A cada leitor seu texto: dos livros às redes

AutorMarco Antônio de Almeida
CargoDoutor em Ciências Sociais. Docente do PPGCI-ECA/USP e da FFCLRP-USP
Páginas154-173

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Marco Antônio de Almeida

Doutor em Ciências Sociais Docente do PPGCIECA/USP e da FFCLRPUSP

marcoaa@ffclrp.usp.br

1 Introdução

Uma afirmação corrente no cenário contemporâneo é a do “fim do livro”, que marcaria uma inevitável passagem de uma cultura letrada para uma cultura que repousaria na comunicação audiovisual, cujo suporte seria as redes eletrônicas. Importa menos concordar ou discordar desse prognóstico, e sim buscar situálo concretamente numa perspectiva que dê conta das revoluções ocorridas nas maneiras pelas quais se relacionaram os textos, seus suportes materiais e as formas de leitura socialmente estabelecidas. Tornase fundamental, portanto, uma abordagem interdisciplinar que una a História, as Ciências Sociais e a Ciência da Informação e da Comunicação.

Um ponto de partida promissor, nesse sentido, pode ser construído a partir de algumas observações de Roger Chartier (1999): de um lado, pensar o livro como encarnação do texto numa materialidade específica, contemplando os atores e processos envolvidos; de outro, pensar em como a inscrição do texto nessa forma material condiciona e é condicionada pelas diferentes compreensões, interpretações e apropriações de parte de seus diversos públicos. Chartier assume o enfoque proposto por Michel de Certeau (1990), este considera que cada

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“consumidor” cada espectador, cada ouvinte produz uma apropriação inventiva da obra ou do texto que recebe. Nessa perspectiva, o consumo cultural passa a ser visto também como uma forma de produção, na medida em que é uma apropriação e uma construção simbólica (muito embora, como lembra o próprio Certeau, seja uma produção silenciosa, disseminada, anônima). Complementarmente, devese levar em conta “o conjunto dos condicionamentos que derivam das formas particulares nas quais o texto é posto diante do olhar, da leitura ou da audição, ou das competências, convenções, códigos próprios à comunidade a qual pertence cada espectador ou cada leitor singular.” (CHARTIER, 1999, p. 19)

A proposta desse artigo é tecer algumas considerações acerca do livro, da leitura e dos leitores numa perspectiva que considera as relações entre as mudanças ocorridas na materialidade dos suportes textuais e nas formas culturais de organização, produção, circulação e recepção dos conhecimentos e informações. Em outras palavras: refletir acerca de como os textos se tornam objetos escritos, manuscritos, gravados, impressos e informatizados, e como essas materializações dos textos configuram formas de leituras e tipos de leitores. Tratase de um vasto terreno de questões das quais buscaremos construir uma cartografia inicial, sem a pretensão de estabelecer respostas definitivas ou exaurir a temática.

2 Livros & leituras: cultura material e tecnologia

Inicialmente é importante distinguir algumas ordens de mudanças. A primeira é tecnológica, e diz respeito aos suportes materiais de leitura dos textos. Nesse caso, estamos nos referindo ao formato livro e sua adoção pela cultura ocidental letrada. Cabe aqui lembrar que o que chamamos livro é, na realidade, uma variação do modelo do códice cristão, designação usada para as sagradas escrituras, cujos pergaminhos eram retalhados em folhas soltas, reunidas em cadernos costurados ou colados em um dos lados e encapados com um material mais resistente. Já o termo livro (do latim liber) designava qualquer dispositivo de gravação/fixação do pensamento: pergaminhos, mas também tabuletas de cera, inscrições em pedra ou madeira, etc. Com a difusão do cristianismo e a adoção do formato do códice por Gutemberg e seus sucessores, o termo livro passa a designar exclusivamente esse modelo (MACHADO, 1994; CHARTIER, 1994). A revolução da imprensa, embora tenha contribuído

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decisivamente para a difusão e popularização do livro, não alterou sua forma, que permaneceria idêntica durante os séculos vindouros. Entre seus atributos, a portabilidade será decisiva no que diz respeito às possibilidades de circulação da informação e do conhecimento. O livro tornase um poderoso meio técnico que confere toda a eficácia à concentração individual, à difusão de idéias e que termina por constituir novas formas de trabalho intelectual.

O que vai ocorrer, paulatinamente, é a transformação do documento escrito em livro impresso. O livro moderno nasce da intersecção de duas dimensões: a do sistema técnico, que permite seu aprimoramento como suporte de textos, e a do mundo das idéias, ao qual favorecerá a difusão. Conjuntamente, estas duas dimensões desenvolveram a função de comunicação do livro. Uma série de mudanças sociais e culturais geradas já desde o século XIII permitiu a reconfiguração do papel do livro. São fatores importantes: a questão da materialidade técnica (papel como suporte, tipos móveis, etc.) para o surgimento e a existência da imprensa e o papel desempenhado pelas condições sociais no desenvolvimento dos rumos próprios dessa invenção.

