Caso 46. O 'crime' da síndica

AutorAntonio Carlos da Carvalho Pinto
Ocupação do AutorProfessor de Direito Processual Penal. 'Ex' Coordenador de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP.
Páginas401-424

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Hilda era uma mulher de meia idade, escritora, nortista, alta, magra, loira, muito bem falante, postura serena e sobremodo firme, além de ser advogada, escritora, residia e exercia o cargo de síndica do Edifício "Nações Unidas", um dos maiores, melhores, afamados e valiosos condomínios da Capital paulista, prédio imponente, comercial e residencial, situado no cruzamento das Avenidas Brigadeiro Luis Antonio e Paulista.

Como sói acontecer em situação como esta, a função de Síndica do prédio abarcava enorme "autoridade" e grande movimentação financeira, mercê de alentada arrecadação condominial.

Como curial, a administração não escondia interesses econômicos e profissionais, derivados da intermediação de vendas, locações e ações judiciais, decorrentes de cobrança, de inadimplentes, proprietários, locatários devedores de alugueres, etc.

Mais que tanto, o "esquema", como invariavelmente acontece, angaria variadas "comissões" de locações, inter-

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mediações de vendas, além de contratações atinentes à própria conservação do prédio, pinturas, elevadores, funcionários e tudo mais que esse tipo de administração condominial enseja.

Em conta de tal atividade e para o fim de ajuizamento de um cem número de ações cíveis, de interesse do condomínio, a síndica havia contratado o advogado Amilcare Carletti, não por acaso, seu amigo e renomado escritor.

Com tal experiência administrativa e bem sucedidos financeiramente, síndica e advogado montaram uma grande pousada na cidade de Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo, em local privilegiado, com inúmeros chalés, todos guarnecidos com banheiros individuais, churrasqueiras, frigobar, tanques, etc.

De São Paulo para Caraguá, seja pela Rodovia Presidente Dutra, seja pela Ayrton Sena/Carvalho Pinto, passando por São José dos Campos, deriva-se para a Rodovia dos Tamoios.

Essa rodovia passa ao lado da pequena cidade de Paraibuna que, de longe, exibe a colina onde estão depositados os mortos daquela comuna.

Chegou a época de eleição para o almejado cargo de novo síndico.

Estabeleceu-se acendrada disputa entre a síndica e um candidato, conselheiro do prédio, casado com uma professora, que lecionava diariamente no período da tarde, sendo que esse casal tinha dois filhos adolescentes.

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O negócio do candidato a síndico era intermediar a venda e compra de joias.

Relevante destacar que o mais aguerrido "cabo eleitoral" do oponente "candidato-joalheiro" era exatamente outro condômino, igualmente italiano, chamado Biaggio Barelli, ou Barilli, não me recordo.

Semanas antes da eleição para o novo síndico, eis que, em uma estrada vicinal próxima de Paraibuna, logo pela manhã, um jovem advogado, militante naquela comarca, ao passar, viu um corpo caído próximo do acostamento.

Enxergou três pessoas, uma delas, segundo depoimento prestado à polícia, era loira, alta, magra e que usava um vestido "tubinho", traje da moda à época do fato.

Esse advogado era a única testemunha visual, pos factum, sendo certo que, segundo noticiou, embora houvesse visualizado o cadáver e os possíveis "executores", por medo e/ou receio, não parou e não desceu do seu automóvel.

Avisada por essa única testemunha, a polícia foi ao local, oportunidade que a perícia técnica, de pronto, constatou cuidar-se de cadáver do sexo masculino, adulto, bem trajado, exibindo perfurações próprias de disparos de arma de fogo em ambos os joelhos e, bem ainda, literal extração dos órgãos genitais.

O achado obteve enorme repercussão em Paraibuna, extrapolando na imprensa, em toda região, com especial destaque nos noticiários das redes regionais de televisão.

