O caso joey e a possibilidade de penhora de animais domésticos no novo CPC

AutorGustavo Santana Nogueira, Suzane Pimentel Nogueira
CargoProfessor de Direito Processual Civil na Faculdade Redentor - RJ/Professora de Direitos Humanos na Faculdade Redentor e na Faculdade de Direito de Campos - RJ
Páginas95-111
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 11, 2016, p. 95-111
O CASO JOEY E A POSSIBILIDADE DE PENHORA DE ANIMAIS
DOMÉSTICOS NO NOVO CPC
The Joey´s case and the possibility of attachment of domestic animals in the new cpc
Gustavo Santana Nogueira*1
Suzane Pimentel Nogueira**2
Resumo: o Novo Código de Processo Civil, aprovado em 2015, vem recebendo elogios da comuni-
dade acadêmica, diante das diversas inovações que ele traz. Entretanto, há um ponto em especial
que merece todas as críticas, que diz respeito ao tratamento dado aos animais, ainda como coisa,
possibilitando assim a sua penhora como meio para satisfação de créditos. Trata-se de medida
extrema, que viola o direito e a ética animal, além de afrontar a Constituição, que proíbe os maus-
tratos aos animais.
Abstract: the New Civil Procedure Code, approved in 2015, has received praise from the academic
community, given the many innovations it brings. However there is one point in particular that deser-
ves all the criticism, with regard to treatment of animals, even as a thing, thus allowing its attachment
as a means of credits satisfaction. It is an extreme measure that violates the law and animal ethics,
and also the Constitution, which prohibits the mistreatment of animals.
Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil. Direito dos animais. Execução. Caso Joey. An-
tropocentrismo.
Keywords: New Civil Procedure Code. Animal law. Enforcement. Joey case. Anthropocentrism.
Sumário: 1. Introdução. 2. O caso Joey e a consideração dos seus interesses. 3. A efetividade do
processo e a penhora no NCPC. 4. O antropocentrismo e o atraso na legislação processual brasi-
leira. 5. Conclusões.
1. Introdução
O presente ensaio busca analisar o retrocesso do Novo Código de Pro-
cesso Civil – NCPC no que tange ao tratamento do animal como “coisa”, que é
uma tese absolutamente superada pela ciência e pela ética. Apesar do NCPC
representar um avanço em diversas áreas do direito processual civil, o que não
*1Professor de Direito Processual Civil na Faculdade Redentor – RJ. Mestre (Unesa) e Doutor
(UERJ) em Direito. Promotor de Justiça – RJ. Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura –
RDL. Email: gustavonogueira75@terra.com.br
**2Professora de Direitos Humanos na Faculdade Redentor e na Faculdade de Direito de Campos
– RJ. Mestranda em Direito na Unesa, na linha Novos Direitos. Membro da Comissão de Proteção
e Defesa dos Animais da OAB-RJ. Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura – RDL. Email:
spimentelnog@uol.com.br
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se nega, obviamente o fato de o animal continuar sendo tratado como coisa é
um ponto negativo que aqui se destaca. A primeira parte se propõe a analisar
um importante caso julgado pela Corte de Nova York, nos Estados Unidos da
América, que cou conhecido como “Caso Joey”, em que o animal teve seus
interesses considerados pela Corte no momento de resolver uma sociedade
conjugal com o divórcio. O cão Joey não foi tratado como simples coisa, tendo
sido aplicado o que há de mais moderno no direito, na ciência e na ética sobre o
animal. A segunda parte analisa alguns avanços implementados pelo Novo Có-
digo de Processo Civil, especialmente na parte da efetividade do processo, com
a valorização dos poderes do juiz para garantir a real satisfação do direito. A
terceira parte analisa a forma como o legislador trata os animais, como simples
coisas, e o que se pretende é – com algumas indagações que partem dessa
premissa – causar um desconforto com o fato de os animais ainda serem trata-
dos como coisa, mesmo a nova lei sendo de 2015. O antropocentrismo – visão
também ultrapassada – e o atraso da legislação brasileira, inclusive a penal, no
que tange ao animal, também são explorados na terceira parte. Ao nal são lan-
çadas algumas conclusões a respeito daquilo que foi desenvolvido no ensaio.
2. O caso Joey e a consideração dos seus interesses
Uma ação de divórcio proposta na Corte Estadual de Nova York, nos Es-
tados Unidos, proporcionou uma interessante discussão acerca dos direitos dos
animais. O caso, ocialmente conhecido como Travis v. Murray, recebeu uma
decisão no dia 29 de novembro de 2013 que elevou os animais a um patamar
diferenciado, já que o casal que estava se divorciando discutia em juízo acerca
da “guarda” do cão da raça dachshund chamado Joey, cuja história começou a
mudar no dia 06 de fevereiro de 2001, quando Shannon Louise Travis comprou
Joey em uma pet shop, quando já morava com Trisha Bridget Murray, porém
antes do casamento, que se efetivou em outubro do ano seguinte.3
Menos de 1 ano após o casamento ocorreu a separação de fato, quando
Murray, aproveitando que Travis estava viajando e, portanto, fora da cidade de
Nova York, decidiu sair de casa e levar alguns objetos, bem como o cão Joey
com ela. Na petição em que requer o divórcio, Travis pede ainda que Joey seja
entregue a ela, em seus cuidados, para car sob a sua custódia, única e exclu-
sivamente, já que Joey foi comprado por ela e, portanto, seria propriedade sua.
