Caracterização do assédio moral

AutorJorge Luiz de Oliveira da Silva
Ocupação do AutorMestre em Direito Público e Evolução Social (UNESA-2004)
Páginas33-55

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2. 1 - Aspectos identificadores

O assédio moral nas relações de trabalho e serviços é um fenômeno que vem ocorrendo com frequência, tanto na iniciativa privada quanto nas instituições públicas. Tal fenômeno não é recente e remonta das próprias origens da relação trabalhista. No entanto, em razão da nova realidade vivenciada no mundo contemporâneo e das proteções legais destinadas aos trabalhadores, aliadas à nefasta repercussão do assédio moral, esse processo vitimizador passa a ser revestido de uma importância sem precedentes. A revolução tecnológica que tomou conta do mercado de trabalho, aliada à globalização, determinou uma mudança substancial nas relações trabalhistas, impondo aos trabalhadores a necessidade de uma atualização constante e uma competitividade exacerbada. Se esta realidade traz pontos positivos, estimulando o desenvolvimento profissional e pessoal no trabalho; tem gerado, também, importantes impactos negativos na vida dos trabalhadores em geral e na própria organização laboral. Isto porque o estímulo desenfreado da competitividade acaba por provocar condutas inadequadas, objetivando o alcance de um lugar de destaque neste “jogo”. Neste contexto, o assédio moral, muito embora não seja o único fenômeno caracterizado, sem dúvidas, é aquele que desponta com maior constância e, em regra, determina as consequências mais desastrosas.

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Descartamos a separação dos conceitos de assédio moral e assédio psicológico, nos moldes propostos por Geneviève Koubi, indicando que, no primeiro, a desestabilização incidiria sobre as relações sociais, enquanto que, no segundo, o desequilíbrio gerado seria pessoal1. A expressão “assédio moral” exprime a ideia de perseguição à dignidade, em especial instrumentalizada por comportamentos incidentes sobre a mente da vítima. Desta forma, não conseguimos visualizar qualquer tipo de diferenciação relevante entre um conceito e outro. Ambos exprimem a mesma ideação, sendo de difícil compreensão conceber que um conjunto de comportamentos assediadores venha a desequilibrar a vítima pessoalmente, mas sem qualquer incidência sobre o contexto social por ela vivenciado. Portanto, entendemos que os conceitos de assédio moral e assédio psicológico representam o mesmo núcleo, inexistindo argumentos científicos, sociológicos ou filosóficos relevantes a sustentar de forma diversa.

Conforme já relatado, o assédio moral vem a ser a submissão do trabalhador a situações humilhantes, vexaminosas e constrangedoras, de maneira reiterada e prolongada, durante a jornada de trabalho ou mesmo fora dela, mas sempre em razão das funções exercidas pela vítima. Não significa que a conduta assediadora se relacione necessariamente com alusões ou indicações ao trabalho, pois geralmente o foco da violência é qualquer ponto da vítima que possa determinar uma desestabilização desta com o ambiente de trabalho, facilitando as condutas tendentes a desqualificá-la, não só como profissional, mas também como ser humano, atingindo os componentes de sua dignidade e degradando sua autoestima. Neste contexto, sustentamos que o assédio moral estará caracterizado ainda que não exista intenção, por parte do agente, em atingir a dignidade da vítima, sendo suficiente a prática do processo abusivo com potencial para tal.

Portanto, no assédio moral, é muito comum alusões negativas em relação aos dotes físicos da vítima ou ao seu modo de

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vestir, de falar, de comer ou de se comportar diante de deter-minados acontecimentos. Em pesquisas que realizamos junto a voluntários que se diziam vítimas de assédio moral2, chamaram à atenção os fatos que envolveram Luciana Souza3, estudante de Direito e funcionária do setor comercial de uma empresa multinacional de produtos de segurança. Logo que foi contratada começou a demonstrar extrema competência em suas funções, não tardando a fomentar novos projetos e campanhas e apresentá-los à Diretoria. Foi nesse momento que seus problemas começaram a surgir. Todas as suas sugestões eram sumariamente descartadas pela Diretora Administrativa, sempre com críticas veementes a respeito. Tempos depois suas ideias apareciam maquiadas, sendo atribuídas a outros colegas de trabalho. A simples presença de Luciana passou a incomodar sua Diretora Administrativa que, no entanto, nada podia fazer contra ela, pois sempre demonstrara competência e profissionalismo. Assim, a chefe começou a atingir o lado pessoal de Luciana, com alusões do tipo: “Nossa! Seu cabelo hoje está horroroso!” “Como você está engordando! Você tinha um corpo lindo e agora seus seios estão enormes!” “Sua pele está tão maltratada! Será que você não está grávida?”. O destino de Luciana não foi diferente daquele de milhares de trabalhadores vítimas do assédio moral: depressão, vontade de não estar mais no local de trabalho, crises de choro, dores no peito, falta de ar, cefaleias constantes, fome compulsiva, desmaios, dentre outros. No campo social Luciana acabou por se anular, retraindo-se cada vez mais, por achar-se incompetente e que o erro estaria nela mesma e não no assediador. Olha em sua volta e não percebe outras pessoas passando pelo seu problema; com isto, sente-se cada vez pior e entrega-se à depressão. Não tem coragem de pedir demissão, pois o mercado está difícil e precisa do emprego. Este é apenas o relato relacionado a uma só das inúmeras vítimas do assédio moral. Como podemos perceber, tal perversidade gera relevantes problemas à saúde física

