Cabimento da ação popular na justiça do trabalho em defesa do meio ambiente laboral

AutorSarah Hora Rocha - Carlos Henrique Bezerra Leite
Páginas138-154

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1. Introdução

O acesso à justiça, entendido, em breve síntese, como modo pelo qual os direitos se efetivam, configura tema de fundamental importância para a realização da justiça e adequação do âmbito jurídico às necessidades sociais, motivo pelo qual consiste em tema central às discussões jurídicas. Além disso, o acesso à justiça é considerado requisito fundamental ao atual sistema jurídico, configurando, nas palavras de Cappelletti (1988), o mais básico dos direitos humanos.

O referido autor indica o aparecimento, no mundo ocidental, de três "ondas" destinadas a solucionar os problemas atinentes ao acesso à Justiça. Uma delas, a segunda "onda", se referia à representação jurídica dos interesses difusos ou coletivos. Com ela, emergiu nova preocupação com as ações coletivas, colocando em xeque as noções tradicionais do processo civil e do papel dos tribunais.

No ordenamento jurídico brasileiro surge, então, com a Lei n. 4.717/1965, a ação popular cujo art. 1º confere a "qualquer cidadão" legitimidade ativa "para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista" e dos demais entes administrativos descentralizados.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, houve recepção qualificada da referida lei, uma vez que seu art. 5º, inciso LXXIII, reconhece a "qualquer cidadão" a legitimatio ad causam "para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural".

Atualmente, a utilização da ação popular tem sido mais frequente no âmbito da Justiça comum. Contudo, torna-se necessário estudo acerca da possibilidade de

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ampliação do manejo da ação popular, de modo a permitir o manejo desse remédio constitucional na Justiça Laboral, mormente no que tange à tutela do meio ambiente do trabalho. Afinal, o meio ambiente do trabalho, direito social (e metaindividual) inscrito na Constituição Federal (art. 6º) como direito fundamental, merece especial atenção e proteção no avançado estágio em que o modo de produção capitalista se encontra, em razão da crescente degradação a que vem sendo submetido.

Nesse contexto, ainda que proposta por um particular, a ação popular atua, necessariamente, em prol da defesa de interesses da coletividade, consistindo, portanto, em relevante mecanismo de acesso coletivo à Justiça. Daí o problema da presente pesquisa: à luz da moderna concepção de acesso à Justiça, é cabível a ação popular no âmbito da Justiça Laboral como instrumento de tutela do ambiente de trabalho?

O presente trabalho tem por escopo traçar algumas considerações no sentido de responder a tal indagação, sempre com âncora na máxima efetividade do direito fundamental social dos trabalhadores a um sadio meio ambiente de trabalho. Pretende-se, assim, ao final, contribuir para os debates doutrinários que gravitam em torno da ampliação e efetivação do acesso à Justiça do Trabalho, da cidadania e dos direitos fundamentais tuteláveis pela ação popular.

No intuito de analisar o cabimento da ação popular na Justiça do Trabalho para tutela do meio ambiente do trabalho, à luz da moderna concepção de acesso à justiça, buscou-se: a) examinar as questões históricas e conceituais referentes à ação popular; b) analisar a ação popular na teoria dos direitos e garantias fundamentais e sua utilização como instrumento de acesso à justiça; c) definir meio ambiente e meio ambiente do trabalho; d) analisar a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento da ação popular; e) identificar a (im)possibilidade de cabimento da ação popular na Justiça Laboral para tutela do meio ambiente do trabalho.

2. Ação popular: das fontes romanas ao ordenamento jurídico brasileiro

A ação popular remonta suas origens ao Direito Romano, embora o cidadão romano dos primeiros tempos, por meio das chamadas actiones popularis, pudesse agir apenas nas hipóteses em que o interesse público abarcasse também seu interesse particular. Posteriormente, contudo, a noção de ação popular se desenvolveu, e, consoante José Afonso da Silva (2007, p. 18-19), passou a autorizar os particulares a agir ainda que não possuíssem qualquer interesse pessoal no caso concreto.

