A captura da crítica social, a transubstanciação do ilícito trabalhista e as novas formas de trabalho legitimadas pela Reforma Trabalhista: o efeito backlash

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas377-384

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1. A captura da crítica social: disrupturas, dualização do assalariado e ressignificação

Diante do contexto de crise de superprodução e sobreacumulação, o novo modelo de desenvolvimento capitalista – de acumulação flexível – modificou a forma de controlar do metabolismo social.

Assim, ao se pensar na produção de subjetividade numa sociedade de controle, deve-se atentar para os atuais mecanismos de subjetivação do capitalismo contemporâneo e suas estratégias modulares de intervenção, sedução e captura que, conforme será visto mais adiante, ao mesmo tempo, associam liberação e dispersão com adesão voluntária e produtividade eficazmente controladas.

A proposta do capital para os seres trabalhadores consiste no sociometabolismo da barbárie. Esse propósito é percebido claramente a partir da desconstrução da ideia do ser humano genérico:

[...] a autopercepção e consciência do homem como ser genérico, isto é, ser social, consciente e racional, capaz de dar respostas radicais no plano da ação coletiva como ação histórica e as condições do mundo sistêmico do capital global. Como decorrência do movimento da precarização estrutural do trabalho instaurou-se a nova precariedade salarial caracterizada pela insegurança laboral.3

Na obra Capitalismo Contemporâneo e Guerras Estéticas, Maurizio Lazzarato afirma que o capitalismo atual adota a ideia fluida da empresa4, a partir da qual utiliza técnicas para viabilizar a criação de mundos de mercado e de subjetividades para integrar tais mundos. De tal forma que a empresa investe em pesquisa, em marketing, entre outros; de modo que na verdade seu papel não é de criar mercadoria, mas sim o mundo e o contexto onde a mercadoria existe; a empresa não cria o sujeito, mas sim o mundo onde esse sujeito existe. Assim, todos os serviços, os produtos e sobretudo os produtores/consumidores devem corresponder a esse mundo. Desse modo, o capitalismo captura a crítica e a subjetividade social a fim de construir a correspondência entre os consumidores/trabalhadores e seu mundo.

Há então, inegavelmente, por parte do sistema capitalista, uma produção de subjetividades em escala industrial orquestrada por sua lógica de funcionamento do momento em escala internacional. Nas palavras de Guattari e Rolnik, “a ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama [...]”5.

As formas de trabalho cada vez mais flexíveis promoveram disrupturas nas formas de contratação, de remuneração e ainda, na jornada de trabalho. Em títulos posteriores, as auto-ras do presente estudo demonstrarão como tal técnica de captura da crítica e da subjetividade social passa por um processo de transubstanciação e se consolida na norma trabalhista.

As jornadas de trabalho cada vez mais intermináveis (pois o trabalho acompanha o trabalhador para além da empresa) corroeram o espaço-tempo de formação de sujeitos humanos, o que aumentou a autoalienação do homem que trabalha. Nesse caso, transubstanciou-se a cotidianidade das individualidades pessoais, com a redução da vida pessoal à dinâmica estranhada do trabalho assalariado. Atualmente, para o capitalismo global, houve a redução da ideia do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria.

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A crise, associada à incerteza e à instabilidade das novas modalidades de contratação, e a remuneração flexível promoveram drásticas alterações nas interações dos trabalhadores com outros trabalhadores – dimensão de sociabilidade6. Com isso, se modificou também de forma subjetiva a relação do próprio homem consigo mesmo – dimensão da autorreferência pessoal7.

Instaurou-se, então, crise nos três aspectos da subjetivi-dade humana: a crise da vida pessoal, a crise de sociabilidade e a crise de autorreferência pessoal. De forma mais moderna, entendem as autoras deste artigo, ser esse o significado mais apropriado da precarização do trabalhador. Para os padrões atuais, a fim de que se atinja a exata compreensão é imprescindível a redefinição do conceito de precarização do trabalho a partir da ressignificação do conceito de força de trabalho, que passa a admitir mais uma possibilidade: como mercadoria e trabalho vivo. Sob essa nova perspectiva, as individualidades pessoais de classe, homens e mulheres que trabalham, podem ser consideradas tanto como mera força de trabalho quanto como mercadoria; ou como trabalho vivo no sentido de “ser humano genérico”.

