Sobre a justiça a que se busca acesso

AutorJuliano Napoleão Barros
Ocupação do AutorMestre e doutorando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Páginas163-172

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1. Considerações iniciais

O tema do acesso à justiça tem ocupado grande espaço no debate jurídico e sociológico hodierno. Sua relevância justifica-se pelo reconhecimento de sua conexão com a questão da cidadania - e, por decorrência, de sua coesão interna com a democracia - com o desafio de efetivação do Estado Democrático de Direito. Dito de outro modo, a atual reflexão sobre o acesso à justiça informa-se pela concepção de direitos fundamentais que exigem a democratização da sociedade na consolidação de condições aptas a viabilizar seu exercício e garantia - que por sua vez, são condições de possibilidade da democratização do corpo social.

Segundo Grynspan,

O forte interesse que o tema suscita guarda relação, em grande parte, com a sua importância ao mesmo tempo sociológica e social. De fato, o que se discute por seu intermédio é também a própria questão da cidadania - e da democracia, em última instância -, que mais do que direitos universais, legal-mente instituídos, requer a disponibilização e a generalização de recursos necessários ao seu exercício e garantia. Em outros termos, é a democratização do Judiciário que se põe em questão. Ainda que preocupados com as demandas ou com as carências da população, é sobre a justiça como instituição, e sobre a oferta de serviços judiciários de maneira geral, que os estudos do acesso fazem recair sua ênfase.1

De forma incontestável, a pesquisa contemporânea sobre o acesso à justiça não pode desconsiderar os estudos de Cappelletti e Garth e as chamadas "ondas renovatórias".2 Diante do reconhecimento de barreiras ao acesso dos cidadãos à justiça - representadas pelas custas processuais, pela desigualdade entre as partes e pela inadequação dos serviços jurídicos prestados frente às demandas coletivas e difusas - os autores se ocuparam de profunda pesquisa que disponibilizou, como resultado, a verificação de que nos países ocidentais desenvolvidos, os esforços de superação de tais barreiras se apresentaram em certa linearidade cronológica, permitindo sua sistematização em três etapas, ou ondas renovatórias do acesso à justiça. De modo sucinto, vez que não caracteriza objeto do presente artigo a abordagem detalhada das citadas "ondas renovatórias", o primeiro movimento de renovação corresponde à promoção da assistência judiciária gratuita, visando a assegurar o acesso à justiça aos necessitados. Por sua vez, a segunda onda diz respeito ao reconhecimento de interesses difusos. Finalmente, a terceira onda renovatória pretende englobar as anteriores, na promoção de um aprimoramento institucional, metodológico, pessoal e procedimental que disponibilize o processamento

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e a prevenção de conflitos na sociedade, no anseio de efetividade da tutela jurisdicional.

Na crítica da análise proposta por Cappelleti e Garth, destaca-se a interpretação de Kim Economides, professor da Universidade de Exeter, Inglaterra, que atuou juntamente com Cappelletti no Projeto Florença:

A estrutura analítica do Projeto de Acesso à Justiça de Florença foi desenvolvida em torno da metáfora de três ondas: a primeira refere-se à assistência jurídica, ou judicare; a segunda traduz-se pela justiça de interesse público (a articulação da representação de direitos coletivos mediante ações de classe e de interesse público); e, a terceira, conhecida hoje como "abordagem de acesso à justiça", inclui a justiça informal, o desvio de casos de competência do sistema formal legal e a simplificação da lei. [...] Mas estas reformas da "terceira onda" promovem o "acesso à justiça" ou o "acesso à paz"? [...] Talvez a metáfora das "ondas" seja simplista, mas serve para identificar fases cruciais dos desenvolvimentos, intelectual e político, produzidos por este importante movimento global de acesso à justiça3.

Para além das três ondas brevemente descritas, a doutrina passou a conceber novos movimentos de renovação do acesso à justiça, dentre os quais a descrição/proposta de uma "quarta onda"4, pelo citado professor Kim Economides, caracterizada pelo desafio de se assegurar acesso à justiça aos operadores do direito.

Diante da já clássica acepção das três ondas renovatórias, o professor inglês entende imprescindível novo movimento de renovação, especialmente no que repercute na concepção ética de justiça assumida pelos operadores do Direito.

