Cartas de conforto ou cartas de patrocínio no ordenamento brasileiro

AutorFlávio Queiroz Bezerra Cavalcanti
CargoProfessor da UFPE. Mestre e Doutor em Direito. Procurador do Estado de Pernambuco
Páginas176-210
FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE
ISSN: 1980-3087
Volume 86, número 2, jul./dez. 2014
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CARTAS DE CONFORTO OU CARTAS DE PATROCÍNIO NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO
*
FLÁVIO DE QUEIROZ BEZERRA CAVALCANTI 1
Ainda que não tenha encontrado no Brasil, pelo menos até agora, a mesma
intensidade de aplicação que goza em outros países, as chamadas Cartas de Patrocínio
são utilizadas para suportar negócios empresariais, com tendência de aumento da
frequência de seu uso em virtude da internacionalização das operações e da importação
de institutos de direito empresarial, sem que exista uma doutrina a examinar
suficientemente seus efeitos entre nós2. Justifica-se, dessa maneira, uma análise da
possibilidade de recepção desse fenômeno no ordenamento brasileiro, inclusive porque
nossa praxe não utiliza com frequência garantias atípicas, inexistindo farta construção
doutrinária e jurisprudencial a tranquilizar o uso. É importante deixar claro que o
presente se limitará a observar as Cartas de Patrocínio sob o ângulo das garantias,
alheando-se do que diz respeito a questões societárias3 ou de outros focos.
Uma explicação inicial e terminológica se faz necessária: a opção pela expressão
Cartas de Patrocínio para nomear o fenômeno. Tenderíamos, em prol da uniformização,
a manter a designação empregada com mais frequência em língua portuguesa, ou seja,
Carta de Conforto. Ocorre que no Brasil existem dois fenômenos tão ou mais frequentes
do que as Cartas de Patrocínio, nominados de carta de conforto. O primeiro deles é a
manifestação de auditores independentes da companhia sobre a consistência das
informações estampadas no prospecto de oferta pública. Também se denomina carta de
conforto o compromisso assumido por empresas de arcar com despesas processuais de
1 Professor da UFPE. Mestre e Doutor em Direito. Procurador do Estado de Pernambuco e Advogado
Militante.
2 Ressalve-se o alentado parecer do prof. Lu is G astão Paes de Barros Leães (Carta de conforto como
obrigação de garantia vinculante. In: Pareceres. São Paulo: Singular, 2002. v. 2).
3 Para este enfoque, por todos: JARDIN, L aurent. Un confort sous-estime dans la contractualisation des
groupes de Sociétes: La lettre de patronage. Bruxelas: Bruylant S.A; LG DJ, 2002. p. 148 e ss.
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seus executivos ou ex-executivos por processos movidos contra eles em decorrência das
atividades nelas exercidas. Assim, utilizar aqui a mesma denominação de outras
situações é contribuir para equívocos.
Por outro lado, a denominação com a qual foi positivada na França, ou seja,
carta de intenção (lettre dintention) também não se afigura perfeita, seja por também
levar a confusão com outros fenômenos - especificamente com os instrumentos
veiculados durante as negociações pré-contratuais-
4, seja porque repete a restrição ao
instrumento (carta) que não responde à totalidade dos continentes onde se expressa a
garantia, como, principalmente, por restringir seu conteúdo à parte das Cartas de
Patrocínio, mas não a totalidade delas, vez que, conforme veremos adiante, existem
Cartas que são declaratórias de uma situação de fato e não de uma intenção ou
obrigação futura. Na França, a restrição de conteúdo presente na denominação se
explica pela opção do legislador em restringir as Cartas de Intenção, enquanto espécie
positivada de garantia, aquelas que expressam a intenção de fazer ou de não fazer, o que
não tem razão de ser nas demais localidades5.
De toda forma, a denominação Cartas de Patrocínio é também bastante
utilizada6 e não leva desvantagem para outras designações do fenômeno, havendo
inclusive quem a prefira a outras denominações, inclusive a nominação Carta de
Conforto. As ressalvas que se pode fazer a uma expressão cabem para a outra, sendo
sempre difícil encontrar denominação que envolva tal como luva um fenômeno jurídico7.
Será aqui, portanto, utilizada a expressão Cartas de Patrocínio para designar o objeto de
nosso estudo.
4 Conforme lembram Laurent Aynes e Piere Crocq (Les Sûretés Les sûretés La publicité fonciere. 3. ed.
Paris: Defrénos Lextenso, 2008).
5 Article  La lettre dintention est lenga gement de faire ou de ne pas faire ayant pour objet le soutien
apporté á un débiteur dans lexécution de son obligation envers son créancier
6 Mesmo em Portugal, onde se consagra o uso de Cartas de Conforto, encontram-se as expressões Carta de
Patrocínio ou Declaração de Patrocínio o mesmo se dando na Espanha Na )tál ia Lettere di Patronage
ainda que em convívio com outras locuções, é a denominação predominante.
7 Assim adiantando a ressalva que faremos a Carta vez que defenderemos não ser da essência do
instituto esse suporte.
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Estrutura das Cartas de Patrocínio
O que denominamos Cartas de Patrocínio, ou seja, aquilo sobre o qual nos
debruçamos, é o fenômeno pelo qual alguém (patrocinador) formaliza e transmite para
outrem o conhecimento de uma situação de terceiro ou compromete-se a algo em
relação a esse terceiro (patrocinado) de maneira a trazer conforto ao receptor-credor
sobre seu crédito. Os mais variados conteúdos cabem nessas manifestações, desde a
afirmação de conhecimento de uma operação comercial entre o receptor e o
patrocinado; o compromisso de não alienar participações societárias detidas no
patrocinado; a afirmação de efetuar aumento de capital acaso necessário etc.
A descrição acima efetuada do fenômeno implica uma série de opções
merecedoras das explicações devidas, vez que com frequência a concepção adotada é
bem mais restritiva do que a aqui desenhada. O fundamento de tal assimetria é que não
incluímos na arquitetura aquilo que é acidental ou que apenas é o mais frequente, sem
necessariamente integrar o fenômeno.
Em primeiro lugar não entendemos que a patrocinadora necessariamente deve
ser sócia da patrocinada, nem, muito menos, sua controladora. Não nos parece que o
fenômeno mude quando a relação societária não está presente. Nada impede, por
exemplo, que uma grande parceira comercial expeça uma Carta de Patrocínio, por vezes
movida inclusive por interesses egoísticos, v.g., facilitar a aquisição de máquinas pela
patrocinada para aumentar a produção que ela, patrocinadora, precisa adquirir. Ou
apoiar a formação de empresa por ex-funcionário que lhe prestará serviços, e assim por
diante. É bem verdade que questões desse tipo podem trazer discussões outras, como
por exemplo, a legitimidade da patrocinadora para fornecer garantias em situações
específicas. Isso, todavia, pode igualmente ocorrer dentro de grupos societários,
mormente pela discussão em relação à proteção de minoritários da sociedade
patrocinadora, e também não afeta a textura das Cartas de Patrocínio. Reconhecemos,
todavia, que a situação mais comum se encontra nas relações sociais, com Cartas de
Patrocínio expedidas em favor de sociedades controladas, sem, porém, chegar isso a ser

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