Lukács8 cunhou a expressão “homem que trabalha”. Ao fazê-lo, chamou atenção para a separação histórico-ontológica que se apresenta nas individualidades pessoais de classe. No sistema capitalista, o trabalhador assalariado é homem/mercadoria; mas também é homem/ser genérico9. Assim, a atual precarização do trabalho, comandada pelo capitalismo global, vai além da mera “precarização do trabalho”, eis que não se trata apenas da precarização do contrato de trabalho, do salário ou da mercadoria força de trabalho. Vai além, pois constitui a “precarização do homem que trabalha”, no sentido de degradação do homem em sua condição de ser genérico.

De modo que o novo metabolismo social do trabalho que foi tratado no início do texto não pode ser visto apenas no sentido de cuidar de novas formas de consumo da força de trabalho como mercadoria, mas sim dos novos modos de (des)constituição da pessoa humana e seus atributos não elimináveis (alteridade, individualidade e subjetividade), tudo isso para atender às demandas da economia.

É exatamente nesse sentido que a Lei n. 13.467/17 iniciou um processo de apropriação e captura, transformando o que antes era ilícito, impraticável, indecente, em normal e “regulamentado”. Os maiores exemplos dessa transubstanciação se dão nos casos analisados a seguir.

2. Trabalhadores fora da linha: a regulamentação celetista do trabalho autônomo, intermitente e do hiperssuficiente

As regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) sempre foram claras e, às vezes, claras demais: o maior detentor de sua proteção é o empregado, aquela pessoa física que trabalha com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. Embora esses elementos possuam níveis de ocorrência, sua caracterização – quase – sempre os fazia cair na rede de proteção ampla do trabalho.

Alguns, no entanto, sempre ficaram de fora. Por escolha do legislador, como as domésticas e os estagiários, ou por saírem fora da linha, como no caso dos autônomos, não subordinados. Outros, a sua vez, eram protegidos independentemente de sua característica tênue, a exemplo dos que trabalham em regimes mais espaçados ou os que ganham quantia que, em teoria, poderia diminuir o pressuposto da subordinação.

Com a Lei n. 13.467/17, essa lógica foi invertida, transubstanciando o ilícito no lícito e a exceção na regra, como será abordado na análise de cada um desses pontos a seguir.

2. 1 Trabalhador autônomo exclusivo: a contradição latente

O autônomo sempre possuiu a maior distinção possível do empregado: a sensação de que não está subordinado a ninguém, que não pertence a nenhum grau hierárquico e que, por isso, tem liberdade de escolha. Mesmo em termos de senso comum, a utilização do conceito remete a alguém livre para trabalhar; alguém que pode escolher clientes, salários, horários, descansos e tudo o mais, com um porém: a ausência de proteção trabalhista. E isso parte de uma premissa falsa, aqui criticada com ironia por Jorge Luiz Souto Maior:

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[...] o pressuposto da melhoria da condição social e econômica do trabalhador não seria mais que mera figura de retórica e todo o Direito Social, uma fórmula de suprimir a dignidade humana. Só haveria liberdade e dignidade fora do trabalho subordinado e tudo aquilo que apregoa o Direito do Trabalho seria uma farsa. O grande propósito dos Direitos Sociais, portanto, seria o de extrair o trabalhador da condição de empregado, conferindo-lhe, enfim, a tão almejada autonomia econômica e abominado estaria o modelo capitalista...

Mas, será factível uma sociedade capitalista só com trabalhadores verdadeiramente autônomos?

Certamente não, pois as diversas oportunidades geradas pelo livre aproveitamento do mercado de consumo, típico desse modelo de sociedade, geram, naturalmente, diferenças econômicas entre as pessoas e essas tendem a aproveitar-se da situação, sobretudo se forem antigos trabalhadores que tenham, digamos assim, “subido na vida”. Como dizia La Boétie, a tirania se instala no próprio desejo que todos têm de ser tiranos também.

Os “novos” autônomos, para incremento de sua atividade, acabam utilizando mão de obra alheia, passando a ostentar, eles próprios, a condição de empregadores [...].10

Assim, o autônomo realiza uma troca: presta seus serviços de forma eventual, pois escolhe a quem prestar, assume os riscos de sua atividade e, mesmo recebendo por seu trabalho, não se subordina ao cliente. O conceito é aquele inserido pela Lei n. 5.890/73 na Lei n. 3.807/60:

Art. 5º [...]

c) trabalhador autônomo - o que exerce habitualmente, e por conta própria, atividade profissional remunerada; o que presta serviços a diversas empresas, agrupado ou não em sindicato, inclusive os estivadores, conferentes e assemelhados; o que presta, sem relação de emprego, serviço de caráter eventual a uma ou mais empresas; o que presta serviço remunerado mediante...

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