Casamento e concubinato: um estudo crítico

AutorMohamed A. S. Anção Sobrinho/Rosângela Mara Sartori Borges
CargoDocente do Curso de Direito da Universidade Norte do Paraná. Endereço para correspondência: R: Avestruz, 17. 86.700. Arapongas, Paraná, Brasil/Mestranda em Ciência Jurídica pela FUNDINOPI-PR. Docente do Curso de Direito da Universidade Norte do Paraná
Páginas131-143

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Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil trouxe profundas modificações no Direito de Família, de forma que se pode estabelecer dois períodos distintos para o estudo desse ramo do direito: anterior à promulgação e posterior a ela.

Embora essas modificações tenham sido estampadas pela Carta Maior, não resta dúvida de que foram produto de um lento e gradativo processo histórico.

Com a dicção dos artigos 226 e 227 (CF), consagram-se os princípios da absoluta igualdade entre os cônjuges e da pluralidade de entidades familiares, rompendo, de forma definitiva, a estrutura da família patriarcal. Os filhos, provenientes ou não do casamento, têm idênticos direitos. Com todas estas modificações, os estudiosos e aplicadores do direito se viram obrigados a uma releitura de diversos institutos do Direito de Família, especialmente em relação ao casamento.

Breve Histórico

A família descrita pelo legislador do Código Civil pouco tem em comum com a família descrita pela CF. Aquela tinha como fonte exclusiva de sua constituição o casamento civil, em que o marido e o pai tinham um poder praticamente ilimitado sobre a esposa e filhos, e a união de pessoas livres era inaceitável.

Todo o direito de família tradicional girava em torno do casamento e da filiação, situação que, ao longo do tempo, foi tomando um outro formato, com modificação de valores e, obviamente,

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transformando, lenta e gradativamente, a sociedade. Essa tendência reflete-se no campo do Direito de Família, alterando conceitos e princípios.

Para melhor entender a família moderna, seja na sua organização, função, composição, administração ou no comportamento de seus membros, a socióloga italiana, Laura Balbo, apresenta a sua evolução em três estágios da sociedade enfocados sob o aspecto do desenvolvimento económico: fase pré-industrial, fase da revolução industrial e a fase do capitalismo (apud Gomes, 1999, p. 17-18).

Na primeira fase, a família produzia praticamente tudo o que consumia. A casa era o centro da produção doméstica, e todos os membros do grupo exerciam uma função. Essas funções produtivas é que determinavam a condição social e a execução de certas tarefas institucionais como a proteção, a assistência, a educação e o aprendizado da prole.

Na fase seguinte, da revolução industrial, a produção doméstica é substituída pela produção fabril: a mulher e os menores começam a trabalhar nas fábricas, modificando seu papel no seio familiar.

Fator fundamental responsável pelas transformações no Direito de Família foi, sem dúvida, a emancipação económica da mulher. Enquanto ela estava na total dependência económica do homem, subordinava-se a ele; porém, ao deixar o trabalho exclusivamente doméstico para assumir um trabalho fora do lar, passa a ter seu próprio ganho, conquistando condições de manter-se e, em consequência, conquista certa autonomia.

A participação da mulher na atividade produtiva acarretou profundas modificações na vida familiar. Diante de tal fato, progride a ideia de se pôr fim à injusta condição de inferioridade da mulher, seja no convívio social, seja nas legislações.

Na fase do capitalismo, a organização da família tem por característica a ampliação das tarefas ligadas à satisfação das necessidades do próprio grupo (alimentares, sanitárias, higiénicas, educativas). A família tem como função produzir para assegurar o consumo.

A característica do consumo na função familiar de hoje faz com que os papéis dentro da família sejam alterados, pois para a satisfação das inúmeras necessidades, todos devem assumir sua parcela de deveres, não só domésticos, mas também no âmbito profissional.

Os reflexos dessas mudanças ocorridas entre os membros da organização familiar, no seu relacionamento, na sua administração, no regime de bens, na constante interferência do Estado no seu funcionamento, certificam que a família de hoje é muito diferente daquela que os Códigos dos séculos XIX e XX estamparam.

Novas Tendências

Os tradicionalistas mais ferrenhos entendem que a família contemporânea passa por uma crise, especialmente nos países desenvolvidos. Outros se espantam com a nova tecnologia da natalidade, os progressos da biologia, o sistema de "pais profissionais", o casamento de experiência, o casamento em série, a união estável e tantas outras modificações que traduzem o novo modelo familiar.

Os contemporâneos alegam que a família passa por verdadeira reestruturação de bases e que essa transformação nos valores, nos objetivos e na configuração constitui o seu aperfeiçoamento.

Carbonier, citado por Eduardo de Oliveira Leite, indica os seis rumos da transformação da família moderna: estatização, retração, proletarização, democratização, desencarnação e a dessacralização. (Leite, 2000, p. 17-18).