3 Sempre de acordo com a decisão. Disponível em:
courts/2013/2013-ny-slip-op-23405.html>. Acesso em: 10 ago. 2015.
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Além da alegação baseada na propriedade do animal, Travis sustenta que o
melhor interesse do cão é que ele que com ela, já que ela é quem cuidava dele
e o sustentava. Em sua defesa, Murray diz que Joey foi um presente dado a ela
por Travis, que a responsabilidade nanceira pelo sustento de Joey sempre foi
dividida entre o casal e que ela é quem supria as necessidades emocionais, prá-
ticas e logísticas de Joey. Portanto, o melhor interesse de Joey estaria atendido
apenas se ela casse com o animal, que na verdade encontrava-se em outro
estado, no Maine, com a sua mãe. Mesmo assim, o melhor para Joey seria car
com a mãe de Murray, segundo ela alegou, porque poderia vê-lo sempre.
O direito evoluiu tanto ao longo dos anos que o caso chama a atenção
pela disputa pela “guarda” do cão Joey, e não mais pelo fato de as partes serem
do mesmo sexo. Já foi o tempo em que o próprio casamento – não o divór-
cio, que é mera consequência deste – entre pessoas do mesmo sexo era algo
questionado perante o direito, sendo que o estado de Nova York, onde o litígio
ocorreu, admite o casamento entre pessoas do mesmo sexo desde 24 de junho
de 2011.4 A lei que admitiu o casamento estatui que às pessoas do mesmo sexo
deva ser assegurado o direito fundamental ao casamento, inerente aos direitos
humanos, e que, ainda, o princípio da igualdade impõe ao Poder Público o seu
reconhecimento.5
Voltando à disputa pelo Joey, o caso traz importantes considerações so-
bre o direito dos animais, que são vistos como simples “coisa”, enquanto que
a decisão representa uma importante evolução nesse aspecto, já que foca a
disputa não no fato de Joey ser uma “coisa”, mas sim um ser que deve receber
uma consideração especial. As próprias partes no litígio invocam suas preten-
sões no direito de propriedade, pois Travis diz que Joey lhe pertence porque foi
ela quem comprou, enquanto que Murray diz que Joey é seu porque foi um pre-
sente, e a decisão judicial refuta solenemente o fundamento de que Joey seria
uma “coisa” e que, portanto, a decisão sobre quem deveria car com ele deveria
ser tomada com base em tal análise.
No campo do direito dos animais, a tese de que eles seriam “coisa” ou
“propriedade” dos humanos resta totalmente superada, representando uma
transformação no assunto, não ainda como desejam os defensores dos direitos
dos animais, mas de certa forma uma transformação. A decisão mesmo diz que
não se pode comparar um animal com uma coisa, como um carro de luxo, uma
4 Uma lei conhecida como Marriage Equality Act legalizou o casamento, sendo que as partes no
litígio se casaram, segundo a decisão, em 12 de outubro de 2012.
5 Disponível em: .gov/sites/governor.ny.gov/les/archive/assets/marria-
geequalitybill.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2015.
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casa na praia ou um chalé na montanha, de modo que não se pode fazer a “par-
tilha” do cão tendo como critério decisivo para tal conclusão a análise de quem
comprou ou ganhou o Joey.
Na decisão em si ainda há outro aspecto relevante: a Corte de Nova York
reconhece que não há precedentes acerca do assunto em questão, e isso, em
um país liado à família jurídica conhecida como common law, é algo a ser
considerado. Na common law, como cediço, o direito é fortemente centrado em
precedentes, ou seja, casos já julgados no passado são considerados como
importante fonte de direito, e não podem ser simplesmente ignorados pelo juiz
do caso apresentado para julgamento. Vale aqui a máxima de Ronald Dworkin,
que compara o dever de respeitar os precedentes como parte integrante de um
romance, em que cada juiz escreve um capítulo da história, proporcionando a
evolução do direito, não sendo lícito a um juiz, responsável pelo próximo “capí-
tulo”, simplesmente ignorar que o direito, assim como o romance que vai sendo
escrito, é uma evolução em etapas, cada capítulo guardando conexão com o
anteriormente escrito por outro juiz (DWORKIN, 2005, p. 235-236).
Porém, há casos em que não existem – simplesmente não existem – pre-
cedentes criando uma tese jurídica ou não contêm o que os norte-americanos
chamam de ratio decidendi, a orientar o caso a ser julgado. Em situações assim,
os juízes não têm um caso anterior a analisar, a ponderar, a comparar com o
caso presente, impossibilitando a utilização dos mecanismos típicos da teoria
que prega a adesão aos casos passados, chamada de stare decisis. No caso
Joey não havia, como observado, um precedente válido, não podendo a Corte
“evoluir” em algo que não havia sido considerado anteriormente. O juiz Matthew
Cooper registrou que havia se deparado com um caso semelhante ao atual,
que envolvia a disputa de um cão da raça labrador, chamado Otis, mas que já
contava com 15 anos de idade, portanto uma idade avançada para cães. Não
que o fato da idade do cão tenha sido um fator de diferenciação relevante entre
os casos Otis e Joey, mas o fato é que Otis era um cão idoso e, pensando ex-
clusivamente no seu bem-estar, a ex-mulher desistiu da disputa pelo cão, vindo
ele a falecer alguns meses após o término do litígio, sem que a Corte pudesse
decidir a respeito da sua “guarda”.
