Em busca de uma identidade latino-americana

AutorFernanda Filgueiras
CargoHistoriadora e Pesquisadora do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente da Universidade de São Paulo (IAMÁ-USP)
Páginas38-47

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1. Introdução

A questão da identidade, na América Latina, de acordo com Aníbal Quijano (2005), é um projeto histórico aberto e heterogêneo, pelo fato de muitos passados estarem envolvidos nesse processo e também terem se criado novas identidades sociais como índios, negros e mestiços, por conta da expansão do colonialismo europeu.

Com isso, foram se formando o que Quijano (2005) chama de "relações intersubjetivas", ou culturais, entre dominantes e dominados, porém, marcadas pela resistência. Assim, a "latinoamericanidad" nasce em um terreno confiituoso entre o europeu e o não europeu. Nesse contexto, por um lado, desenvolveram-se novos processos identitários e, por outro, permaneceram núcleos de identidades históricas muito antigas e complexas.

É pertinente assinalar, contra todo esse pano de fundo histórico e atual, que a questão da identidade na América Latina é, mais do que nunca, um projeto histórico, aberto e heterogêneo, não só, e talvez não tanto, uma lealdade com a memória e com o passado. Porque essa história permitiu ver que na verdade são muitas memórias e muitos passados, sem ainda um caminho comum e compartilhado. (QUIJANO, 2005, p. 27)

Não podemos perder de vista que, mesmo depois de haver conquistado autonomia política, a partir das guerras pela independência, herdou-se a dependência econômica. Nesse sentido, Túlio Halperin Donghi (2005) observa que toda América Latina teve dificuldade para encontrar um equilíbrio interno, capaz de absorver as consequências das alterações que a independência trouxe consigo.

Segundo Celso Furtado (1978), as nações surgidas nas terras de colonização ibérica das Américas procuravam realçar o traço individual de cada uma, num esforço de definição das próprias personalidades nacionais e não se preocupavam pelo que existia de semelhante entre elas, apesar de terem uma história e uma língua comum. Para Furtado (1978), foram os problemas surgidos a partir da crise de 1929 que abriram o caminho à formação da atual consciência latino-americana, por conta das dificuldades de abastecimento de produtos tradicionalmente importados.

Entendemos que a identidade, enquanto processo histórico-social, envolve o sentimento de pertencimento a um determinado grupo, em um processo resultante da experiência coletiva, em que está presente também a diferenciação do outro. Desse modo, a identidade não é um processo natural, ou seja, ela se concretiza na prática das relações sociais e necessita de elementos que aproximará as pessoas formando grupos identitários, e ao mesmo tempo os diferenciando de outros.

Portanto, é necessária uma consciência social, atrelada a um conjunto de traços culturais que, fortalecidos nas suas práticas cotidianas, configurarão tal identidade. Assim, "do ponto de vista da disciplina histórica, importa assinalar que as identidades não são aqui entendidas como essências ou entidades imutáveis, mas como processos incessantes de construção/reconstrução dos imaginários sociais" (BEIRED; BARBOSA, 2010, p. 8).

Nessa perspectiva, muitos literatos da América Latina preocuparam-se com a configuração identitária e histórica do "novo mundo" partindo, por um lado, de uma visão

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mais política e principalmente de compromisso social e, por outro, do pensamento mítico e simbólico inerente à América (PEREIRA, 2007). Com a formação das nações independentes e com o fim dos impérios português e espanhol na América Latina, a circulação de escritores, intelectuais e artistas entre os novos países se desenvolveu especialmente na América de língua espanhola. Cresceu também a presença de intelectuais e artistas, e aí inclusive brasileiros, na Europa, especialmente em Paris (AGUIAR, 2006). Neste ponto:

[...] vários escritores mesclaram, produtivamente, discurso histórico e poético em suas obras, aceitando a difícil missão de "reescrever" a história segundo uma visão mais próxima, isto é, de dentro das veias de seu próprio continente, em oposição àquela visão etnocêntrica e eurocêntrica a partir da qual o Novo Mundo foi "criado" nos séculos XV e XVI. (PEREIRA, 2007, p. 7)

Logo, a América Latina busca deixar de ser o "projeto da consciência alheia" para se tornar, ainda que com toda a dificuldade, um "projeto da consciência própria dos latino-americanos" (PEREIRA, 2007, p. 23). De qualquer maneira, a literatura teve um papel efetivo na constituição de uma consciência nacional e, assim, na construção das próprias nações latino-americanas, uma vez que muitos escritores estiveram engajados nas questões sociais e políticas.

José Martí (1853-1895), mártir da independência de Cuba, é umas das figuras mais expressivas no contexto da literatura latino-americana do século XIX, justamente por ser um dos primeiros intelectuais a perceber a necessidade de aproximar o fragmentado bloco latino-americano. O presente trabalho se propõe a examinar de que forma se dá essa busca identitária no discurso martiano, com destaque para o ensaio Nuestra América (1891), uma vez que utiliza a literatura como ferramenta de desenvolvimento de uma nova consciência, de resistência e reafirmação das culturas locais.

2. Nossa américa

O pensamento de José Martí não pode ser visto separadamente de sua militância política. O objetivo de promover a independência de Cuba e, por meio dela, deter o avanço do imperialismo norte-americano é o que vai delinear, definitivamente, a dimensão de seu pensamento de uma maneira mais ampla. O ápice desse pensamento é expresso no ensaio Nuestra América publicado na Revista Ilustrada de Nova York em 10 de janeiro de 1891 e no jornal mexicano El Partido Liberal, em 30 de janeiro do mesmo ano. A busca identitária nessa obra se pauta em dois pontos chaves: consciência e autoctonia. Martí percebe que só se construiria uma nova América a partir de uma tomada de consciência da condição social do continente. Essa consciência seria a arma adequada e eficaz para promover, inicialmente, a independência de Cuba e a partir dela uma segunda independência da América Latina.

Para tanto, seria necessário criar uma cultura própria que atendesse aos próprios problemas e, não mais, importar "soluções" externas, ou seja, pensar em um modo de vida alternativo, embasado em uma consciência anticolonial, fomentando a valorização das culturas locais perante o desprezo do olhar estrangeiro. Desse modo, reescrever a

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própria história ante a memória oficial possibilitaria, na visão de Martí, uma integração, não no sentido de federalismo do continente e sim da "alma continental" que resultaria na superação dos problemas herdados dos séculos de exploração colonial.

3. "Trincheiras de ideias": por uma consciência própria

No ensaio Nuestra América, Martí deixa clara a necessidade de iniciar um processo de integração da América Latina. No entanto, para que houvesse essa unidade, era preciso utilizar as armas adequadas, isto é, "las armas del juicio". Tais armas, na visão de Martí, seriam capazes de...

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