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e mental do trabalhador, com repercussões, por evidente, nos campos social e patrimonial.4

No entanto, devemos ser cautelosos ao analisar a existência ou não de assédio moral em determinadas relações. A partir do trabalhado executado por Heinz Leymann, que tratou de mais de 1.300 casos de vítimas de assédio moral5, a Europa e os EUA passaram a tomar consciência dos efeitos causados pelo assédio moral. Mais recentemente, importantes pesquisas na área de saúde têm comprovado os efeitos danosos do assédio moral. Em especial, podemos referenciar as pesquisas realizadas pelo alemão Dieter Zapf; por Marie-France Hirigoyen (“La Harcèlement Moral” e “Malaise dans le travail”), francesa autora de duas importantes obras sobre o tema; Noa Davenport, autora juntamente com Ruth Distler e Gail Pursell da obra “Mobbing: Abuse in the American Workplace”; pelo psicólogo italiano Giuseppe Palma e por Margarida Barreto, brasileira, que em sua dissertação de mestrado em Psicologia Social, na PUC-SP, entrevistou cerca de 2.000 trabalhadores de 97 grandes indústrias paulistas, constatando que mais de 800 deles, de alguma maneira, tinham passado pela experiência do assédio moral. Na verdade, o assédio moral está em moda no mundo inteiro. Na América do Sul a conscientização acerca do problema já é uma realidade, tendo nos últimos anos avançado sobremaneira. Já nos países asiáticos, em razão de suas estruturas trabalhistas, focadas na produção como elemento primordial, figurando o trabalhador como elemento meramente complementar ao processo, não há qualquer desenvolvimento relacionado ao combate às práticas de assédio moral, com exceção, de forma muito tímida, no Japão.

É neste contexto que o trato do assédio moral exige cautela extrema. Todo fenômeno que possui repercussão no campo jurídico, em especial em seara indenizatória, deve ser tratado de forma cuidadosa, com precisa identificação dos pontos caracterizadores do

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instituto e de suas efetivas consequências. Temos exemplo claro ao relembrar a “febre” do dano moral, que ainda hoje persiste em nosso país, em que qualquer tipo de aborrecimento já era suficiente para levar a questão aos tribunais, pleiteando-se indenizações milionárias. Outro exemplo recente foi o assédio sexual. Até que estivesse juridicamente bem delineado, qualquer convite para um almoço ou lanche, realizado por um chefe, caso não fosse bem recebido, já se indicava a ocorrência de assédio sexual, com graves repercussões na vida do acusado. Portanto, para desenvolver o Direito como instrumento em potencial de contenção do assédio moral, é imprescindível que este esteja precisamente bem caracterizado, sob pena da banalização do instituto, o que o levaria ao descrédito e impossibilitaria a adequada implementação de uma responsabilidade civil e penal arrojadas. Marie-France Hirigoyen afirma com propriedade que “a vitimização excessiva termina por prejudicar a causa que se quer defender. Se, com ou sem razão, enxergarmos o assédio moral a todo instante, o conceito corre o risco de perder a credibilidade”.6

Com efeito, a impropriedade na definição do preciso conceito de assédio moral, juntamente com a utilização do instituto como instrumento para vinganças pessoais, carreadas em falsas acusações ou hiperdimensionamento de ocorrências legítimas e corriqueiras, contribuem para um enfraquecimento na análise das ocorrências reais de processos de assédio moral.

Primeiramente devemos ter em foco que o assédio moral não se caracteriza por eventuais ofensas ou atitudes levianas isoladas por parte do superior. Muito mais do que isto, o assédio moral somente estará presente quando a conduta ofensiva estiver revestida de continuidade e por tempo prolongado, de forma que desponte como um verdadeiro modus vivendi do assediador em relação à vítima, caracterizando um processo específico de agressões psicológicas. Deve estar caracterizada a habitualidade da conduta ofensiva dirigida à vítima. Caso contrário, teremos meras ofensas esparsas, mas que não possuem o potencial evidenciador do assédio moral.

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Neste ponto, é relevante ressaltar que uma só ofensa ou conduta isolada poderá provocar danos morais ou materiais indenizáveis, assim como estabelecer algum tipo de delito, em especial contra a honra. Contudo, quando falamos de assédio moral, estamos nos referindo a uma situação muito mais complexa, caracterizada por um conjunto de ações habituais que...

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