Na common law, o ponto de partida do juiz são os precedentes, e apenas
subsidiariamente a lei escrita, porque aquilo que as Cortes dizem que a lei “diz”
é o que mais importa nesses sistemas, ao contrário do que ocorre nos países
da família civil law.6 No caso em tela, a questão é mais difícil ainda, já que não
6 “Nos sistemas de direito romano-germânico, a lei é a fonte primária do direito. A codicação au-
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há no estado de Nova York lei alguma regulamentando a “guarda” de animais de
estimação em casos de divórcio, e presumidamente não há essa lei em diversos
outros estados norte-americanos, como não há no Brasil.
O sistema de stare decisis no direito norte-americano respeita a sua for-
ma de federação, na qual os estados têm forte autonomia para legislar, de modo
que o direito de família de Nova York difere do direito de família de outros es-
tados, pelo menos no que tange à fonte normativa, ou seja, as leis do estado
de Nova York só valem no referido estado. Como não foram encontrados, pela
Corte, precedentes sobre o assunto no estado de Nova York7, em tese ela não
precisa seguir julgado algum, estando assim “livre” para criar o direito no caso
concreto. Caso existisse um precedente no estado acerca do tema, não poderia
a Corte simplesmente ignorar a sua existência – como ocorre frequentemen-
te no Brasil – porque o respeito aos precedentes é algo enraizado na cultura
jurídica norte-americana, não se concebendo que uma Corte julgue um caso
concreto sem ater-se aos julgados passados. A questão é cultural e hierárquica,
e mesmo a Corte Superior não pode desconsiderar os seus próprios julgados
para manter a higidez do sistema, sendo que, no caso, se está tratando do stare
decisis vertical, que é o respeito aos precedentes dentro dos órgãos judiciários
de um estado.
Entretanto, a decisão do caso Joey cita diversas decisões de Cortes de
outros estados, o que não é obrigatório na teoria dos precedentes vinculantes,
porque os órgãos judiciários de um estado não se submetem aos precedentes
de outros, nos Estados Unidos, podendo, no máximo, servir de elemento persu-
asivo, mas não vinculante. É o que se chama stare decisis horizontal, e foi feito
pela Corte de Nova York, que buscou casos anteriores em outros estados que
já tinham tratado de uma questão semelhante, já que o caso é inovador. A Corte
até diz que casos de divórcio em que animais de estimação estão no centro
da divergência tendem a se tornar comuns, porém, na falta de precedentes de
menta consideravelmente a força da lei, hierarquizando as suas disposições e as reagrupando em
um conjunto exaustivo e coerente: em suma, racional. A codicação é certamente a técnica mais
característica dos direitos da família romanista. Longe de ser uma simples coletânea de regras, o
código é um edifício legislativo que pretende ser o espelho de uma polis harmoniosa. Ele deve for-
necer ao cidadão um material legível, ao qual seja sempre possível referir-se, e ser, para o juiz, um
guia precioso para perceber, através da disposição dos princípios e da classicação das regras, a
intenção legisladora. Aliás, somente a lei constitui o direito, do qual os juízes são apenas os porta-
vozes” (GARAPON; PAPAPOULOS, 2008, p. 33).
7 Segundo a decisão, “o que é ainda mais surpreendente, considerando dedicação dos nova-ior-
quinos para seus cães e sua propensão para o litígio, é que há tão poucos casos relatados dos
tribunais desse estado lidando com a custódia de animais de estimação em geral e nenhum caso
com uma decisão nal acerca da custódia para as partes no divórcio” (Tradução livre).
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Nova York, um ponto de partida para iniciar a decisão foi a pesquisa de casos
análogos em outros estados.
A questão central – a “guarda” de Joey – passa necessariamente pela
consideração que o direito confere aos animais, tratando-os como coisa, como
pessoas, ou como algo diferenciado de coisa e pessoa. A decisão da Corte
observa que em Nova York os animais são tratados pela legislação – sobre
outros temas – como propriedades dos seus donos, o que é uma visão antropo-
cêntrica, já considerada ultrapassada no direito dos animais, mas é assim que
muitas leis, nos Estados Unidos e inclusive no Brasil, tratam os animais. Se a
Corte considerasse Joey uma coisa, seria relevante perquirir qual das partes na
demanda de divórcio era a real proprietária do cão, inclusive seria necessário
produzir prova sobre a alegação de que Joey seria um “presente” dado. Mas a
Corte refuta a visão de que Joey seria uma simples coisa:
Depois de analisar a progressão da lei em Nova York e outros estados, pode-se
concluir que, num caso como este, em que ambos os cônjuges estão lutando por
um cão uma vez possuído e criado em conjunto, uma análise com base em direito
de propriedade não é desejável nem apropriada. Embora Joey, um dachshund mi-
niatura, não seja um ser humano, e não possa ser tratado como tal, ele é decidida-
mente mais do que uma propriedade. Como resultado, se a demandante comprou
Joey da loja de animais com seus próprios recursos ou se a ré o recebeu da autora
como um presente, são apenas fatores a considerar quando se determinar o que
acontece com ele.8
A decisão, ao mesmo tempo em que nega o status de simples coisa a
Joey, também lhe nega o status de pessoa, o que poderia ser resolvido, hipote-
ticamente, com as leis que tratam da guarda de crianças em casos de divórcio:
Obviamente, a aplicação das práticas e princípios associados aos casos de cus-
tódia de crianças para casos de custódia de cães é inviável e injusticada. [...] Os
fatores subjetivos, que são fundamentais para uma melhor análise dos interesses
da criança em casos de custódia, particularmente os que dizem respeito aos sen-
timentos ou percepções de uma criança, evidenciados pelas provas, são, em sua
maior parte, incertos quando o assunto é um animal em vez de um humano.