A estatização se manifesta na crescente ingerência do Estado nas relações familiares, substituindo a família em diversas funções, tais como, educação, alimentação, saúde e, ainda, controlando-a no exercício das funções conservadas.

A retração é observada na substituição da família patriarcal pela nuclear, ou seja, pai, mãe e filhos menores.

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A proletarização é marcada pela perda da característica plutocrática (domínio do dinheiro) da família. As relações familiares são fixadas em direitos e obrigações incidentes em salários.

A democratização transforma a sociedade familiar em sociedade igualitária, substituindo a hierarquia pelo companheirismo. Há um duplo movimento de emancipação: o da mulher e o do filho.

A desencarnação caracteriza-se pela substituição do elemento carnal ou biológico pelo elemento psicológico ou afetivo. Há um entendimento de que na formação do homem é mais importante a educação do que a hereditariedade.

Finalmente, a dessacralização manifesta-se pelo desaparecimento do elemento sagrado do casamento, que pode ser rompido com facilidade, nos favores legais e jurisprudenciais ao concubinato, bem como na indistinção entre filhos legítimos e ilegítimos.

Esses seis rumos apontados podem ser observados nitidamente na Constituição Federal, nos dois já citados artigos: 226 e 227.0 parágrafo 5o do art. 226 proclama a completa igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, os parágrafos 3o e 4o reconhecem tanto a família originada através da união estável, como a família monoparental (formada por qualquer dos pais e seus descendentes), e o parágrafo 6o do art. 227 define a paridade de direitos entre filhos de qualquer origem.

Hoje, ao se estudar o Direito de Família há que se tomar por base os referidos artigos constitucionais, especialmente no que se refere aos novos modelos familiares reconhecidos.

A Lei Maior afirma no art. 226, "caput", que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado e, em seguida, no § 3o esclarece que para efeito da proteção do Estado a união estável entre o homem e a mulher é reconhecida como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Essa amplitude dada pela Constituição Federal ao conceito de família foi resultado de árdua luta entre os conservadores que privilegiavam a família legítima (originada pelo casamento) e a pressão da união livre que era traduzida pela realidade social, económica e jurídica não podendo mais ser desprezada pela lei.

Com o advento desse artigo constitucional ocorre o reconhecimento estatal da família originada pela união estável. Com isso, surgem inúmeras questões sobre a equiparação entre a união estável e o casamento, sobre os efeitos jurídicos dos dois institutos, bem como a necessidade de legislação própria elaborada pelo legislador ordinário (tendo em vista a não auto-aplicabilidade da referida norma constitucional).

Embora o reconhecimento estatal da união estável, como fonte geradora da família, tenha ocorrido somente com advento da Constituição de 1988, não se trata de fato novo na sociedade brasileira; a origem remonta ao direito romano.

O concubinato era admitido pelas Leis Júlia e Papia Poppaea, sendo considerado casamento de segunda classe, união inferior, semimatrimônio, contraído sem formalidades. Se distinguia dasjustae nuptiae pela imperfeita comunhão de vida, bem como pelos efeitos que dele surgiam. Faltava-lhe o affecto maritalis e a finalidade social e familiar inerente ao matrimónio, porém, era de natureza lícita nada tendo de reprovável.

O concubinato foi vigorosamente combatido pelo cristianismo, especialmente por Santo Agostinho e por Santo Ambrósio. Vários foram os Concílios que reprovavam o concubinato, como, por exemplo, o de Toledo (ano 400), Basileia (ano 431), Latrão (ano 1516) e Trento que o condenou (1999, p. 19).

O Código Canónico considera o concubinato, ainda hoje, nocivo à sociedade, estabelecendo várias sanções para os concubinos. É o que estabelecem os cânones 1093 e 1395 § Io, respectivamente: "O impedimento de honestidade pública origina-se de matrimónio inválido, depois de instaurada a vida em comum, ou de concubinato notório ou público; e torna nulo o matrimónio no primeiro grau da linha reta entre o homem e a mulher e as consanguíneas da mulher, e vice-versa".

O clérigo concubinário, exceto o caso mencionado no cân. 1394, e o clérigo que persiste com escândalo em outro pecado externo contra o sexto mandamento do Decálogo, sejam punidos com

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suspensão. Se persiste o delito depois de advertências, podem-se acrescentar gradativamente outras penas, até a demissão do estado clerical.

O Código Civil Brasileiro também não reconhece o concubinato e, nas raras ocasiões que o menciona, fá-lo no sentido de proteger a família originada do casamento. É o que ensina Silvio Rodrigues (2000, p. 250), exemplificando os artigos 248, IV, 1177 e 1719, III do referido código.

Posteriormente à promulgação do Código Civil, foram...

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