Capitalismo cognitivo e renda universal: do igualitarismo transcendental ao direito biopolítico

AutorMurilo Duarte Costa Corrêa
CargoProfessor Adjunto de Teoria Política do Departamento de Direito de Estado
Páginas109-134
Direitos Culturais, Santo Ângelo, v.12, n.26, p. 109-134, jan./abr. 2017
CAPITALISMO COGNITIVO E RENDA UNIVERSAL:
DO IGUALITARISMO TRANSCENDENTAL AO DIREITO BIOPOLÍTICO
COGNITIVE CAPITALISM AND BASIC INCOME:
FROM TRANSCENDENTAL EGALITARIANISM TOWARDS BIOPOLITICAL
RIGHT
Murilo Duarte Costa Corrêa1
Resumo: Em A ideia de justiça, Amartya Sen procura consolidar
uma crítica pragmática às teorias contemporâneas da justiça que, a exemplo de
John Rawls ou de Ronald Dworkin, se limitam a identificar arranjos
institucionais transcendentalmente justos. Sen, ao contrário, admite a
construção de um critério de justiça supostamente antitranscendental, baseado
nas realizações concretas das liberdades e nas vidas que as pessoas podem
viver de fat o, sem que isso implique aderir à limitada base informacional das
teorias utilitaristas. Neste ensaio, argumentamos que o deslocamento crítico
produzido por Amartya Sen é insuficiente para entregar-nos um conceito
empírico de justiça, ao deixar intocados os contextos concretos aos quais seus
principais conceitos irão se aplicar. Essa lacuna permite inferir que o
deslocamento crítico proposto pela obra de Sen pode ser considerado um
reflexo ideal de transformações reais nas condições materiais de poder, de vida
e de produção no corpus da teoria contemporânea da justiça. Sob esta
condição, este ensaio interroga as políticas brasileiras de distribuição de renda
e de renda universal em um novo sentido como direitos biopolíticos.
Palavras-chave: Capitalismo cognitivo. Biopolítica. Renda
universal. Teoria da Justiça.
Abstract: Amartya Sen, in An Idea of Justice, criticizes the
contemporary theories of justice claiming that liberal theorists commonly
reduce its comprehension to the determination of institutional arrangements
considered as just in a transcendental way. Sen, on the contrary, claims for an
allegedly antitranscendental way to construct a criterion of justice which would
be founded on concrete realizations of liberties and concrete ways of living,
nevertheless scaping from the limited informational basis of utilitarian theories.
In this essay we advocate that Sen's critics are insufficient to deliver an
empirical concept of justice, once the concrete contexts remain not touched by
his supposedly empirical idea of justice. We argue that the critical argument of
Amartya Sen could be int erpreted as an ideal reflex of concrete changes in the
material conditions of power, life and labor within the contemporary theory of
justice. Under this assumption, this essay interrogates the brazilian politics for
basic income in a novel way: as biopolitical rights.
Keywords: Cognitive capitalism. Biopolitics. Basice income.
Theory of Justice.
1 Professor Adjunto de Teoria Política do Departamento de Direito de Estado e Docente Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG). Doutor (USP) e mestre (UFSC) em Filosofia e Teoria Geral do Direito. E-mail:
mdc.correa@gmail.com
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Direitos Culturais, Santo Ângelo, v.12, n.26, p. 109-134, jan./abr. 2017
Sumário. Considerações Iniciais; 1. Igualitarismo liberal e
distributividade: o ponto cego das teorias da justiça; 2. Biopoder, capitalismo
cognitivo e trabalho biopolítico; 3. Direitos biopolíticos: do bolsa-família à
renda universal no Brasil; Considerações finais; Referências.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O coraç ão da tradição liberal igualitária das teorias da justiça
contemporâneas poderia resumir-se ao problema da disputa transcendental sobre os
critérios de justiça para constituir, reformar ou abolir as instituições sociais. Apesar
dos modelos explicativos e das soluções heterogêneas oferecidas ao pr oblema da
determinação do crit ério de justiça, o obj eto por excelência de suas versões teóricas
continua a ser o mesmo que fora delimitado por John Rawls no início dos anos 1970
em A theor y of justice: “[...] a estrutura básica da sociedade [...], o modo como as
principais instituições sociais distribuem os direitos e os deveres fundamentais e
determinam a divisão das vantagens d ecorrentes da cooperação social”.
2 Disso
decorrem algumas consequências não-negligenciáveis que condicionam as respostas
que as teor ias contemporâneas da justiça serão capazes de oferecer. As três
principais con sequências consistem no caráter ideal, abstrato e descarnado de suas
fórmulas3, na enunciação de princípios universais e deontológicos de justiça ainda
que eles possam per manecer atentos ao problema das desigualdades ou d as
diferenças4 e, por fim, na pr eocupação pragmática de concretizar esses princípios
ideais em instituições sociais que se ocupariam de regrar o problema da distribuição
de direitos e vantagens da cooperação social.
Os argumentos de correção moral das teorias deontológicas desafiam as
seduções pragmáticas consequencialistas das teorias utilitárias adotando uma forma
univocamente transcende ntal, embora seus resultados teóricos e pretensamente
práticos sejam claramente heterogêneos. Isso faz com que os modelos ideais,
desenhados a fim de co nceber e enunciar princípios de justiça a partir de parâmetros
racionais, sejam necessariamente reconduzidos a aspirações institucionais e
empíricas. Assim, problemas diretamente ligados ao papel das instituições sociais e
2 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008,
p. 08.
3 Esta é a ambiguidade que percorre a maior parte das concepções de justiça dos teóricos contemporâneos
e encontra em Ronald Dworkin, talvez, sua forma mais bem acabada: “[...] nosso projeto [de modelo
satisfatório de leilão real] é, neste debate, completamente teórico. Nosso in teresse principal está na
elaboração de um ideal, e de um dispositivo que expresse esse ideal e examine sua coerência, integridade
e atratividade. Portanto, ignoremos as dificuldades práticas [...]” DWORKIN, Ronald. A virtude
soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 90. No mesmo sentido, Roberto Gargarella afirma: “Decerto, Dworkin não pensa no leilão e no
esquema de seguros como diretamente traduzíveis para a realidade. GARGARELLA, Roberto. As teorias
da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 70-71. O esquema apresentado por ele tende a constituir, simplesmente,
um modelo para orientar uma política igualitária”. No mesmo sentido, v. KYMLICKA, Will.
Contemporary political philosophy: an introduction. 2. ed. New Y ork: Oxford University Press, 2002,
p. 82.
4 Tal como se ap resenta no princípio da diferença, enunciado pela teoria da justiça de Rawls, e que se
encontra subordinado, segundo uma ordem lexicográfica, ao princípio da igual liberdade: “As
desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa
razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício d e todos como (b) estejam vinculadas a cargos e
posições acessíveis a todos”. RAWLS, John. Uma teoria da justiça..., p. 73.

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