Não admitindo a Corte que Joey seja considerado uma coisa, a ser par-
tilhada como um patrimônio qualquer, nem como pessoa, a ter a sua guarda
decidida com base em estudos sociais, depoimentos, análises psicológicas etc.,
restou à Corte considerá-lo como um sujeito de interesses que devem ser tute-
lados, sem denir a sua natureza, o que já é um avanço no campo do direito dos
8 De acordo com a própria decisão.
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animais, porque o que mais importou para a Corte não foi denir a natureza de
Joey, inclusive essa questão é altamente losóca e sequer há consenso entre
os especialistas sobre o tema, mas sim denir que Joey tem interesses que
precisam ser protegidos de alguma forma.
Trata-se da doutrina da igual consideração de interesses, capitaneada,
entre outros, por Peter Singer, para quem:
Este principio de igualdad implica que nuestra preocupación por los demás y nues-
tra buena disposición a considerar sus intereses no deberían depender de cómo
sean los otros ni de sus aptitudes. [...] Pero el elemento básico – tener em cuenta
los intereses del ser, sean cuales Sean – debe extenderse, según el principio de
igualdad, a todos los seres, negros o blancos, masculinos o femininos, humanos o
no humanos (SINGER, 2011, p. 21-22).
Portanto, passa-se agora a analisar os aspectos processuais mais im-
portantes da decisão do caso Joey, a partir do momento em que a Corte reco-
nheceu a relevância de se proferir uma decisão que fosse adequada ao animal,
sem, entretanto, chegar à profundidade que exige um caso que dene a guarda
de crianças. Isso se deve ao fato de que uma maior profundidade demandaria
uma análise complexa dos envolvidos e do próprio Joey, e a decisão arma
que os recursos judiciais para dedicar tempo e dinheiro à solução do caso são
limitados, mas também pondera que o Judiciário gasta muito tempo e dinheiro
para resolver questões menos importantes, como a partilha de bens materiais. A
primeira questão importante do caso, portanto, foi que a Corte concedeu às par-
tes o full hearing, que vem a ser a possibilidade de produzir provas no Tribunal,
mas não mais que um dia seria dedicado à atividade probatória.9
A concessão do direito ao full hearing é de enorme relevância proces-
sual, ainda mais que a Corte havia insinuado que recursos judiciais limitados
devem ser empregados em casos que valham a pena, ou seja, não se conce-
deria o full hearing caso Joey não fosse importante no caso concreto. Trata-se
de derivação do due process of law, um princípio constitucional que decorre da
14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos. O full hearing é assegurado
às partes para que elas possam comparecer na Corte (the day in the court) e
produzir provas sobre aspectos relevantes da causa, que no caso resume-se a
decidir a guarda de Joey. A decisão inclusive especica o que deve ser provado,
assemelhando-se à decisão de saneamento do processo que o Novo Código de
9 A Corte diz que, por mais que animais de estimação sejam maravilhosos, eles não têm a mesma
importância que as crianças, e assim sendo o Judiciário não poderia car “eternamente” ocupado
com a decisão da guarda de Joey.
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Processo Civil – NCPC exige que seja proferida pelo juiz no Brasil.10
Exatamente no que deve ser o objeto da prova que reside o outro aspec-
to fundamental e inovador da decisão, porque ela expressamente se refere ao
“interesse de todos os envolvidos” como critério a ser utilizado pela Corte para
decidir com quem Joey deveria car, em guarda exclusiva, ou seja, não seria
admitida a visitação da parte derrotada ao cão. Importante vericar que Joey
não é parte no processo, não é autor, nem réu, até porque se trata de uma
questão evidentemente complexa. Em trabalho intitulado Standing for animals,
Cass Sunstein expõe a controvérsia que reina no direito norte-americano sobre
o tema, na lei, na doutrina e na jurisprudência (SUNSTEIN, 1999). No caso
em tela, entretanto, a legitimidade do animal para gurar como parte no pro-
cesso sequer é considerada, eis que a demanda é um divórcio entre pessoas
do mesmo sexo. Joey não teve a sua legitimidade reconhecida, mas foi muito
importante o fato de a Corte ter adiantado que a importância da prova a ser
produzida era para a aplicação do standard do melhor interesse de todos os
envolvidos, porque considera expressamente o que seria melhor para o Joey.
Portanto, a Corte esclarece que cada parte terá a oportunidade de provar não
apenas como cada uma irá se beneciar de ter Joey consigo, em suas vidas,
mas também porque Joey teria uma melhor chance de viver, progredir, amar e
ser amado se car com uma ou outra das partes do litígio. E, agindo de forma
total e completamente leal perante as partes, a Corte já indica o que considera
o mais importante:
Para esse m, as partes podem ter que enfrentar questões como: Quem tinha
maior responsabilidade para atender às necessidades de Joey (isto é, alimen-
tação, passeio, higiene e levá-lo ao veterinário) quando as partes viviam juntas?
