Caso 8. Serra Negra

AutorAntonio Carlos da Carvalho Pinto
Ocupação do AutorProfessor de Direito Processual Penal. 'Ex' Coordenador de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP.
Páginas111-124

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Cartinha da Viúva

O Prefeito e o Presidente da Câmara da Estância de Serra Negra, ambos, à época, estavam obstinados com a ideia da reeleição e, para o suprimento dos naturais "custos eleitorais", necessitavam de verba em quantia que nenhum deles dispunha.

Sem crédito bancário e garantias patrimoniais, o Vereador foi ao encontro do fazendeiro Romeu, a quem declinou a pretensão eleitoral, bem como premência na obtenção de um empréstimo para o custeio da campanha, que já "estava nas ruas".

Até então amigo de Romeu e, como se tratava de interesse do próprio Prefeito, o fazendeiro assentiu e emprestou, em dinheiro vivo, uma quantia que, sem exagero, correspondia ao valor de dois apartamentos, mais ou menos, R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais).

Sacado o dinheiro e efetivado o empréstimo (mútuo), o Vereador subscreveu uma nota promissória (documento de

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comprovação e promessa de pagamento) com data de vencimento, naturalmente, posterior às eleições municipais.

Evidente que o empréstimo foi realizado com acréscimo de juros acima daqueles praticados pela rede bancária, contudo, essa compensação, o acréscimo, não tisnava a agiotagem.

Os tomadores do mútuo foram reeleitos, empossados, cada qual assumiu seu trabalho "com e para o povo".

O tempo foi passando, as administrações foram cumprindo as promessas eleitorais, o prazo da promissória venceu, o Vereador não procurou mais o fazendeiro-emprestador, o prestígio dos políticos aumentava na cidade e na região e, então, Romeu passou a procurar o "amigo" Vereador, sempre no prédio da própria Câmara Municipal, até porque Sua Excelência "nunca estava" e não gostava de ser procurado na mansão que residia.

Romeu já era muito conhecido e respeitado em Serra Negra e sua presença acabou por se tornar "carne de vaca" junto aos funcionários municipais, tal e tantas vezes que frequentou, semanalmente, o gabinete da presidência da Câmara dos Vereadores.

Sucedeu que, nesse entretempo, a mulher de Romeu foi acometida de câncer, e o tratamento teve de ser efetivado na Capital.

O casal não se escudava em plano de saúde, de sorte que a assistência médica e a hospitalização se deram como "paciente particular", sabidamente, com despesas capazes

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de arruinar todo e qualquer cidadão, até mesmo fazendeiro, em pouco tempo.

A procura pelo vereador-devedor era diária e Romeu assinalava e ressaltava a "nova situação" de sua mulher, doente e hospitalizada, em São Paulo.

Nada sensibilizava o Vereador, devedor formal do empréstimo que, mesmo sem negar a dívida, semanal e sucessivamente, pedia "mais uma semana", sob alegação de estar prestes a obter um empréstimo no "Banco do Estado", com aval do Prefeito, também beneficiário do mútuo, mas que não havia assinado a nota promissória.

Nessa verdadeira via crucis, a cada renovação da esperança, como natural, Romeu levava consigo o documento comprobatório do empréstimo, a promissória, para ser devolvida ao Vereador, como prova do pagamento.

Numa sexta-feira, por volta de meio dia, enfim, o vereador atendeu o fazendeiro-credor no gabinete da presidência e, sorridente, depois de dizer que iria pagar após o almoço, logo convidou Romeu para irem até um conhecido restaurante local, situado próximo da praça central da cidade.

Na calçada, defronte da Câmara Municipal, em plena praça pública, o Vereador, com serenidade, calma e premeditação, fazendo "jeito de dúvida", perguntou:

- Você trouxe a promissória? Deixa-me ver!

Romeu não titubeou e passou a prova do empréstimo, da dívida e do crédito, para as mãos do Vereador que, simplesmente, picou o documento.

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Nesse instante, sob tal situação, Romeu sacou a arma, disparou um tiro fatal, e, desnorteado, saiu correndo, foi para sua fazenda, acabou preso e autuado em flagrante delito.

Em face de desespero, Romeu não recolheu os pedaços da promissória.

Seja em conta do local, da hora e dos envolvidos, transpira evidente que, em segundos, formou-se aglomerado de pessoas, funcionários municipais, pedestres curiosos, turistas etc.

Natural que esse crime abalasse a linda, pacata e acolhe-dora Estância de Serra Negra, cidade natal da colega Maria Luiza, mulher do meu amigo, criminalista e desembargador...

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