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Identificada a vítima, não demorou que a investigação chegasse ao Conjunto Nacional, com especial atenção "nas eleições", de onde adveio versão no sentido de que, naquela semana, a vítima-candidato havia comentado no prédio que iria até a pousada da síndica, em Caraguatatuba, para, com pretexto de lhe vender algumas joias, tentar convencê-la a não disputar a eleição que se avizinhava.

Na investigação laborada junto aos condôminos, logo se apresentou o italiano Biaggio, informando dentre fatos vários ter visto a síndica deixar o prédio, de carro, em companhia de seu marido e do italiano Carletti, naquela mesma manhã do crime e do achado do corpo.

Outros condôminos ressaltaram o acirramento da disputa eleitoral pelo cargo de síndico, razão bastante para a polícia dar crédito à notícia segundo a qual, em verdade, muito ao revés de o candidato adversário haver pretendido ir à pousada para vender joias e tentar cooptar a síndica, ao contrário, Hilda é que havia atraído o joalheiro à Caraguatatuba e, juntamente com Carletti, engendrado uma emboscada para assassiná-lo impiedosamente no meio do caminho.

Esse, o resumo da investigação policial.

A síndica foi indiciada e, inquirida no bojo do inquérito, negou a autoria, afirmando, tanto ela quanto Carletti, também ouvido, que realmente no dia e hora em apuração ambos estavam na pousada e dela não saíram.

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Disseram que tomaram conhecimento do ocorrido, um ou dois dias depois do acontecimento, pela televisão regional.

Com essa prova policial, além de laudos referentes ao cadáver e ao local do crime, o inquérito foi remetido ao Fórum de Paraibuna, onde se seguiu denúncia contra a síndica por homicídio quadruplamente qualificado, ou seja, motivo fútil, emboscada, meio cruel e recurso que impediu a defesa da vítima, que se achava só e desarmada (artigo 121, parágrafo segundo, incisos I, II, III e IV, do Código Penal).

O promotor arrolou vários depoimentos, de pouca relevância e, em especial, o italiano Biaggio.

A defesa, por sua vez, requereu vários depoimentos, também circunstanciais e, em especial, o do advogado, escritor e também italiano Carletti.

O advogado, testemunha visual do corpo e da loira, vestida com o "tubinho", não foi ouvido em juízo, por haver falecido em acidente automobilístico.

A instrução judicial fluiu em tempo razoável, a síndica-ré foi interrogada, negou a autoria do crime, seguiu-se a prova testemunhal e, em alegações finais, o Ministério Público reiterou os termos da denúncia, sob alegação de homicídio qualificado, postulando por decisão de pronúncia e julgamento popular pelo Tribunal do Júri.

A defesa suscitou a absoluta ausência de prova de auto-ria, com requerimento de impronúncia e consequente arquivamento do processo.

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O juiz pronunciou e mandou a ré para julgamento popular.

Pedido de desaforamento, indeferido, por v. acórdão do Tribunal de Justiça, relatado pelo meu amigo, desembargador José Renato Nalini (artigo 427, do CPP).

A promotoria arrolou para depor em plenário o italiano

Biaggio e a defesa o italiano Carletti.

Marcada a data do julgamento, literalmente preocupado com a causa, sua repercussão e principalmente com a circunstância de o promotor residir na cidade e, portanto, conhecer bem os cidadãos, antevi natural e flagrante desvantagem em face do acusador, pois que, enquanto defensor, eu era totalmente desconhecido na cidade.

Como cediço, transpirava indiscutível a natural reverência da comunidade à autoridade pública, de onde derivava soberba vantagem acusatória, dado que o promotor detinha, como em regra detém, curial presunção de veracidade quanto as suas acusações.

Nesse clima, um mês antes da data marcada para o júri, eis que veio a público, na Associação dos Criadores de Cavalos da Raça Mangalarga Paulista, a realização de uma exposição de animais, exatamente na cidade de Paraibuna.

O "Pulo do Cavalo":

Sócio e habituado expor animais, inscrevi para concorrer ao título de "Campeão Potro" um jovem macho de

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minha criação, lindíssimo, registrado com nome de "Nexus...

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