Quem normalmente passou mais tempo com Joey? Por que a autora deixou Joey
com a ré, como ela alega, no momento em que o casal se separou? E talvez o
mais importante, por que a ré escolheu deixar Joey viver com sua mãe em Maine,
em vez de com ela, ou com a autora em Nova York?
Verica-se que todas essas questões processuais colocadas às claras
pela Corte no decorrer do processo, em especial na decisão de “saneamento”,
de modo a orientar a produção das provas em full hearing, têm como ponto
10 NCPC, art. 357: “Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em de-
cisão de saneamento e de organização do processo:
[...]
II – delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especicando os
meios de prova admitidos;
V – designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.”
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central decidir o que seria melhor para todos os envolvidos, não só as partes
do processo, mas também, fundamentalmente, o cão Joey. É claro que a Corte
sequer considera a possibilidade de Joey ser “ouvido”, até porque a decisão
diz que a única forma de se vericar como o cão quer que sua custódia seja
decidida é “balançando o rabo”, o que não é conável, e sequer ajudaria porque
é de se presumir que ele assim agiria quando visse ambas as partes. Mas é
inegável que a consideração dos interesses de Joey foi uma questão central e
fundamental, até inovadora quando se trata da igual consideração dos interes-
ses dos envolvidos.11
3. A efetividade do processo e a penhora no NCPC
Aprovado em 2015, o NCPC representa para o país, em linhas gerais,
um avanço em termos de legislação processual, eis que foram instituídas im-
portantes inovações na nova lei, que veio substituir o antigo CPC, de 1973,
elaborado para outra época. Nem mesmo as sucessivas reformas introduzidas
na legislação processual antiga, com o intuito de melhorá-la, foram sucientes
para imprimir ao processo civil brasileiro o “ar” de modernidade necessário para
adaptar a lei instrumental à nova sociedade. Nesse contexto, optou-se por um
código inteiramente novo e, conquanto alguns dispositivos tenham sido repeti-
dos, o NCPC contém institutos realmente novos.
Uma das grandes inovações trazidas pelo Código foi o reconhecimento
da força do “processo civil constitucional”, ou seja, a necessidade imperiosa
de se respeitar a força normativa e a hierarquia do texto constitucional, que
deve constantemente ser “lembrado” quando for necessária a interpretação do
texto das leis infraconstitucionais, como o Código de Processo Civil.12 Daí os
aplausos advindos da comunidade acadêmica ao Capítulo 1, do Título único, do
Livro I, denominado “Das normas fundamentais do processo civil”, posto que ele
contém uma série de princípios consagrados na Constituição, mas expostos no
Código como regras de direito processual civil, porém com fortíssima carga prin-
11 O caso terminou com as partes – Trisha Murray e Shannon Travis – celebrando um acordo cujos
termos são privados, mas a importância da decisão remanesce intacta. Não importa, para a igual
consideração de interesses, qual seria a justiça da decisão que eventualmente decidisse o futuro de
Joey. A justiça da decisão que considera os interesses de Joey como relevantes é o que importa. A
notícia do acordo está disponível em:
-law-review-spring-2014-vol-46-no-1/>. Acesso em: 15 jan. 2016.
12 “Art. 1o O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as nor-
mas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se
as disposições deste Código.”
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cipiológica. Dentre as normas ali consagradas, destaca-se a efetividade, que,
segundo as lições de Marcelo Lima Guerra, apud Fredie Didier Jr.,
[...] garante o direito fundamental à tutela executiva, que consiste ‘na exigência
de um sistema completo de tutela executiva, no qual existam meios executivos
capazes de proporcionar pronta e integral satisfação a qualquer direito merecedor
de tutela executiva’ (DIDIER JR., 2015, p. 113).
A necessidade de que o processo seja capaz de dar a quem tem o di-
reito aquilo e tudo aquilo que ele tem o direito de obter é, de fato, um princípio
constitucional dos mais importantes, porque sem a efetividade da função juris-
dicional, em essência, do próprio processo, todo o sistema jurídico tende a ruir,
incentivando diversas práticas históricas que há séculos foram extirpadas de
nossa sociedade, como a “justiça com as próprias mãos”. A presença efetiva do
Estado na atividade executiva é absolutamente fundamental para garantir – na
prática – a satisfação do direito daquele que o possui. Como ensina Leonardo
Greco, “a nalidade da execução é o desenvolvimento de atividades práticas
para propiciar ao credor o mesmo bem que alcançaria através do adimplemento
voluntário da obrigação pelo devedor”, e prossegue o jurista armando que isso
é necessário “para produzir na situação de fato as modicações necessárias à
efetivação da regra sancionadora” (GRECO, 1999, p. 161). Por isso é importan-
te que o NCPC preveja mais de uma vez que há um compromisso do Estado
em garantir a efetividade do processo, como se observa nos arts. 4º e 6º, por
exemplo.13
Na esteira das normas fundamentais do processo civil, o NCPC realmente
se preocupa com garantir a efetividade da jurisdição, dotando o juiz de deveres
-poderes até então desconhecidos, com a intenção de fazer com que os direitos,
reconhecidos em títulos executivos judiciais ou extrajudiciais, sejam efetivados.
E não é apenas no direito brasileiro que se verica essa necessidade de uma
execução realmente efetiva, devendo o juiz – quando a execução competir a
ele14 – utilizar os meios necessários para garantir o resultado satisfativo. Na
Espanha, por exemplo, observam Juan Montero Aroca e José Flores Matíes
que “el Tribunal está investido de potestad para hacer lo que puede hacer el
ejecutado [...]” (AROCA; MATÍES, 2004, p. 391).