As actiones popularis deram origem à tutela jurisdicional dos interesses difusos, como aduz Nelson Nery Junior (2002, p. 601):

O fenômeno da existência dos direitos metaindividuais (difusos, cole-tivos e individuais homogêneos) não é novo, pois já era conhecido dos romanos. Nem a terminologia "difusos" é nova. Com efeito, as actiones popularis do direito romano, previstas no Digesto 47, 23, 1, que eram ações essencialmente privadas, destinavam-se à proteção dos interesses

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da sociedade. Qualquer do povo podia ajuizá-las, mas não agia em nome do direito individual seu, mas como membro da comunidade, como defensor desse mesmo interesse público.

Quanto à continuidade das actiones popularis no período medieval, esclarece Gregório Assagra de Almeida (2003, p. 381):

Apesar de o assunto não ser pacífico, as actiones popularis do direito romano, consoante entendimento majoritário da doutrina especializada, não sobreviveram no direito intermédio. São indicadas como causas: o autoritarismo feudal, as monarquias absolutistas, a religiosidade ambígua e aterrorizante da Santa Inquisição e as suas incompatibilidades com a figura da ação popular.

Já no direito moderno, ainda conforme Gregório Assagra de Almeida (2003, p. 382), houve o surgimento do primeiro texto sobre a ação popular "[...] com o advento da lei comunal de 30 de março de 1836, na Bélgica, seguida, na França, pela lei comunal de 18 de julho de 1837. Sob a influência dessas legislações, surgiu em 1859 a ação popular eleitoral italiana".

O ressurgimento da ação popular no mencionado contexto histórico foi possibilitado pela queda do despotismo político e coincidiu com o aparecimento do Estado Liberal. Neste viés, elucida José Afonso da Silva (2007, p. 30):

Pressuposto sociocultural da ação popular constitui-se da comunhão sociedade-Estado, ainda que seja quanto a um mínimo de participação do povo na formação do poder político. Ora, no Estado absolutista, tal pressuposto falta por completo. [...] Só o retorno ao sistema de participação do povo na vida pública poderia criar as condições necessárias ao ressurgimento desse instrumento de democracia, que é a ação popular. [...]

No Brasil, desde que inserida no ordenamento jurídico nacional, a ação popular adquiriu diferentes contornos, advertindo Rodolfo de Camargo Mancuso (2003, p. 58) que para compreendermos o desenvolvimento da ação popular no direito brasileiro é preciso considerar a divisão de seu histórico em duas fases: antes e depois da Constituição Brasileira de 1934.

Nesse sentido, Gregório Assagra de Almeida (2003, p. 383) aponta que alguns autores indicam a Carta Imperial de 1824 como o primeiro texto constitucional brasileiro a dispor sobre a ação popular, porquanto o seu art. 157 previa que "por suborno, peita, peculato e concussão haverá contra eles acção popular, que poderá ser intentada dentro de anno, e dia, pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei". O referido autor observa, entretanto, que tal dispositivo não apresentava os mesmos contornos da ação popular propriamente dita, razão pela qual não deveria, consoante entendimento majoritário, ser compreendida como o primeiro texto constitucional nacional a

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dispor sobre a ação popular, mesmo porque o dispositivo foi concebido "como uma espécie de ação popular penal, e não como instrumento de participação política" (ALMEIDA, 2003, p. 383).

A Constituição Federal de 1891, a seu turno, não cuidou da ação popular, razão pela qual pode-se dizer que a Carta da República de 1934 foi a primeira da Constituição brasileira a amparar tal instituto processual com contornos análogos aos atuais, por meio de seu art. 113, inciso XXXVIII, que dispunha: "qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou a anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios".

A Carta Magna de 1937, porém, influenciada pela ideologia do "Estado Novo", não abrigou a ação popular, tendo tal remédio reaparecido com a Carta de 1946, que ampliou essa ação, como se infere do seu art. 141, § 38. A partir desse momento, então, a ação popular passou a ter por objeto não só a proteção patrimonial das pessoas políticas, como também das entidades autárquicas e sociedades de economia mista.

Já as Constituições de 1967 e 1969 mantiveram a ação popular em seus textos, tendo a derradeira, em seu art. 153, parágrafo 31, consignado que "qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas".

Finalmente, a ação popular encontra-se expressamente prevista na Constituição da República de 1988, em seu art. 5º, inciso LXXVIII, que, textualmente, dispõe:

Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

Em nível infraconstitucional, a ação popular está prevista na Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965, criada sob a égide da Constituição de 1946 e alterada pelas Leis n. 6.014, de 27 de dezembro de 1973, e n. 6.513, de 20 de dezembro...

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