O problema atual não é, simplesmente, medir o acesso dos cidadãos à justiça, lançando mão, por exemplo, do mapeamento de espaços na oferta dos serviços jurídicos, mas, antes, abrir novas perspectivas na definição da própria justiça. Dessa forma, proponho uma mudança importante, passando das questões metodológicas para as epistemológicas ou, colocando de outra maneira, redirecionando nossa atenção, desviando-nos do acesso para olharmos para a justiça com novos olhos. A que tipo de "justiça" os cidadãos devem aspirar? Em vez de nos concentrarmos no lado da demanda, devemos considerar mais cuidadosamente o acesso dos cidadãos à justiça do lado da oferta, analisando dois níveis distintos: primeiro, o acesso dos cidadãos ao ensino do direito e ao ingresso nas profissões jurídicas; segundo, uma vez qualificados, o acesso dos operadores do direito à justiça. Tendo vencido as barreiras para admissão aos tribunais e às carreiras jurídicas, como o cidadão pode se assegurar de que tanto juízes quanto advogados estejam equipados para fazer "justiça"? (grifo nosso)5

A partir do que afirma Economides, as exigências de mudanças que caracterizariam uma quarta onda renovatória do acesso à justiça concentram-se em dois temas. O primeiro, relativo ao acesso à educação jurídica. O segundo, relacionado à garantia de que os profissionais do direito tenham acesso à justiça, não se afastem dela.

Quanto ao primeiro tema, é oportuno o diagnóstico das barreiras de acesso à formação e, consequentemente, à carreira jurídica. Munido de tal análise, é impreterível o esforço público e privado pela promoção do acesso à profissão jurídica pelas minorias sociais. Nestes termos, nas palavras de Economides: "o acesso dos cidadãos brasileiros à carreira jurídica deveria ser olhado como uma importante dimensão, até mesmo uma precondição, para a questão do acesso dos cidadãos à justiça".

Já no que concerne ao segundo tema, qual seja, o do acesso à justiça por advogados, promotores, defensores e juízes, parte-se do entendimento de que as barreiras que distanciam os juristas da justiça são éticas. Neste cenário, a justiça deixa de ser percebida como possibilidade concreta, afasta-se da realidade como ideal inatingível, utópico e mesmo ingênuo. Neste contexto, a crise de confiança das instituições democráticas coincide com o descrédito dos advogados perante a sociedade, rotineiramente

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taxados de inescrupulosos, gananciosos, voltados ao lucro e alheios aos anseios de democratização e de efetivação de direitos individuais e sociais: apartados da justiça.

Desta feita,

A ética legal é vista como um paradoxo e a relação entre os advogados e a justiça é, quando muito, altamente problemática. Serão os advogados vistos em toda parte (no Brasil, inclusive?) como primordialmente motivados pela busca do lucro, e não pelo seu compromisso com a justiça e a prática ética? Caso positivo, será isto uma consequência da educação jurídica geralmente se concentrar em análises doutrinárias, em vez de contextuais, e endossar uma forte tradição positivista que separa rigidamente a lei da moral? Não seria o momento de começarmos, agora, a abrir um novo debate no interior das, ou particular às, definições de justiça, que conformam e determinam as prioridades desses serviços prestados pelos setores público e privado da profissão jurídica?6

No anseio de contribuir com o debate proposto, o presente artigo passa a se ocupar da ideia de justiça, propondo-se a disponibilizar subsídios para a revitalização ética da justiça como experiência própria daqueles que protagonizam o funcionamento da Justiça.

2. Subsídios para a revitalização ética da ideia de justiça7
2. 1 A afirmação da validade provisória das perspectivas individuais e histórico-sociais sobre a justiça

O desenvolvimento da comunicação e a decorrente intensificação das relações interculturais viabilizaram a problematização do ideal de justiça e de futuro proposto pela modernidade. Tornou-se patente o uso estratégico das utopias modernas e, concomitantemente, vislumbraram-se outras justiças e outros futuros possíveis além dos previstos taxativamente pela razão. No encontro das distintas visões de mundo, a percepção plural da multiplicidade das percepções fez inevitável a reflexão sobre a interação entre as diferentes perspectivas na assimilação da realidade em seus aspectos sociais e normativos.

José Ortega y Gasset descreve metaforicamente tal interação, tomando o exemplo de dois homens que, de pontos distintos, observam uma mesma paisagem:

De diferentes pontos de vista, dois homens olham para uma mesma paisagem. Porém, eles não vêem a mesma coisa. O fato de estarem distintamente situados faz com que a paisagem se organize diante de ambos de um modo diferente. O que para um ocupa o primeiro plano e acusa com vigor todos seus detalhes, para o outro está no último, borrado e escurecido. Também, como as coisas postas umas detrás das outras se ocultam total ou parcialmente, cada um deles perceberá porções da paisagem que não chega ao outro. Teria sentido que cada qual declarasse falsa a paisagem do outro? Evidentemente não; tão real é uma quanto a outra. Mas tampouco teria sentido que...

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