13 “Art. 4o As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída
a atividade satisfativa.”
“Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo
razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”
14 Nos Estados Unidos da América, a execução não é presidida pelo juiz da causa, mas sim con-
ada a terceiros, geralmente funcionários (FRIEDENTHAL et al., 2005, p. 745).
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Dentre os poderes do juiz na execução prevista no CPC, destaca-se o de
determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-roga-
tórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, na forma do
inciso IV do art. 139. Apesar de a lei referir-se apenas ao cumprimento de uma
ordem, tem-se como mais adequado o entendimento que possibilita ao juiz ado-
tar as medidas necessárias para garantir o cumprimento de decisões judiciais
e títulos executivos judiciais. Como não há hierarquia entre os títulos, não pode
o legislador discriminar as obrigações – que são do direito material – consagra-
das em um ou outro título. Como dispõe a parte inicial do Código, as partes têm
direito à atividade satisfativa.
Como o presente trabalho tem um objetivo determinado, passa-se a usar
o termo “execução” para referir-se tanto à atividade jurisdicional que busca ga-
rantir o direito reconhecido no título judicial como no extrajudicial, sem distin-
ções indevidas. Obviamente que se está ciente da adoção – pelo NCPC – de
um sistema duplo de execução, o que na verdade ocorre desde 2005, com a
instituição do cumprimento de sentença no Código de 1973, porém o objetivo do
trabalho, como dito, é mais restrito.
Um dos meios, e o mais tradicional, de se assegurar o cumprimento
da obrigação de pagar uma determinada quantia em dinheiro é a penhora.
Citando José Carlos Barbosa Moreira, Alexandre Câmara, sobre a penhora,
assinala:
Penhora é ‘o ato pelo qual se apreendem bens para empregá-los, de maneira
direta ou indireta, na satisfação do crédito exequendo’. Trata-se, pois, de ato de
apreensão judicial de bens, sendo certo que os bens penhorados serão emprega-
dos na satisfação do direito exequendo (CÂMARA, 2014, p. 304).
A penhora é um ato essencial, portanto, porque ela promove a apreensão
do bem de propriedade do executado, e será empregado para satisfazer o seu
direito, dando sentido ao princípio da efetividade, razão pela qual deve a penho-
ra ser vista como um ato processual dos mais relevantes na execução. Dessa
forma, a penhora deve ser facilitada, para que a execução não sobrecarregue
– mais ainda – aquele que tem o direito e não obteve a satisfação voluntária
deste. E é por isso que merecem todos os elogios a iniciativa do legislador,
ainda na vigência do CPC de 1973, de adequar a penhora à nova realidade, o
mundo virtual.
Não faz o menor sentido a expedição de mandado de penhora de dinhei-
ro, ainda através do papel, para ser cumprido pelo ocial de justiça em um es-
tabelecimento bancário, quando as relações bancárias hoje são automatizadas
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e feitas, com relativa facilidade, no mundo virtual (on-line). Daí a instituição da
chamada penhora on-line, que nada mais é do que a vetusta penhora de dinhei-
ro, só que efetivada de forma simples e moderna, através da expedição de um
ofício virtual do juízo para a instituição nanceira.
4. O antropocentrismo e o atraso na legislação processual brasileira
O que se observa, ainda, é que a penhora incide essencialmente sobre
“bens”, jamais sobre pessoas, porque a execução “pessoal” cou na história do
direito, tão somente. Os bens penhorados, por sua vez, serão empregados na
satisfação do direito daquele que promove a execução, para garantir a efetivi-
dade do processo, além da própria satisfação do direito, por certo. A discussão
que se propõe aqui não tem como premissa os limites à penhora, como a im-
penhorabilidade, porque essa limitação é válida para “bens”, ou seja, alguns
bens são impenhoráveis. São bens destinados à vida digna do executado, mas
continuam sendo bens, como a televisão, e, segundo o Superior Tribunal de
Justiça, a Constituição protege o patrimônio mínimo indispensável à vida digna
do executado.15
Mas qual seria a denição, no direito, de “bens”? Segundo Clovis Be-
vilaqua, “bem é uma utilidade, porém com extensão maior do que a utilidade
econômica, porque a economia gira dentro de um círculo determinado por estes
três pontos: o trabalho, a terra e o valor” (BEVILAQUA, 1999, p. 214). Já para
Pontes de Miranda, o conceito de bem é aproximado ao de objeto de direito, e
este, por sua vez “é algum bem da vida que pode ser elemento do suporte fáti-
co de alguma regra jurídica, de cuja incidência emane fato jurídico, produto de
direito” (MIRANDA, 2000, p. 37).
Os animais, pelo menos para o direito brasileiro, são – por incrível que
pareça – considerados “bens”, conforme se depreende do Código Civil, cujo
art. 82 dene como móveis “os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de
remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação eco-
nômico-social”. Como se verica, o Código Civil abandonou a ideia de animais
como semoventes, entretanto não reconheceu o animal como nada além de um
15 “O rol das impenhorabilidades do ordenamento pátrio objetiva preservar o mínimo patrimonial
necessário à existência digna do executado, impondo ao processo executório certos limites. Assim,
a depender das peculiaridades do caso, as regras de impenhorabilidade podem ser ampliadas, de
modo a adequar a tutela aos direitos fundamentais, como por exemplo: o direito à moradia, à saúde
ou à dignidade da pessoa humana. Trata-se, portanto, da aplicação do princípio da adequação e da
necessidade sob o enfoque da proporcionalidade” (STJ, REsp 1436739/PR, Rel. Ministro HUMBER-
TO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/03/2014, DJe 02/04/2014).