Vale destacar o papel do livro técnico como ferramenta de comunicação, fruto do princípio de performatividade (ausente na Idade Média), que fixa a necessidade de uma realização eficaz dos projetos e se torna a essência da cultura material dominante a partir do Renascimento (BRETON & PROULX, 2002). Ocorre uma modificação em relação à própria atividade intelectual, com a alteração radical dos métodos de memorização e o deslocamento de funções__ de um catecismo religioso para uma mnemotécnica utilitária e laica. O Renascimento inaugura um novo estilo de intercâmbio cultural, ao modificar a relação entre cultura oral e cultura escrita. O papel da oralidade e do orador tem seu espaço reduzido e é deslocado a partir da constituição de uma “civilização da mensagem”. A comunicação social passa cada vez mais a organizarse em torno da mensagem e de sua circulação no suporte escrito.

Apesar da introdução da imprensa e do desaparecimento do livro manuscrito, a escrita manual permaneceu ocupando um espaço importante. Com o ciclo de descobertas e de crescimento urbano ampliamse as trocas comerciais, reservandose aos manuscritos um lugar cada vez maior na sociedade. Ocorre, portanto, uma ampliação do volume e da variedade de documentos em circulação na sociedade. O domínio da escrita e da leitura propiciou o surgimento de uma camada social internacional que não possuía nada em comum com a camada dos analfabetos (apesar das diferenças observáveis entre as práticas de escrita e leitura

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das diversas culturas ensinadas pelos mestres). Segundo Ladislas Mandel, o progressivo crescimento dos intercâmbios entre povos e nações levou a escrita comercial e contábil a realizar uma espécie de simplificação e uniformização universal que resultou, no início da Revolução Industrial (final do século XVII e início do século XIX), na denominada “Escrita Inglesa” cultivada pelos comerciantes e funcionários administrativos: “Uma escrita padrão, caracterizada por uma maior regularidade e transparência, que todo candidato a um cargo na administração, no ensino ou no comércio deveria praticar com perfeito domínio, dentro de uma absoluta despersonalização” (MANDEL, 2006, p. 119).

Para Roger Chartier (2002), realçar a importância preservada pelo manuscrito mesmo após a introdução da imprensa ajudanos a recordar que as novas técnicas não eliminam pura e simplesmente os antigos usos. Na verdade, da mesma forma que a máquina a vapor não matou a hidráulica, nem foi morta pelo motor à explosão, tampouco o livro decretou o fim do manuscrito, assim como ele também não pereceu diante do texto eletrônico. Como aponta Antoine Picón, “é muito progressivamente que um sistema técnico expulsa o outro e nunca se está num sistema técnico puro: certos elementos de um antigo sistema sempre subsistem, ao passo que outros talvez anunciem o próximo.” (1996, p. 31)

Desse modo, pensar o livro como suporte de um determinado texto é pensálo no interior de um sistema técnico híbrido, que remete a uma mistura de culturas (escrita, impressa, eletrônica) e que se baseia em diferenças perceptíveis entre diversos objetos: cartas, documentos diários, atlas, livros, computadores. Por outro lado, a introdução da textualidade eletrônica relacionada à informática suscita uma nova série de transformações.

Uma dessas transformações é, por assim dizer, de ordem “econômica”, que se relaciona com a propriedade dos textos. Antigamente (mais especificamente, na Londres dos séculos XVII e XVIII) consideravase o manuscrito da obra depositado e registrado pelo livreiro como o fundamento do direito editorial. Aos poucos, esse direito foi se deslocando do objeto para o texto em si, definido a partir de uma unidade abstrata de sentimentos, estilos e singularidades__ um processo de desmaterialização progressivo radicalizado hoje pela tecnologia digital. A questão central, do ponto de vista tanto jurídico e econômico, como também estético, passa a ser a relação entre o texto em si e a materialidade específica na qual ele se encarna.

Desse modo, os contratos de autor ora em vigor prevêem cláusulas que contemplem possíveis mutações do texto e suas eventuais transferências para outros formatos: de livro para adaptação cinematográfica, televisiva, um CDRom, um texto eletrônico, etc. Essa

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desmaterialização/rematerialização do texto gera um trabalho adicional que consiste em estabelecer noções ou conceitos capazes de englobar e unificar todas estas formas segundo os interesses dos produtores (ou dos detentores dos “direitos autorais”), para unificálas, ainda que as desmaterializando. Se este é um problema do ponto de vista da produção, para autores e leitores a questão é totalmente diferente, como observa Chartier: “A obra não é jamais a mesma quando inscrita...

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