenas pelo obstáculo natural que é exatamente a sua superfície (ou seja, o chão).

Como o pressuposto básico da atração gravitacional como concebida na atualidade contemporânea, pressupõe a existência de corpos com massa, a Física de hoje simplesmente não é capaz de explicar a descomunal atração gravitacional que exerce os chamados “buracos negros”, na qualidade de corpos celestes desprovidos de matéria, e, por conseqüência, de massa, na concepção clássica de “massa branca”.

A concepção básica de Ciência (incluindo seu conceito específico), por efeito conseqüente, não pode considerar a existência de incontestes e permanentes princípios de validez universal, tendo em vista que a validade intrínseca dos princípios e pressupostos científicos são sempre mutáveis no tempo e no espaço, em decorrência da própria e necessária evolução dos conceitos científicos.

É evidente que os denominados Princípios Gerais do Direito não são universais ou mesmo permanentes (até porque, os fenômenos sociais que os instruem são nitidamente mais complexos que os fenômenos naturais, objetos de outras ciências) muito embora, no mundo atual de notável capacidade de comunicação e intercâmbio, essa realidade tenda naturalmente a um ponto de aproximação semelhante a pretensa universalização de concepções tipicamente estudados pela Física, Química, Astronomia etc. O próprio conceito axiológico de justiça, como valor intrínseco do Direito, é conveniente ressaltar, vem sendo, de modo perceptível, permanentemente universalizado, não obstante as diversas culturas e os diferentes estágiosPage 229 evolutivos das várias sociedades em convivência temporal comum.

Por outro lado, é também importante consignar que as ciências dotadas de juízo de valor (valoração subjetiva), como o Direito, são inerentes ao denominado mundo cultural, em que as preocupações valorativas possuem inconteste natureza subjetiva.

Por efeito conseqüente, a ciência não pode, sob pena de sublime subversão lógico-conceitual, ser encarada como algo que se traduz por uma verdade absoluta, mas, ao contrário, necessariamente deve ser entendida como algo que busca, de forma constante e permanente, a verdade (em sua acepção plena), aproximando-se cada vez mais da mesma, porém sem nunca poder atingi-la, ou mesmo tangenciá-la com plena segurança.

É exatamente neste sentido que alguns autores observam a existência, em matéria científica, das denominadas “verdades relativas”, ou, em outras palavras, “verdades” com validez limitada ou restrita, no tempo e no espaço, a uma dada e/ou considerada situação fática.

Por outro prisma, como o objeto das ciências sociais (culturais) é mais complexo do que o das ciências naturais, considerando, neste contexto...

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