O capital como sujeito e o sujeito de direito/Capital as subject and the subject of law.

AutorCasalino, Vinicius

"Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequencia de nosso desenvolvimento, veremos que as mascaras economicas das pessoas nao passam de personificacoes das relacoes economicas, como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras". Karl Marx Introducao

"Toda relacao juridica e uma relacao entre sujeitos. O sujeito e o atomo da teoria juridica, o elemento mais simples e indivisivel, que nao pode mais ser decomposto. E por ele, entao, que comecaremos nossa analise" (PACHUKANIS, 2017, p. 117; 2003, p. 109) (1).

Ao estabelecer (corretamente) este ponto de partida teorico para a critica marxista do direito, e provavel que Pachukanis nao tenha vislumbrado o contragolpe que mais cedo ou mais tarde receberia no interior desta mesma critica. De fato, o que se observa e a recepcao descuidada desta importante orientacao metodologica; categoria cujo sentido nao tem sido investigado em seus fundamentos, de modo condizente com sua importancia estrategica. Surpreenda-se ou nao, o marxismo parece ter se enamorado dos pressupostos epistemologicos da propria dogmatica juridica burguesa, suposta inimiga a ser combatida (2).

Ora, se e verdade, como afirma o autor russo, que uma das incumbencias da teoria geral do direito consiste no desenvolvimento dos conceitos juridicos fundamentais, o que inclui categorias tais como norma juridica, relacao juridica e sujeito de direito; que estas abstracoes representam as definicoes mais proximas da forma juridica, e, no fundo, nao refletem senao relacoes materiais especificas, as relacoes sociais burguesas; que o marxismo nao deve renunciar a analise desses conceitos, sob pena de explicar apenas a origem e interesses de classe contemplados pela regulamentacao juridica, mas nao a existencia desta regulamentacao enquanto forma social historica; enfim, que a analise marxista deve seguir os passos de Karl Marx e adentrar no territorio do inimigo, isto e, "ao expor a analise destas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado--em outras palavras, demonstrar as condicoes historicas da forma juridica" (PACHUKANIS, 2017, p. 80; 2003, p. 61-62).

Nao e menos verdade, entao, que a critica marxista deve imprimir esta exigencia a si mesma, ou seja, submeter a analise rigorosa suas proprias conclusoes teoricas. A partir do momento em que assume como ponto de partida os conceitos fundamentais da teoria juridica tradicional, o marxismo precisa efetuar a critica constante e radical de seus proprios pressupostos teoricos para saber se nao ha neles qualquer residuo ou aproximacao indevida com relacao as categorias forjadas pela teoria geral do direito (3).

Alias, esta exigencia nao deveria causar estranheza: ela foi adotada pelo proprio Pachukanis. Ou seria exagero afirmar que os pontos-chave de sua obra sao quase todos atravessados pelo debate teorico autocritico com os camaradas que se debrucavam, tal como ele, sobre os principais problemas da teoria geral do direito?

Desse modo, a tarefa comeca ja com a obra do autor russo. Se, por um lado, e patente que ele promove um avanco colossal no que concerne ao status cientifico da critica marxista do direito - desvendando, a partir das figuras economicas expostas por Marx em O capital, a genese das categorias juridicas utilizadas pela Teoria geral do direito - deve-se reconhecer, por outro lado, que ha uma serie de pontos cegos em seu trabalho, isto e, a ausencia de um conjunto de mediacoes categoriais que simplesmente escaparam a sua analise, seja porque nao estavam compreendidas nos limites teoricos de seu escrito, seja porque nao figuravam no horizonte historico de suas preocupacoes cientificas (4).

Mas o esforco nao pode interromper-se ai, pois a analise marxista que se seguiu a Pachukanis nao renunciou apenas a abordagem critica de sua obra. Pior do que isso, acolheu determinadas categorias fundamentais de sua teoria intensificando o residuo idealista que se encontra em algumas passagens, reiterando, com isso, a ausencia de mediacoes categoriais que deveriam ter sido hauridas diretamente em Marx.

Dai que um problema fundamental vem afligindo a critica marxista: a categoria do sujeito de direito, fixada por Pachukanis como ponto de partida para a analise do fenomeno juridico, tem sido recepcionada de modo acritico pelos autores e autoras que se seguiram ao teorico russo, o que resulta numa certa reificacao do conceito e, como consequencia, em uma indesejavel aproximacao com os pontos de vista defendidos pela teoria tradicional.

Consciente ou inconscientemente, tem-se atribuido a pessoa da qual fala Marx em O capital determinados atributos conceituais, certos aspectos categoriais que a dotaram de alguma substancialidade, isto e, autonomia autorreferencial. Consequentemente, tem sido desfeitos certos nexos categoriais, determinadas mediacoes de sentido que a ligam umbilicalmente a outras categorias fundamentais da arquitetura conceitual de O capital--nexos cuja demonstracao constitui parte do esforco e, portanto, do avanco teorico realizado de modo pioneiro pelo autor russo. Como resultado, o sujeito de direito, exposto por Marx e desenvolvido por Pachukanis como criatura, adquire paradoxalmente o status de criador, autentico propulsor da constituicao e movimento de certas formas sociais no capitalismo (5).

