O cabimento da ação cautelar fiscal antes da constituição do crédito tributário

AutorRafael de Oliveira Franzoni
CargoProcurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Mestrando em Direito Tributário pela USP
Páginas206-224

Page 206

1. Introdução

O presente trabalho tem um objetivo muito bem delineado: responder se cabe ou não a ação cautelar fiscal antes da constituição do crédito tributário. Isso porque a Lei n. 8.397/1992, em seu art. 1º, caput, preceitua que "o procedimento cautelar fiscal poderá ser instaurado após a constituição do crédito", ao passo em que o parágrafo único excepcionalmente prevê que "o requerimento da medida cautelar fiscal, na hipótese dos incisos V, alínea b, e VII, do art. 2º, independe da prévia constituição do crédito tributário". O problema é que essas duas hipóteses excepcionais em que se admitiria a medida somente ocorrem após a notificação do devedor acerca do lançamento fiscal, a qual, para muitos, é o ato que constitui o crédito tributário.

Desse modo, haveria um desarranjo sintático no próprio texto da Lei n. 8.397/1992. Sem falar ainda que grassa na doutrina e na jurisprudência um segundo ponto de vista de acordo com o qual o crédito tributário somente está constituído quando encerrada a discussão administrativa a respeito do lançamento. Portanto, há também divergência semântica no texto em relação à expressão constituição do crédito tributário.

O enfrentamento do tema exige, pois, detida análise sintática e semântica do texto da Lei n. 8.397/1992. Aliás, sempre onde houver linguagem decerto haverá, em alguma medida, dificuldades de ordem sintática, semântica e pragmática. E como o direito se manifesta pela linguagem, é sob a ótica da Teoria Comunicacional do Direito que se há de buscar a resposta ao problema ora proposto.

Page 207

2. Direito, linguagem e construção de sentido

Segundo Gregório Robles,1onde há sociedade há linguagem. A sociedade é um grande sistema de comunicação, um sistema comunicativo entre seus membros. Para ele, o direito também é um sistema comunicacional, o mais importante nos dias atuais. Com efeito, o direito se expressa pela linguagem e só por ela. Por isso, ele deve ser analisado de acordo com a sua linguagem própria. No dizer de Paulo de Barros Carvalho,2o grande difusor no Brasil dessa Teoria Comunicacional do Direito, o direito positivo é um sistema que se ocupa das normas jurídicas enquanto mensagens produzidas pela autoridade competente e dirigidas aos integrantes da comunidade social. Mensagens estas que são prescritivas de condutas, que têm por fim orientar e regular o comportamento dos sujeitos de acordo com os valores eleitos pela sociedade.

Assim sendo, o direito tem de ser compreendido como um processo comunicacional que é, tendo em vista os seus elementos, que são seis: remetente, mensagem, destinatário, contexto, código e contato. No caso, figura na condição de remetente o legislador (considerado em sentido amplo), que envia uma mensagem de cunho prescritivo ao destinatário, os sujeitos submetidos à sua autoridade. Essa mensagem para ser eficaz requer um recorte da realidade social a ser regulada como contexto, além de um código compreensível tanto pelo remetente como pelo destinatário - o vernáculo -, e um contato, consistente em um canal físico no qual a mensagem seja objetivada (a lei, por exemplo) e uma conexão psicológica a envolver ambos os sujeitos do processo comunicacional.

E se é por meio da linguagem que o direito posto se constitui e se manifesta, é dever daquele que se propõe a estudá-lo levar em conta todo o seu processo comunicacional, desde o emitente até ao receptor. Distintamente do que propõem as teorias tradicionais, interpretar o direito não pode ser considerado o ato de extrair do texto jurídico o seu sentido. O texto é apenas o suporte físico onde estão as marcas da enunciação da mensagem norma tiva; não possui ânimo próprio. O real significado do que o emitente quis transmitir é da ordem do inefável. Somente o próprio emitente há saber. De acordo com a Teoria Comunicacional do Direito, o sentido do texto jurídico é obra da construção do intelecto do destinatário, deflagrado no instante em que entra em contato com o objeto. Nesse sentido, Raimundo Bezerra Falcão3ensina que, uma vez objetivada, a fala se desvincula do emissor, se emancipa dela. O que se tem, a partir daí, é a interpretação construída pelo apreensor, que se substitui ao sujeito da fala.

