Capitalism, state and democracy: a Marxist debate/ Capitalismo, Estado e democracia: um debate marxista.

AutorDemier, Felipe
  1. Introducao

    Os trente glorieuses anos apos a Segunda Guerra Mundial, caracterizados por crescimento economico elevado e extensao dos direitos, moldaram uma hipotese sobre as relacoes entre democracia (definida como regime liberal-representativo) e capitalismo (definido como modo de producao baseado na propriedade privada e no trabalho livre), que ate hoje continua hegemonica na sociologia politica critica. Em termos gerais, essa hipotese pressupoe que a democracia liberal-representativa e o capitalismo seriam esferas diferenciadas que, por se basearem em principios organizativos opostos (bem comum versus interesse particular), se tensionariam permanentemente. Tenderiam, portanto, a incompatibilidade. Esta incompatibilidade, no entanto, segundo a hipotese hegemonica, poderia ser revertida por principios mediadores que assegurariam uma convivencia comum (Offe 1983).

    Tais principios seriam a competicao partidaria entre partidos politicos e o Estado social keynesiano (Offe 1983). Enquanto o primeiro, na linha do minimalismo schumpeteriano, tornaria a democracia palatavel para o capitalismo ao introduzir a logica da luta concorrencial pelo voto do povo, o segundo tornaria o capitalismo palatavel para a democracia ao possibilitar a acumulacao com base em um compromisso com a produtividade a partir de garantias com o trabalho. Quando, apos a deflagracao das crises da representatividade e do Welfare nos anos 1980, considerou-se que os dois principios mediadores comecaram a falhar, a hipotese hegemonica elegeu um outro arranjo para se apoiar: o direito. Segundo essa perspectiva, direitos humanos e constitucionais permitiriam a regulacao normativa de interacoes estrategicas e funcionariam como "limitacoes factuais" que bloqueariam a instrumentalizacao de associacoes voluntarias por interesses privados (Habermas 1998).

    Em sua primeira versao, a hipotese hegemonica so conseguiu se manter valida as custas de um vies espacial, de genero e etnico de selecao que distorceu a estimativa de sua medida do mundo (Altvater, Hoffmann, e Semmler 1979; Frank 1969; Mies 1988; Davis 2016). Isto e: sua plausibilidade dependeu da generalizacao arbitraria de uma experiencia parcial com capitalismo e democracia liberal-representativa, a dos grupos signatarios do acordo de classes instituido em torno das altas taxas de crescimento dos anos 1945-1973.

    Com isso, a hipotese hegemonica desconsiderou, por exemplo, as estruturas de reproducao da desigualdade no ambito do capitalismo global (o boom economico favoreceu apenas o ocidente), a existencia de uma divisao do mercado de trabalho entre um setor monopolista (de trabalhadores brancos) e um competitivo (de trabalhadores negros ou imigrantes) e a dependencia da acumulacao keynesiana em relacao a exploracao do trabalho feminino domestico. Apesar disso, determinadas condicoes institucionais do capitalismo monopolista de Estado durante os trente glorieuses, sobretudo as medidas anticiclicas ou anticrises de intervencao dos poderes publicos na vida economica, tornavam minimamente crivel o argumento de compatibilidade entre democracia liberal-representativa e capitalismo.

    O mesmo nao pode ser dito hoje. As atuais politicas reprodutoras de desigualdade estao se realizando nos termos da racionalidade procedimental, liberal e democratica do Estado Constitucional de Direito (Goncalves 2017). Pense-se, por exemplo, que a Suprema Corte dos EUA tornou-se lugar privilegiado para se observar como decisoes judiciais reforcam estratificacoes socioeconomicas (Gilman 2014) ou que o Conseil Constitutionnel (2015) considerou constitucional o estado de emergencia decretado pelo governo frances apos os atentados de Paris de novembro de 2015. Nao custa lembrar que, no Brasil, ha um questionamento sobre o carater golpista do impeachment de Dilma Roussef, apenas porque o Supremo Tribunal Federal validou todos os atos do respectivo processo. Pense, ainda, nas politicas europeias discriminatorias de refugiados, no encarceramento em massa da populacao negra nos EUA e nas missoes/guerras civilizatorias em nome dos direitos humanos.

    A grande maioria dos Estados atuais sao democratico-constitucionais e neoliberais. Nunca existiu tanto neoliberalismo e tanta democracia representativa no mundo. Ha, portanto, claramente um paralelo entre a eclosao da influencia politica e aceitacao social da democracia liberal-representativa como projeto emancipatorio e a estabilizacao da acumulacao neoliberal na ordem capitalista.

    Todo esse contexto tem exigido da sociologia politica critica certa criatividade para manter sua hipotese hegemonica, como mostra o trabalho de Steeck (2015). Recentemente, o autor propos uma concepcao dicotomica de democracia baseada na distincao entre "democracia igualitaria" e "democracia conforme o mercado". Apenas a primeira, segundo ele, estaria em colisao com o Hayekianismus neoliberal (Streeck 2015: 105-106). O principal problema desse tipo de conclusao, no entanto, e que ela desconsidera que o neoliberalismo mobiliza as instituicoes politicas da democracia moderna, seus recursos motivacionais e normativos em suas acoes de (re)mercantilizacao dos espacos publicos e comuns (Boltanski e Chiapello 2005).