Nesse sentido, e contrariando a leitura que tem predominado, este artigo sustenta a hipotese de que pessoa a que se refere Karl Marx em O capital, identificada corretamente por Pachukanis como a figura do sujeito de direito, nao deve ser compreendida senao como forma de manifestacao do valor enquanto suporte subjetivo de seu proprio movimento, isto e, forma especifica de uma relacao social em que individuos nao figuram senao como representantes de uma magnitude de valor que pode se materializar em mercadoria ou dinheiro, subsumindo a forma de pessoa ou sujeito de direito na medida em que, e apenas enquanto, funcionarem como sustentaculo consciente do movimento de autovalorizacao. Uma vez que este movimento imprime ao valor a qualidade de capital - pois o transforma em substancia e sujeito automatico do processo efetivo - fica claro que a pessoa ou o sujeito de direito nao e nenhum sujeito no sentido substantivo do termo, mas cumpre funcao meramente acessoria e subordinada as vicissitudes da acumulacao capitalista. Sublimam-se, pois, quaisquer aparencias de uma eventual autonomia desta forma enquanto potencia constitutiva de relacoes sociais, tanto quanto dos atributos que lhe sao imprimidos pelo movimento economico: propriedade, liberdade, igualdade e autonomia da vontade.

Assim, o objeto deste artigo gira em torno da obra de maturidade de Karl Marx, sobretudo o Livro I de O capital. Trata-se de analisar a exposicao categorial da mercadoria, do processo de troca, da circulacao do dinheiro e da transformacao deste em capital. A analise cuidadosa da exposicao dialetica marxiana permitira a extracao de um sentido mais preciso da categoria da pessoa ou sujeito de direito, com o que se pretende uma certa reconstrucao teorica desta figura a partir da obra de Pachukanis. Nao parece exagero afirmar que o autor russo concentra esforcos nos tres primeiros capitulos de O capital, isto e, analisa a exposicao da forma mercantil e da circulacao simples de mercadorias, mas relega a segundo plano a ressignificacao que tais categorias experimentam quando entra em cena a circulacao do dinheiro como capital (6). De fato, e ai que o valor se constitui como substancia e sujeito do processo efetivo, o que o transforma em capital e o eleva a forma dominante do modo de producao. Desse modo, Teoria geral do direito e marxismo tambem figura como objeto de analise critica, ou seja, ponto de partida e de retorno da pesquisa.

As conclusoes apontam para certos lugares-comuns que deverao ser revisitados. A famosa e ja assentada tese de Pachukanis, segundo a qual a forma do direito nao significa senao o outro lado da forma mercantil precisa ser repensada, uma vez que a mercadoria nao passa da forma particular de manifestacao do valor em seu movimento de autovalorizacao. Assim, a forma de pessoa ou sujeito de direito adere nao apenas ao possuidor da mercadoria, mas tambem do dinheiro; ainda mais, a qualquer um que esteja na titularidade de uma expressao de valor, mesmo que ficticia. Ademais, o movimento de autovalorizacao do valor, que o transforma em capital, exclui da forma da pessoa ou sujeito de direito qualquer possibilidade de autodeterminacao ou potencia constitutiva de relacoes sociais, relegando-a ao status de simples criatura - por mais que, de um ponto de vista unilateral, apareca como criador (7). Por ultimo, o fetiche da forma-pessoa deve ser compreendido mais adequadamente, nao como simples aparencia de ascensao e dominio da vontade do individuo sobre a mercadoria que esta sob sua guarda--como sugere Pachukanis--mas como projecao fantasmagorica do proprio valor que, ao se revelar objetivamente no preco da mercadoria ou no dinheiro, oculta astutamente sua forma subjetiva na figura aparentemente autonoma do sujeito de direito. Conclui-se, entao, que a forma por excelencia da pessoa nao e a pessoa natural, mas, antes, a pessoa juridica, que constitui a sintese mais pura do valor enquanto suporte subjetivo de seu movimento.

Finalmente, mas nao menos importante, o metodo utilizado nao pode ser outro que nao a propria dialetica materialista de Karl Marx, tal como apresentada em O capital. Do que se trata e do cuidado na delimitacao de suas categorias, mediacoes conceituais e estruturas significativas, de modo a divisa-la do metodo idealista, de corte hegeliano. Inumeras razoes justificam esta precaucao; ficamos com aquelas ressaltadas pelo proprio autor:

Meu metodo dialetico, em seus fundamentos, nao e apenas diferente do metodo hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a...

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