Os Catadores de Materiais Recicláveis e a Nova Lei das Cooperativas de Trabalho

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas344-358

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O Bicho — Manuel Bandeira1

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade. O bicho não era um cão,

Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.

1. Apresentação do tema

A escolha do tema deste artigo tem como justificativa basicamente cinco premissas relacionadas à busca pela efetivação dos direitos sociais, elencadas por Souto Maior: (i) percepção da injustiça;

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(ii) indignação em face da injustiça; (iii) crença de que a realidade pode ser alterada; (iv) vontade; e (v) ação.2Com efeito, não basta dispormos de um vasto espectro de direitos sociais, é imprescindível torná-los efetivos. Afinal, como já disse Bobbio, “o importante não é fundamentar os direitos humanos, mas protegê-los. Não é preciso aduzir aqui que, para protegê-los, não basta proclamá-los”.3 Alguns autores chegam mesmo a afirmar que o advento do Estado Providência foi o fato histórico que elevou a importância da discussão sobre os direitos sociais. Diz Souto Maior que “em virtude dos programas sociais desse novo Estado, foram criadas leis tendentes à melhoria das condições dos desfavorecidos em suas relações com grandes empresas e organismos governamentais. (...)”.4 Sob essa perspectiva, observa-se o papel fundamental que devem exercer as políticas públicas e órgãos de fiscalização, no sentido de servir como instrumento de plena efetividade àquilo que já foi previsto como direito pelo ordenamento jurídico.

Em um momento no qual o Tribunal Superior do Trabalho, enfim, estimula o debate público sobre a “terceirização” é oportuno discutir o vínculo obrigacional mantido entre a sociedade civil, o poder público e as cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis. Pergunta-se, assim, qual a natureza jurídica das relações obrigacionais mantidas entre os catadores e os tomadores de seus serviços? Os contratantes têm dever de informar sobre os riscos relacionados com a manipulação dos resíduos sólidos por eles produzidos? Teriam eles obrigação de fornecer equipamentos de proteção individual e coletiva específicos? Qual a natureza da responsabilidade civil decorrente de eventual acidente de trabalho? A nova figura legal das cooperativas de trabalho atende aos reclamos do Direito Social?

2. Objetivos e delimitação do tema

Tendo em vista as ressalvas já expostas, no presente artigo far-se-á uma análise do contexto social, ambiental e jurídico no qual estão inseridos os catadores de materiais recicláveis, com algumas considerações sobre a atual regulamentação jurídica das cooperativas de trabalho (Lei
n. 12.690, de 19 de junho de 2012).

Esse artigo, assim, tem um escopo limitado ante a importância do tema e a amplitude das questões a ele relacionadas. De toda forma, buscar-se-á adotar uma postura de questionamento face à racionalidade capitalista.

De fato, entende-se que a Universidade “(...) é o lugar da produção do dissenso, em primeiro lugar, dissenso do discurso do “pensamento único”. Passo insubstituível para a produção de um novo consenso sobre a Nação, que é obra da cidadania, mas que pede e requisita a universidade para decifrar os enigmas do mundo moderno (...)”.5Nesse sentido, acredita-se que para que a Universidade esteja efetiva e eficazmente cumprindo seu papel institucional, deveria haver mais pesquisa com enfoque zetético, pois a produção meramente dogmática6, muito embora seja importante para a consolidação de conceitos e interpretações, peca pelo comodismo, ainda mais

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quando não se pretende, somente, enfocar o estudo sobre a norma posta, mas cotejá-la com a estrutura capitalista e a sociedade na qual está inserida.

Nesse sentido, procurar-se-á desenvolver no presente artigo, um enfoque teórico voltado à zetética analítica aplicada, segundo a qual, nas palavras de Ferraz Jr., o “(...) teórico ocupa-se do direito como um instrumento que atua socialmente dentro de certas condições sociais (...)”.7Registre-se que no âmbito da pesquisa para elaboração da dissertação de mestrado é que se buscará retratar, de forma abrangente, a atuação dos catadores identificando-se as modalidades de trabalho existentes: (i) catadores autônomos não filiados a cooperativas ou associações; (ii) os cooperados/associados; e, finalmente, (iii) os empregados. Nesse âmbito, também, partir-se-á do panorama geral, para uma cooperativa de catadores específica. A partir dela buscar-se-á confrontar a realidade geral com a particular, objetivando-se apreender as relações obrigacionais em dois planos:
(i) a natureza jurídica da relação entre os cooperados e a cooperativa; e (ii) a natureza jurídica da relação entre os cooperados, coletivamente considerados, e os tomadores de seus serviços.