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“bem”, uma simples “coisa”, muitas vezes dotada de valor econômico. E é esse
valor em dinheiro que levou o legislador que instituiu o NCPC a continuar admi-
tindo a penhora desses “bens”, de modo que as críticas observações de Daniel
Lourenço deveriam ser, no mínimo, objeto de consideração, quando assevera
que, no direito romano do século II:
De fato, os animais eram, como ainda são, classicados como ‘coisas’. [...] Para
Gaio, uma ‘pessoa’ era um ente capaz de portar direitos subjetivos, enquanto uma
‘coisa’ era tão somente um ente subordinado aos direitos subjetivos de alguém.
Mulheres, crianças, decientes mentais, escravos e animais foram, em um dado
momento, e por muito tempo, rotulados sob esta última categoria (LOURENÇO,
2008, p. 87).
Repleto de avanços de um lado, o Novo Código representa um retrocesso
enorme na consideração dos animais como simples bens passíveis de penhora
para a satisfação de um crédito em dinheiro. Inclusive, o NCPC sequer acompa-
nha o Código Civil, de 2002, que não considera mais a classicação de um bem
como semovente, porque o inciso VII do art. 835 elenca os bens semoventes
como passíveis de penhora. O NCPC continua referindo-se aos animais como
semoventes em outras passagens, como no art. 840, II, ao dispor que os se-
moventes penhorados serão preferencialmente depositados com o depositário
judicial, o que se conrma pelo art. 862 (“Quando a penhora recair em estabe-
lecimento comercial, industrial ou agrícola, bem como em semoventes, plan-
tações ou edifícios em construção, o juiz nomeará administrador-depositário,
determinando-lhe que apresente em 10 (dez) dias o plano de administração”).
Após a penhora do “bem”, e a nomeação do depositário, o próximo passo em
uma execução é a expropriação, para que haja, nalmente, a satisfação do
exequente. Nessa fase ou o “bem” é adjudicado pelo exequente, como forma de
pagamento, ou seja, ele ca com o objeto que pertencia ao executado, ou o bem
é levado a leilão, sendo alienado para qualquer terceiro que, não sendo proibido
de participar, ofereça o maior lanço.
Essa breve descrição do caminho do bem, entre a penhora e a expropria-
ção (ou seja, a perda do bem pelo executado), não traz nenhum questionamen-
to de ordem ética se o bem penhorado for realmente um bem, e não uma vida.
Se considerarmos a penhora de um automóvel, não se discute que a perda do
automóvel pelo executado fere a ética e a moral, salvo se o bem for absoluta-
mente necessário ao exercício da prossão do executado, ou seja, se for a sua
fonte de sustento. E em casos assim o STJ já se pronunciou no sentido da im-
penhorabilidade, indo até além, para estender a impossibilidade de penhora ao
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veículo que é útil – e não necessário – ao exercício da prossão.16 Se a penhora
de um bem, como um lustre de cristal, é plenamente cabível, por ser, no caso,
um bem de “enfeite”, o mesmo não se pode dizer de uma vida.
É ético penhorar uma vida para satisfazer um crédito em pecúnia, seja de
que natureza for? Animais são seres sencientes, e ainda se discute no campo
da ética se são ou não sujeitos de direitos, mas parece inegável que animais
são seres vivos. Daí o espanto com a opção totalmente antropocêntrica, que
coloca o homem – e o dinheiro, desde sempre – como centro do universo, para
se chegar ao cúmulo de se ter no Brasil uma lei de 2015 admitindo a penhora de
“semoventes”. Mesmo não havendo mais “bens semoventes” no Código Civil,
ca claro que o NCPC está se referindo ao cachorro, ao gato, ao porco, à vaca,
ao boi, ao cavalo, enm, aos animais.
Independentemente das dívidas contraídas pelo ser humano (o “dono”),
o seu cão tem uma vida própria, tem seus interesses, tem seus medos, seus
momentos de alegria e tristeza, sente frio, sente calor, enm, tem emoções. Pe-
nhorar um cão soa algo absolutamente cruel com o animal, que, sem entender
o que se passa, ver-se-á privado do contato do seu melhor amigo porque esse
“melhor amigo” contraiu uma dívida e não a honrou. Quem irá explicar ao animal
que esse sacrifício dos seus interesses é necessário porque há certa quantia
em dinheiro que o exequente precisa receber?17 Não são raros os casos de
cães que sofrem de depressão pela morte dos seus “donos”, privando-se das
necessidades mais básicas, como o alimento, por profunda tristeza, levando-os
até a morte. A Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Hu-
manos e Não Humanos, elaborada por um grupo internacional de neurocientis-
tas, neurofarmacologistas, neurosiologistas, neuroanatomistas e neurocientis-
tas computacionais cognitivos, concluiu:
A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente
estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm
os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurosiológicos de estados de
consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencio-
16 “Assim, mesmo admitindo-se que o recorrente possa realizar sua atividade prossional através
de outros meios, vislumbra-se claramente que, na hipótese analisada, o automóvel penhorado lhe é
de extrema utilidade” (STJ, REsp 1090192/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TUR-
MA, julgado em 11/10/2011, DJe 20/10/2011).