A compreensão da mensagem legislada é, portanto, a construção do sentido realizada pelo seu destinatário. Daí a diferença entre norma e texto: este é apenas o suporte físico onde a mensagem normativa é objetivada, aquela é um juízo implicacional originada no espírito do receptor no trato com o texto. Nessa ordem de ideias, interpretar é atribuir valores aos signos utilizados na mensagem. Por isso a importância da Semiótica - a Ciência que estuda os signos -, a revelar que o texto jurídico carece de ser investigado em três planos fundamentais: (i) da sintaxe, para averiguar as relações das normas entre si; (ii) da semântica, para identificar o verdadeiro significado dos vocábulos empregados; e (iii) da pragmática, para saber como o receptor da norma utiliza a mesma linguagem no seu dia-a-dia.

Ao percurso da mensagem objetivada no texto em contato com o intelecto do intérprete, Paulo de Barros Carvalho chama trajetória da interpretação. E, conforme ensina, é construída em quatro estágios: (i) organização dos enunciados do direito posto

Page 208

de modo sintático; (ii) outorga de conteúdo aos enunciados, transformando-os em proposições dotadas de carga semântica de conteúdo; (iii) integração de proposições com vistas à produção de unidades completas de sentido para as mensagens deônticas (ao que chama de mínimo irredutível do deôntico); e (iv) agrupamento das normas, assim construídas no estágio anterior, com relações de subordinação e coordenação, formando um sistema.4Isso posto, é sob a ótica da Teoria Comunicacional do Direito que se procurará responder ao questionamento proposto nesta investigação.

3. A normatividade dos princípios

Admite-se o direito como sendo o conjunto de normas jurídicas cuja função é orientar e regular a conduta humana de acordo com os valores eleitos por uma determinada sociedade em dado espaço e tempo em busca da paz social. Tal conjunto é de tal forma organizado e arranjado segundo relações de coordenação e subordinação e sob o influxo de um princípio unificador - a norma fundamental -, cuja racionalidade denuncia a existência de um sistema.

O sistema do direito positivo é, pois, um sistema composto exclusivamente de normas jurídicas. Não há nada senão normas jurídicas no universo do direito. Normas estas todas animadas com função prescritiva da conduta a ser regulada de acordo com um dos três modais deônticos: permitido, proibido ou obrigatório.

Nessa ordem de ideias, ao dizer que as normas jurídicas se subdividem em princípios e regras, tanto uns como as outras são dotados de caráter prescritivo de condutas. Sejam expressos no texto ou sejam implícitos no contexto, ao se tomar os princípios como normas jurídicas, não se pode negar-lhes a mesma capacidade de regular a conduta humana.

Que então distingue princípios das regras?

Os princípios são normas jurídicas portadoras de forte conteúdo axiológico em relação às regras e ocupam posição hierárquica privilegiada e polarizadora no sistema. Na mesma linha de pensamento, Roque Antonio Carrazza define princípio jurídico como "um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam".5Justamente em razão dessa sua hierarquia privilegiada e polarizadora no sistema, os princípios jurídicos vinculam o aplicador do direito, iluminando-o decisivamente na atividade de construção de sentido. Paulo de Barros Carvalho resume bem o raciocínio ora exposto: "Seja como for, os princípios aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num dado feixe de normas. Exercem eles uma reação centrípeta, atraindo em torno de si regras jurídicas que caem sob seu raio de influência e manifestam a força de sua presença. Algumas vezes constam de preceito expresso, logrando o legislador constitucional enunciá-los com clareza e determinação. Noutras, porém, ficam subjacentes à dicção do produto legislado, suscitando um esforço de feitio indutivo para percebê-los e isolá-los. São os princípios implícitos. Entre eles e os expressos não se pode falar em supremacia, a não ser pelo conteúdo intrínseco que representam para a ideologia do intérprete, momento em que surge a oportunidade de princípios e sobreprincípios".6Em suma, os princípios são normas jurídicas que carregam os valores mais sagrados à sociedade e quanto mais importantes, maior é a sua capacidade de

Page 209

aglutinação e influência sobre outras normas de menor hierarquia.

Partindo dessa premissa é que se há de estudar adiante os princípios que exercem maior influência normativa sobre o objeto desta investigação.

4. Princípio da inafastabilidade da jurisdição e o decorrente poder geral de cautela

Desde que o Estado assumiu o monopólio da força, a justiça de mãos próprias passou à marginalidade, salvo raríssimas exceções expressamente previstas em lei, de que são exemplos a legítima defesa, a retenção de bagagem e a defesa da posse. No ordenamento jurídico brasileiro, o exercício arbitrário das próprias...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT