Cartas Roga Rogatór tórias no Direit eito Interamericano icano e no Mercosul: algumas observações

AutorTarcísio Corrêa de Brito
Páginas134 - 166

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Palavras-Chave

Cartas Rogatórias; Direito Interamericano; Direito do Mercosul

1 Introdução

No início do século XXI, a interdependência crescente entre os Estados tem suplantado os níveis político e estratégico para se definir como um processo constante de racionalização das trocas econômicas enquanto fator de aprimoramento das relações interestatais. De um lado, dentro de um contexto geral de regionalização e de integração internacionais, assistese tanto a uma erosão de estruturas, com a subseqüente transnacionalizaçãoPage 135da ação econômica, política, social e cultural estatal, quanto a uma transmutação do mito da soberania absoluta em fenômeno da administração de interdependências. De outro, a passagem de um “racionalismo construtivista” a um “racionalismo evolucionista” (VAN HOUTTE, 2000, p.216) na sociedade-mundo atual inspira a necessidade de “um engajamento na obediência a princípios gerais e aprovados pela opinião geral, que pode impor restrições à vontade particular de toda autoridade e mesmo da maioria” (ARNAUD, 1999, p.35).

No que diz respeito à cooperação internacional1 , é a própria Carta constitutiva da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1945, que exorta os Estados a cooperarem na tentativa de resolver os problemas internacionais de ordem econômica, social, intelectual, humanitária e, mais recentemente, «institucional»2 . O objetivo é de (I) assegurar o desenvolvimento de relações pacíficas e amistosas estáveis, bem como, de (II) encorajar o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, dentro dos princípios da manutenção da paz e segurança internacionais e da igualdade soberana de direito entre os povos.

Nessa perspectiva, uma harmonização das regras de direito substantivo em escala global pode romper com os obstáculos jurídicos resultantes da diversidade entre as regras jurídicas nacionais (VAN HOUTTE, 2000, p.209), inclusive, entre os sistemas de common law e de direito civil. Esse desafio tornase possível apenas a partir da construção de uma (nova) cultura jurídica comum de integração, possibilitando o estabelecimento de mecanismos adequados de coordenação entre os Estados.

Quanto à harmonização das regras de direito processual, caminhase para a criação de um espaço judiciário mundial, primeiramente por meio da formalização de uma justiça penal internacional (tribunais penais ad hoc, tribunais especiais e Corte Penal Internacional) e, em segundo lugar, pela “privatização”3, que se torna gradativamente acentuada, das justiças civil e comercial, pelo estabelecimento de tribunais arbitrais e pela adoção de novos métodos extrajudiciais de solução de controvérsias (ADR’s). Há de ser ressaltado, ainda, o processo de uniformização das normas de direito internacional privado (DIP) que se desenvolve em torno de determinadas organizações internacionais, precipuamente no domínio do direito processual internacional, com vistas a instrumentalizar a prática de atos de procedimento quando presentes elementos de extraneidade.

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Certamente, as relações jurídicas entre os Estados formalizamse por intermédio da conclusão de atos internacionais4 que constituem uma dimensão essencial da política internacional, visto que as normas (deveres e procedimentos) definem a fronteira entre o que é legítimo e o que é ilícito (SERNACLENS, 2002, p.8) em um contexto econômico, geopolítico, social e histórico precisos e próprios à época em que foram convencionados. Uma pesquisa documentária pode, pois, assinalar os pontos de convergência e as fraturas existentes no momento de sua (re)contextualização, fazendo ressurgir os interesses estatais subjacentes a esses engajamentos.

De maneira geral, as “forces profondes”5 que se impuseram no decorrer dos séculos XIX, XX e que continuam seu caminho no século XXI, introduziram novos temas na agenda global, tais como, a cooperação judiciária (cartas rogatórias; homologação de sentenças estrangeiras e laudos arbitrais), a corrupção, o narcotráfico, a lavagem de dinheiro e o terrorismo, dentre outros. Esse contexto de mudanças obstaculiza o estabelecimento da democracia representativa/participativa no Estado de direito, o desenvolvimento sustentado e o respeito efetivo aos direitos humanos. Via de conseqüência, acaba por mobilizar tanto os Estados quanto outros (novos) atores internacionais (organizações internacionais, organizações não-governamentais, empresas transnacionais, sociedade civil organizada e indivíduos) a efetivarem a cooperação internacional (modelo grociano-kantiano), com o fim de suplantar o Realismo clássico de estilo maquiavélico-hobbesiano, esse baseado nas noções de “puissance/pouvoir” e de anarquia internacional.

No contexto do direito (internacional privado) interamericano, a tentativa de codificação/harmonização de suas normas (SAMTLEBEN, 1998, p.25) atende a esse anseio. Das primeiras Conferências Panamericanas do século XIX até a adoção do sistema de conferências especializadas, que foram introduzidas pela Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1971, e, em virtude do consenso diplomático à época, apenas a codificação parcial e gradativa das normas de DIP foi possível ao invés de uma codificação de caráter global que ocorrerá pela conclusão do Código de Bustamante em 1928. Por outro lado, com a criação do Mercado Comum do Sul (1991), e a partir da entrada em vigor do Protocolo de cooperação e assistência jurisdicional em matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa (Protocolo de las Leñas) dePage 1371992 e do Protocolo sobre medidas cautelares (anexo ao Protocolo de Ouro Preto) de 1994, ambos integrantes do Tratado de Assunção de 1991, “a dinâmica da integração econômica [...] originou novas formas de cooperação jurídica”, principalmente em matéria de medidas cautelares (SAMTLEBEN,1998, p.44), apresentando novos desafios a esse processo.

Dessa maneira, procurando estabelecer um conceito geral e uma tipologia das cartas rogatórias, no contexto interno e das relações bilaterais interamericanas (Parte I), apresentaremos os aspectos gerais dessa codificação sobre o tema das rogatórias, a partir de 1975 (Parte II). Em seguida, analisaremos as particularidades quanto à adoção de normas similares no âmbito do Mercosul (Parte III), procurando identificar os pontos de convergência entre esses sistemas e sub-sistemas.

1 Das Cartas Rogatórias
1. 1 Dos aspectos conceituais e da tipologia

A comissão ou carta rogatória (“exhortos”, “commissions rogatoires”, “lettres rogatoires”, “letters rogatory”, “letter of request”, “rechtshilfeersuchen”) é o instrumento processual destinado ao cumprimento de atos ordinatórios, de mera tramitação (notificações, citações ou emprazamentos no exterior) ou instrutórios, para o recebimento e obtenção de provas e informações, quando presentes elementos de extraneidade. Tais cartas podem instrumentalizar três tipos de cooperação judiciária internacional: (I) a cooperação de mero trâmite, informação do direito estrangeiro e produção de prova6 ; (II) a cooperação cautelar internacional e, (III) o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras (ABIMORAD,1999, p.6).

A transmissão de cartas rogatórias por via diplomática/consular, por intermédio da autoridade central ou pelos próprios interessados para prática de atos de mero trâmite (I) engloba, dentre outros, notificações, citações, emprazamentos, recebimento e obtenção de provas e informações no exterior, realização de perícias, exames, vistorias, exibição de livros, e de todas as diligências que importam a decisão das causas. É a modalidade tradicional desse tipo de cooperação.

Exceção à regra geral de que as rogatórias não devem ser utilizadas para atos de execução coativa, a cooperação judiciária emPage 138matéria cautelar (II) foi formalizada tanto pelos acordos de cooperação em matéria penal, concluídos com a Colômbia e os Estados Unidos da América em 1997 e com o Peru em 1999, quanto entre os Estados partes do Mercosul, pelo Protocolo sobre medidas cautelares de 1994. O objetivo é possibilitar o trâmite e processamento urgentes de medida cautelar preparatória, incidental e das que garantam a execução de uma sentença, destinadas a impedir a irreparabilidade de um dano em relação às pessoas, bens e obrigações de dar, de fazer ou de não fazer, tanto em processos ordinários, de execução, especiais quanto extraordinários, de natureza civil, comercial, trabalhista e penal, nesse caso, quanto à reparação civil.

Já o reconhecimento e execução (homologação, no direito interno) de sentenças estrangeiras (III), do ponto de vista do ordenamento jurídico internacional, baseiase na Convenção interamericana sobre eficácia extraterritorial das sentenças e laudos arbitrais estrangeiros de 1979, nesse caso, instrumentalizado pelas cartas rogatórias passivas, e na Convenção da Haia7 sobre...

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