    Na verdade, esse problema e todo o contexto de compatibilidade entre medidas autoritarias, neoliberais e arranjos democratico-constitucionais contrariam de maneira explicita aquilo que foi afirmado por Offe (1983: 227) ha pouco mais de tres decadas e reatualizado por Streeck (2015) nos dias de hoje. O fato e que a hipotese contra-hegemonica de que nao ha separacao nem tensao fundamental entre capitalismo e democracia constitucional parece ser cada vez mais plausivel. Se, como visto, essa hipotese alternativa ja era crivel nos trente glorieuses, o advento da acumulacao neoliberal explicitou a relacao de identidade entre democracia liberal-representativa e capitalismo.

    As evidencias empiricas das tendencias atuais do capitalismo exigem que, pelo menos, a sociologia politica critica leve a serio essa hipotese contrahegemonica. Indicada em alguns trechos de determinadas obras de Marx e Engels, ela adquiriu status teorico no estudo de Lenin sobre a questao do Estado e foi desenvolvida nas consideracoes sobre a democracia de autores como Trotsky e Gramsci. Tal hipotese se tornou altamente convincente no periodo de surgimento do capitalismo monopolista de Estado e, levantada no processo da Revolucao de Outubro, foi seu horizonte de analise. A partir principalmente das consideracoes posteriores gramscianas, ela foi estendida. Nao ha duvidas de que, diante do contexto contemporaneo descrito, essa hipotese marxista do Estado e da democracia torna-se atual.

    Para reconstruir essa hipotese, primeiramente, analisaremos a nocao de Estado enquanto violencia organizada da classe dominante, tal como formulado por Lenin, no texto O Estado e a revolucao. Em seguida, discutiremos como o regime democratico liberal-representativo se conforma a essa nocao. Depois, veremos de que maneira Trotsky e Gramsci ampliaram a critica a democracia liberal por meio da articulacao equilibrada entre aspectos coercitivos, reformistas e ideologicos. No penultimo topico, demonstraremos a partir do modelo de Wood que, mesmo em sua forma mais avancada (a dos trente glorieuses), o regime democratico liberal-representativo nunca perdeu sua qualidade de dominacao de classe. Ao final, indicaremos a sugestao de a hipotese contra-hegemonica se apresentar nos dias de hoje na forma de uma democracia blindada.

  2. A questao do Estado em Lenin: externalizacao e duplicacao da dominacao

    No texto O Estado e a revolucao, a concepcao de Lenin (1974) sobre capitalismo e Estado e uma secao de sua teoria da sociedade. Primeiramente, ao contrario da tradicao que se tornou mais aceita entre os circulos academicos marxistas (a chamada teoria da forma-Estado), Lenin nao se pergunta sobre como se poderia retirar o Estado do esquema de O Capital nem enfatiza as categorias de Marx que dizem respeito as formas sociais fetichizadas. (1) Nao ha, nesse sentido, uma investigacao da especificidade da forma politica no capitalismo ou de sua relacao com a forma-valor. Com isso, o autor tambem se distancia de um debate sobre a derivacao da forma Estado a partir da sociedade. O ponto de partida de Lenin nao e portanto a teoria do valor, e sua concepcao de Estado nao surge da elaboracao de uma relacao de contradicao entre essencia (a relacao desigual entre capitalista e trabalhador) e aparencia (a troca entre equivalentes).

    Ao contrario, sua reflexao sobre Estado e capitalismo fundamenta-se na tese da difusao do conteudo do antagonismo social em toda a organizacao capitalista, que tem por base as consideracoes de Marx e Engels sobre classes. Quanto ao primeiro, a referencia sao os escritos politicos, especialmente O 18 Brumario de Luis Bonaparte, A Guerra Civil na Franca e Critica do Programa de Gotha. Quanto ao segundo, Lenin mobiliza diferentes citacoes extraidas de textos escritos principalmente no ambito das polemicas com a socialdemocracia alema. De ambos, o relevante, no entanto, e a reflexao sobre a questao do Estado que pode ser inferida das experiencias de 1848-1851 e da Comuna de Paris, em 1871.

    A modificacao do campo de observacao, operada por Lenin, nao implica, todavia, a elaboracao de uma visao simplificada sobre a questao do Estado, como amplamente afirmado pela literatura dominante. Formulada sob a influencia do avanco dos regimes liberais desde o pos-guerra, esta literatura tende a encontrar, no texto O Estado e a revolucao, apenas uma concepcao instrumentalista de Estado, que reduziria a natureza do aparelho estatal a sua funcao coercitivo-repressiva. (2)

    A problematica elaborada por Lenin e, no entanto, mais ampla. E verdade que, escrito as vesperas de Revolucao de Outubro, sua linguagem e dirigida a agitacao politica. Dessa perspectiva, se opoe, de um lado, ao reformismo socialdemocrata da II Internacional (principalmente as posicoes de Kautsky) por meio...

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