17 “A veces um animal puede sufrir más debido a que tiene um poder de comprensión más limitado.
Si, por ejemplo, capturamos prisioneros em tiempo de guerra, podemos explicarles que, aunque
tienen que someterse a la captura, los interrogatórios y la prisión, no se lês causarán otros daños
y serán puestos em libertad cuando concluyan las hostilidades. Pero si capturamos a um animal
salvaje, no podemos explicarle que no estamos amenazando su vida” (SINGER, 2011, p. 33).
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nais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são
os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais
não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas,
incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.18
O NCPC simplesmente ignora essa evidência cienticamente compro-
vada e, fria e cruelmente, admite a penhora do animal. Porém, a partir do mo-
mento em que a Constituição da República veda expressamente a crueldade
contra os animais, tem-se como agrantemente inconstitucional a possibilidade
de penhora de animais, ainda mais quando o NCPC diz que a sua interpretação
deve ser feita em conformidade com a Lei Maior. Trata-se da consideração dos
interesses do animal, e não do argumento antropocêntrico de que a privação do
convívio com o seu “bem” fere a dignidade da pessoa humana. O animal deve
ser protegido por si, e não em função do homem, como também armou Gracie-
la Guisasola, nos seguintes termos:
Este sentimiento entre animales y personas no se puede convertir en una fuente
de derechos animales. Los derechos deben ser independientes de si hay afecto o
no lo hay. De lo contrario, la ley y el derecho que crean tendrian como fundamento
algo tan subjetivo y cambiante como es lo afecto (GUISASOLA, 2012, p. 166).
Embora os autores deste trabalho, de acordo com a ética animal, sejam
contrários ao abuso e exploração dos animais como força de trabalho e à forma
desumana com que são tratados os animais de corte nas fazendas e granjas
industriais, pelos limites restritos deste trabalho não se abordará esse tema.19
Considerando, por m, que o direito deve manter a unidade, ou seja, “não
permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas” (CANA-
RIS, 2012, p. 12-13), também não se compreende como pode – ao mesmo tem-
po – ser um ato criminoso submeter os animais à crueldade (art. 32 da Lei de
Crimes Ambientais) e admitir a sua penhora para saldar uma dívida em dinheiro.
A criminalização dos maus-tratos aos animais já é uma medida completamente
incipiente por diversas razões, como a pena quase que convidativa para essa
prática amoral e criminosa, e o direito ainda contribui negativamente admitin-
do a penhora dos animais. Trata-se de uma lamentável realidade, porque o
18 Disponível em:
consciencia-em-animais-humanos-e-nao-humanos>. Acesso em: 14 jan. 2016.
19 “As condições sob as quais a criação intensiva de animais ocorre são muitas vezes cruéis e
bárbaras. Elas signicam uma vida inteira de miséria, privação, angústia ou tédio para cada animal.
Essa criação intensiva se desenvolveu devido à forte demanda por carne, leite e ovos. No sistema
intensivo, controlamos o que os animais comem, onde e como vivem, sua reprodução e reprimimos
seu comportamento natural. Isso equivale à situação de escravidão, já que nenhum animal se en-
tregaria voluntariamente a tais condições” (NACONECY, 2014, p. 204).
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legislador do NCPC tem ciência de que penhora é um ato de apreensão para,
posteriormente, o bem penhorado ser expropriado. Animais têm vida, mas isso
foi ignorado no NCPC.
5. Conclusões
É atribuída a Mahatma Gandhi a célebre frase que arma que a grandeza
de uma nação pode ser julgada pelo modo como seus animais são tratados. Em
se admitindo que isso faz sentido, verica-se o quão pequeno é o Brasil. Não
só o Brasil, mas infelizmente o Brasil insere-se no contexto dos países que não
conferem ao animal o tratamento que eles merecem. A lei penal é extremamen-
te branda, sendo a pena tão ínma que, na prática, precica-se o assassinato
de animais, porque, se alguém for eventualmente condenado, resolve-se com
“cestas básicas” a perda da vida animal. Além disso, o NCPC – lei processual
tão avançada em diversos assuntos – comete o pecado ético de considerar o
animal um simples e reles bem passível de penhora, ignorando completamente
a consideração dos interesses dos animais. Que o caso Joey sirva de exemplo
e estimule o legislador, na próxima reforma do CPC, a corrigir esse absurdo
equívoco, antes que essa escolha equivocada e afrontosa à ética cause a perda
da vida e/ou o sofrimento de um único animal após ele ser penhorado como se
fosse um ser inanimado.
Referências
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lo Blanch, 2004. Tomo I.
BEVILAQUA, Clovis. Theoria geral do direito civil. Campinas: Red Livros, 1999.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2014. v. 2.
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DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1: Intro-
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GUISASOLA, Graciela González. ¿Derechos de los animales? La vida come a la vida. Saarbrücken:
Editorial Académica Española, 2012.
LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre:
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MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral, bens e fatos jurídicos. Campinas:
Bookseller, 2000. Tomo 2.
NACONECY, Carlos. Ética e animais: um guia de argumentação losóca. Porto Alegre: Edipucrs,
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SINGER, Peter. Liberación animal: el clásico denitivo del movimiento animalista. Madrid: Taurus
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O caso Joey e a possibilidade de penhora de animais domésticos no novo CPC

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