Caso 13. Raul Careca

AutorAntonio Carlos da Carvalho Pinto
Ocupação do AutorProfessor de Direito Processual Penal. 'Ex' Coordenador de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP.
Páginas147-165

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Outra vez, as pedras se encontraram!

Ainda na faculdade, em Campinas, atuei como escrevente à disposição do promotor Rubens Libertini, honesto, detentor de soberba cultura, muito educado, mas que tinha um toque de perfeição em suas peças denunciatórias, de tal modo que ele manuscrevia as denúncias e eu as datilografava.

Se e quando eu cometesse algum erro de digitação, uma única letra, o chefe simplesmente rasgava a folha, determinando imediato refazimento, ainda que estivesse no final do expediente, independentemente que eu, por isso, perdesse a primeira aula na PUC, implicação tudo por tudo excessiva e que acarretava "anotação de falta", o que me deixava literal-mente, chateado, "p... da vida"!

Inobstante, guardo ótima recordação do "ex" Superior.

Já em São Paulo e com certo nome profissional, fui acionado pela mulher do delegado de polícia, Dr. Raul, que havia conhecido no DENARC, noticiando que o marido havia praticado um homicídio, estava preso, adiantando que

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o fato se dera próximo de sua residência e que a vítima era soldado da Polícia do Exército.

Isto, em plena Ditadura Militar!

Correu notícia e o caso explodiu!

Síntese da cena:

Num sábado à tarde, Raul voltava para casa, depois de presidir um flagrante, quando, na sua rua, um caminhão coletava lixo, razão de natural congestionamento.

Nervoso, o delegado colocou uma sirene, daquelas imantadas, no capô de seu carro particular, insistindo passagem.

O lixeiro prosseguia seu trabalho, de porta em porta, até que, já descontrolado, Raul desceu para "tirar satisfação" com o motorista, momento em que, em meio à discussão, um grupo de jovens que por ali passavam, sendo um deles a vítima, tomou as dores do caminhoneiro.

Nascida acalorada troca de insultos, Raul declinou sua condição de autoridade, ouvindo do soldado que "cagava", até porque também era polícia, e do Exército.

Segundo a versão do réu, nesse momento o delegado se achava em meio a uma roda de jovens, ocasião em que, temeroso, sacou sua arma.

Raul era mesmo careca, magrinho e de estatura bem baixa e, em meio à troca de impropérios, segundo dizia, o soldado teria feito gesto de tomar-lhe o revólver, momento em que houve o disparo, em plena via pública, à luz do dia.

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Formado o alvoroço, chamada a Polícia Militar, foram todos para o distrito policial.

Além do grupo de jovens envolvidos na ocorrência pública, os fatos foram presenciados por um coronel do Exército, da ativa, que, naquela hora e data, estava visitando uma filha, residente no terceiro andar do prédio fronteiriço ao local dos fatos.

O coronel compareceu ao distrito, foi ouvido no auto de prisão em flagrante e refutou totalmente a versão defensiva, segundo a qual "o tiro fora disparado em razão da ameaça da vítima de tomar a arma".

Foi um depoimento visual e terrível.

Era natural que o coronel quisesse a "cabeça" do delegado que assassinara um policial da sua corporação.

Bem pago, aceitei a causa.

Quando da colheita judicial da prova testemunhal acusatória, antes da inquirição das testemunhas de acusação, vislumbrei, sentado no corredor, o promotor Libertini, meu "ex-chefe".

Fui cumprimentá-lo, quando soube que ele era tio da vítima, momento em que, como parente que adorava o sobrinho, o Promotor de Justiça passou a "dar uma dura", insistindo no sentido de me convencer a não defender o delegado-assassino, "marcado" com o sinete do DOI-CODI, organização paramilitar que perseguiu e matou inúmeros inocentes, cujos crimes defluíam, apenas, de convicção ideológica.

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Enquanto aguardava a apresentação do réu preso, que demorou hora e meia, lembrei o tio-promotor que a "convicção" expressada contra a referida matança ideológica era e continua a ser a mesma convicção por mim professada.

Relembrei-o, convocando sua memória, de fatos que ele, o tio-promotor, tinha pleno conhecimento, tais como:

Ao tempo da faculdade, em minha casa, com colegas universitários, havíamos fundado um partido político estudantil Contrário à Ditadura, denominado MEU - Movimento de Evolução Universitária, movimento que reuniu não só universitários da Faculdade de Direito da PUCCamp, mas também da Faculdade de Filosofia, e juntos, "guerreávamos" o famigerado Decreto nº 477, que extinguiu os Centros acadêmicos e deu ensejo ao nascimento dos Diretórios acadêmicos.

Liderei passeatas contra o regime militar, uma delas, em protesto pelo assassinato de um estudante no Rio de Janeiro.

Marchamos sob o refrão:

"Mais pão, menos canhão", "Abaixo a ditadura, abaixo o Mec-Usaid"! Acabei preso e, depois, intimado, tive de comparecer no "DEOPS", na Capital, cujo titular, bem me lembro, Delegado Cid Guimarães Leme, atendia pelo apelido de "Cid Cavalão".

Passei um dia, talvez o mais enfadonho da minha vida, sob escolta de um cadete, na Escola Preparatória do Exército, tudo para, no final da tarde, ser "dispensado", após responder, informalmente, que "eu não era comunista", assim

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como jamais guarneci meu lar, com foto de estranho, muito menos, do guerrilheiro "Guevara", como constava da "denúncia" que motivou a condução.

Relembrei ao tio-promotor o fato público e notório, de haver sido Secretário do "MDB" (Movimento Democrático Brasileiro), hoje "PMDB", ao tempo de Orestes Quércia, André Franco Motoro e Ulisses Guimarães, lembrado como "Doutor Constituição".

O "MDB" era oposição de verdade, bem diferente do atual "PMDB", esta, agremiação muito semelhante ao "marisco", que, para sobreviver, agarra-se na "rocha", firme e dura chamada Poder.

A desfiliação partidária:

Desde quando me dei conta acerca do "carinho" como os políticos "lidavam com a coisa pública", protocolei...

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