Objetivar-se-á, também, apurar o nível de informação sobre riscos ocupacionais, histórico de acidentes e medidas de prevenção de acidentes de trabalho.

Durante a pesquisa acadêmica procurar-se-á discutir a temática da eficácia dos direitos sociais, como elemento imprescindível para a concretização dos ideais de cidadania, apresentando o cooperativismo praticado no âmbito dos catadores de materiais recicláveis estudado em confronto com as diversas acepções de cooperativismo existentes, dentre as quais a de agente de economia solidária, em cotejo com a Lei das Cooperativas de Trabalho (Lei n. 12.690, de 19 de junho de 2012), questionando se ela pode ser um instrumento de combate à fraude à legislação trabalhista e à efetivação dos Direitos Sociais, vistos como fundados sobre as bases da solidariedade e da evolução social do homem.

3. A dimensão social do trabalho dos catadores de materiais recicláveis

Alto índice de desemprego, urbanização desordenada, êxodo rural, baixa escolaridade e falta de oportunidades, levaram um alto contingente de trabalhadores a sobreviver do lixo, em lixões e nas ruas, recolhendo principalmente materiais ferrosos, papelão e plástico. Mas por que, no mundo capitalista atual há gente vivendo de lixo, no lixo e como lixo? É possível haver dignidade em tal trabalho? Poder-se-ia conjugar solidariedade social, capitalismo, direitos (do e ao) trabalho com ecologia, economia solidária e sustentabilidade? A atuação da Igreja Católica, por meio de Pastorais, de Organizações Nâo Governamentais (ONGs), de Universidades, enfim, da sociedade civil, no sentido de organizar os catadores autônomos em associações ou cooperativas “resolve” o problema social ou serve somente como um paliativo, como se estivéssemos enxugando gelo”, por não estar havendo uma crítica à superestrutura que está na origem do ciclo da miséria, da exclusão social, do consumismo, do crescimento desordenado das cidades, do desnível social etc.?

As origens do grande contingente populacional periférico que trabalha como “catador de material reciclável” estão relacionadas com o processo de urbanização intensificado a partir da década de 1950, período no qual a catação passou a ser exercida nas cidades brasileiras, como alternativa de sobrevivência, conforme estudiosos do assunto de Minas Gerais identificaram através de relatos históricos.8

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De fato, o desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek incrementou o movimento populacional do campo para as cidades, que representa “(...) mais do que a diminuição da população agrária, (...) desqualificação da vida rural. (...) Só no Nordeste, deixaram de viver no campo cerca de 1,1 milhão de pessoas. Nesse mesmo período, o número de pessoas vivendo em cidades cresceu 12 milhões no Brasil, (...) As políticas governamentais que pretendiam modernizar o país aumentaram não só o número de empregos na indústria, na construção civil e no setor de serviços, mas também contribuíram para o crescimento urbano desordenado. Muitos migrantes vindos dos estados mais pobres e atrasados constituíram um exército de mão de obra despreparada, analfabeta ou quase, vivendo à beira da miséria nas periferias da cidades (...)”.9Pode-se questionar se esse grande fluxo migratório teria sido menos expressivo se a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto n. 5.452, 1º de maio de 1943), tivesse sido instituída tanto para os empregados urbanos quanto para os rurais, como incentivo para a permanência do homem no campo, aliada a uma política eficaz de reforma agrária.10Contudo, a luta pela ‘reforma agrária’, levou à morte de muitos e a um golpe militar, pois contrastava frontalmente com a mentalidade da oligarquia rural brasileira, a mesma que fez com que o Brasil fosse o último país a acabar com a escravidão.

É certo que o capitalismo trouxe ao homem do campo o desejo de uma outra vida, na qual tivesse acesso às facilidades da vida moderna, como relatou Antonio Cândido11:

(...) um grupo que se sentia equilibrado e provido do necessário à vida, quando se equiparava aos demais grupos de mesmo teor, sente-se bruscamente desajustado, mal aquinhoado, quando se equipara ao morador das cidades (...) a ampliação das necessidades não é compensada pelo aumento do poder aquisitivo. Colocado em face desta situação, o caipira reage de duas maneiras principais: rejeita em bloco suas condições de vida e emigra, proletarizando-se. (...) a industrialização, a diferenciação agrícola (...) ocasionaram uma nova e profunda revolução na estrutura de São Paulo. Graças aos recursos modernos de comunicação, ao aumento da densidade demográfica e à generalização das necessidades complementares, acham-se agora frente a frente homens do campo e da cidade, sitiantes e fazendeiros, assalariados...

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