Catolicismo impuro: politização e transgressões da fronteira do religioso
Autor | Ernesto Seidl, Wheriston S. Neris |
Páginas | 252-285 |
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Catolicismo impuro: politização e
transgressões da fronteira do religioso
Ernesto Seidl1
Wheriston S. Neris2
Resumo
O artigo aborda o fenômeno da politização de religiosos católicos no Brasil. Com base em elemen-
tos da sociologia política, discutem-se perspectivas de análise julgadas vantajosas na apreensão
das formas de existência concreta da instituição católica e dos modos de exercício da autoridade
religiosa. A análise dos itinerários religiosos de dois sacerdotes, de diferentes gerações e com di-
ferentes tipos de inserção, procura demonstrar parte dos mecanismos que operam nos processos
de interpretação que profissionais da Igreja fazem da verdade da instituição, conduzindo estes
a vivenciarem seu engajamento religioso em termos que não o separam de uma ação política.
Palavras-chave: Politização. Catolicismo. Igreja. Sociologia Política.
Introdução: por uma sociologia política (lagroyenne) da
politização da profissão religiosa
Padre comunista, padre vermelho, padre barbudo, padre subversivo, pa-
dre de jeans e sandálias, padre de esquerda, padre petista... É vasto o elenco
de imagens e de rótulos associados a sacerdotes católicos que se julgaria terem
transgredido os limites da religião e invadido o terreno da política. Foi sobre-
tudo a partir dos anos 1960 que se multiplicaram no Brasil prossionais da
Igreja – e não somente padres – com aparência e convicções destoantes dos
modelos consagrados de pertencimento institucional e de exercício da auto-
ridade religiosa. Parte desses homens e mulheres se envolveu em atividades
1 Doutor em Ciência Política. Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do CNPq. E-mail: ernestoseidl@gmail.com
2 Doutor em Sociologia. Professor do Campus III da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: wheristoneris@
yahoo.com.br
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v16n37p252
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 37 - Set./Dez. de 2017
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em sindicatos rurais, movimentos sociais, partidos e grupos ativistas variados.
Fração destes ainda ingressou nas disputas políticas formais, ao se candidatar
a cargos eletivos, e outra fração chegou a aderir a grupos clandestinos e à luta
armada durante o regime militar3. Para todos eles, contudo, é a mesma ques-
tão do signicado de como servir à Igreja, o sentido da missão religiosa, que
ganha amplitude e abrange outros domínios.
Neste artigo, procuramos abordar o fenômeno da politização de religiosos
católicos no Brasil com dois propósitos que se conectam. Primeiro, prolon-
gar discussões sobre esquemas analíticos voltados à apreensão das formas de
existência concreta da instituição católica e dos modos de exercício da auto-
ridade religiosa pelo viés da sociologia política4. Segundo, tentar avançar em
uma compreensão mais precisa dos diferentes mecanismos que operam nos
processos de interpretação que os prossionais da Igreja fazem da verdade
da instituição, conduzindo-os a adesões à política. Acreditamos, entre outros
motivos, que ambos os objetivos sejam úteis para desnaturalizar visões sedi-
mentadas sobre uma Igreja “de esquerda”, “das bases”, “dos pobres”, “enga-
jada” etc., que tendem a não indagar a respeito das condições de emergência
do engajamento político de religiosos e, por essa via, favorecem efeitos de
rotulagem e julgamentos de valor – tão correntes dentro do mundo da Igreja
e de seus entornos.
Igreja plural e variedades de interpretação da verdade da
instituição
São frequentes as percepções de que o “catolicismo de esquerda” seria
traço de países periféricos como os latino-americanos. Dadas as condições
de grande desigualdade social na região, aquelas realidades ofereceriam ter-
reno fértil para a emergência de compromissos religiosos com a luta pela
3 Os diversos pontos de fricção entre a história da Igreja católica e a “política” no Brasil são objeto de rica
bibliografia, notadamente de brasilianistas, que delineou com bastante clareza os contornos das posições
da instituição católica frente ao “social” e ao “político” na contemporaneidade. A título apenas indicativo,
mencionamos os trabalhos de Bruneau, 1974; Della Cava, 1975, 1978, 1988; Iffly, 2010; Mainwaring, 1989,
Novaes, 1997; Serbin, 2001, 2008 e, ainda, obras de cunho mais engajado, relatos e testemunhos, como os
livros de Betto, 1982 e de Souza, 1984.
4 Essa perspectiva vem sendo desenvolvida em diversos de nossos trabalhos. Por exemplo: Neris, 2014; Neris e
Seidl, 2015a, 2015b, 2015c, 2017; Seidl e Neris, 2011 e Seidl, 2003, 2009, 2017.
Catolicismo impuro: politização e transgressões da fronteira do religioso | Ernesto Seidl e Wheriston S. Neris
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transformação do “mundo dos homens”. De fato, as relações entre fé e enga-
jamento político receberam interpretações variadas pelo catolicismo em diver-
sos países da América Latina, entre as quais teve maior destaque a polêmica
Teologia da Libertação. Essas interpretações, no entanto, nunca estiveram
circunscritas à Igreja latina ou seriam algo peculiar a partes especícas do
mundo. A rigor, trata-se de um tipo de tensão histórica que tem atravessado
a religião católica à medida que ela se institucionalizou e se dissociou da
esfera do poder secular ou político, fortalecendo códigos, regras e papéis
próprios e, assim, denindo seus princípios de legitimação frente a outros
domínios sociais5.
Procurar entender as condições que levam alguns religiosos a redenir o
sentido de sua vocação e a se engajar em atividades consideradas políticas im-
plica, antes de tudo, considerar que há formas muito variadas de se pertencer
à instituição católica – seja como el, seja como prossional. Embora tenha
uma única autoridade máxima e disponha de instrumentos que propõem uma
orientação ocial codicada tanto a seus adeptos quanto (e sobretudo) a seus
quadros, a Igreja está longe de ser uma unidade. Isto é, dentro daquilo que se
denomina Igreja católica convivem modos extremamente heterogêneos, e até
contraditórios, de conceber o pertencimento à instituição, de compreender os
dogmas, de se relacionar com regras e hierarquias, enm, de colocar em forma
prática o ofício de homem da Igreja.
Se são abundantes na história e no cotidiano do Brasil exemplos de sacer-
dotes que se engajaram na política, menos frequentes são os estudos que to-
mam esse fenômeno como objeto de reexão sociológica. Uma explicação para
essa lacuna pode estar nas relações íntimas entre catolicismo e Ciências Sociais
no país, cuja proximidade e anidade (por vezes, compromisso) tenderam a
excluir indagações dessa natureza da agenda cientíca. Mais do que registrar
e dar atenção – não, raro de modo celebrativo – aos vínculos entre “Igreja e
política”, ao “papel da Igreja” na “luta contra a ditadura”, no “surgimento” do
Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, de sindicatos e do Partido dos Tra-
balhadores, cremos que se ganharia muito com uma sociologia da politização
religiosa que estranhasse tantas anidades entre uma parte da Igreja Católica
5 Sobre esse ponto, ver o artigo Os processos de politização, de Jacques Lagroye, publicado neste mesmo dossiê.
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