Breves Reflexões Sobre o Direito Penal do Inimigo

AutorGuilherme Rodrigues Abrão
CargoAdvogado criminalista. Mestrando em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Ciências Criminais (Rede LFG) e em Direito Penal Empresarial (PUCRS)
Páginas14-18

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Considerações iniciais

Inicialmente deve-se ter em conta que o direito penal pode ser analisado sob dois aspectos, em que por um lado se parte da sanção (pena), enquanto por outro lado o que se enfoca em primeiro lugar é a questão do ilícito, isto é, "ou se parte das consequências da norma penal, da pena, ou se parte do objeto da norma, o ilícito"1. Isto faz com que ao se pensar o direito penal a partir do ilícito se possa trabalhar com a natureza ontológica, cuja base repousa na ofensa a bens jurídicos que detenham dignidade penal, bem como na própria questão da ofensividade2.

Contudo, ao se analisar o direito penal, tomando como ponto de partida a pena, se chegará, inevitavelmente, às concepções funcionalistas acerca do direito penal, dentre elas, em contrariedade ao funcionalismo moderado de Roxin, o funcionalismo radical (ou sistêmico) de Jakobs, que dará margem e sustentará o chamado direito penal do inimigo.

É nesse viés funcionalista (radical / sistêmico) que Jakobs crê no fato de que o direito penal se justifica para garantir a vigência da norma (numa ideia de respeito ao contrato social) e de reprimir veementemente condutas perigosas, cometidas, por certo, pela temida figura do inimigo, contrastando-se, portanto, o direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo, e não sendo possível falar-se em bem jurídico (penal), bem como mitigando, até mesmo por completo, a questão da ofensividade em direito penal3.

1. O direito penal do inimigo

O direito penal do inimigo é assunto que foi tratado (e ainda é) por Jakobs há longos anos, mas sempre seu debate é atual. Tido como discípulo de Welzel, Jakobs abordou o tema, "de forma crítica", já em 1985, sendo que, posteriormente, em 1999, retomou o assunto, mas agora para sustentar "um direito penal parcial: aquele que se comporta como inimigo deve ser tratado como inimigo, como 'não pessoa' (Unperson)"4. E, o direito penal do inimigo ganhou força a partir dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 na cidade de Nova Iorque, tendo, consequentemente, reflexos na política criminal, senão de todos, da maioria dos países, ainda que não seja um tema recente5.

Este direito penal (do inimigo) é pautado a partir do conceito de "não pessoa", daquele que se afasta do direito, que não cumpre o contrato social no sentido de respeitar o ordenamento jurídico vigente e, portanto, é tido como uma constante fonte (ameaça) de perigo. A este inimigo não são reservados, muito menos observados, direitos e garantias fundamentais, mesmo que pressupostos básicos de uma ordem constitucional em um Estado que se diga democrático e constitucional de direito. É como bem afirma Silva Sánchez ao frisar que o direito penal do inimigo seria um direito penal de terceira velocidade (previsão de pena de prisão com a flexibilização de direitos e garantias fundamentais) e seria, portanto, na verdade um "direito do inimigo (...) o direito das medidas de segurança aplicáveis a imputáveis perigosos"6.

O inimigo é visto como um objeto, posto que é "não pessoa", mas mais: é objeto fonte de ameaça e de perigo que põe em risco a sociedade, a segurança, a ordem jurídica, enfim, põe em risco a própria vigência da norma. Apresentando o inimigo este risco, deixa ele de ser merecedor do status de cidadão e tem seus direitos e garantias tolhidos em nome desta (ilusão de) maior segurança pautada na "luta contra o terror". Assim, o inimigo "nega-se a si próprio como pessoa, aniquila a sua existência como cidadão, exclui-se de forma voluntária e a título permanente da sua comunidade e do sistema jurídico que a regula"7.

Isto tudo vem em total contraste com o direito penal do cidadão, em que são asseguradas as garantias e os direitos fundamentais, inerentes a um devido processo legal, na qual, como menciona Canotilho, "estrutura-se segundo um código de princípios de direito penal e de direito processual que agora encontram dignidade constitucional formal na maioria das leis fundamentais (princípio da legalidade, princípio da não retroactividade das leis penais, princípio de non bis in idem, princípio da inocência do arguido, princípio das garantias de defesa do réu, princípio do acusatório, princípio da reserva do juiz etc.)8.

Portanto, é possível estabelecer um parâmetro de similaridade do direito penal do inimigo para com a lógica da "desconstrução" (Derrida), onde, inclusive, se pode verificar que o fundamento desse (não) direito (?) calcado na figura do inimigo ('não pessoa') se afasta por completo do "núcleo essencial da questão humana fundamental - sua sobrevivência enquanto ser propriamente humano (o sentido propriamente dito do humano), portanto relacional, portanto intimamente imbricado às dimensões sociais de toda a ordem que tornam a vida humana possível", conforme se extrai do pensamento de Souza9.

Mas, quem são os cidadãos e quem são os inimigos? Como identificar o(s) inimigo(s)?

O próprio Jakobs estabelece que "quem não presta uma segurança cognitiva o suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas"10. Por seu

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turno, "só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento social, e isso como consequência da ideia de que toda normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real"11.

Ferrajoli, ainda que ao abordar a soberania no mundo moderno e não especificamente o tema em voga, traz um bom comparativo ao mencionar que "a figura do 'selvagem' vem identificar-se com a do 'estranho', na maioria das vezes inimigo, em alguns casos não humano ou semi-humano, mas sempre 'inferior'"12, onde então o inimigo é sempre o Outro, é sempre aquele que não está inserido em determinado círculo social, pois é, via de regra, um (não) ser ('não pessoa') excluído.

Ademais, pertinente as análises sobre a figura do inimigo calcadas no tratamento deste como homo sacer(Agamben), onde se pauta que "o inimigo, na medida em que se vê despojado dos seus direitos de cidadania, torna-se 'vida nua' submissa ao poder do soberano. Ele deixa de pertencer à esfera da 'pólis' (Direito Penal do cidadão) e passa à condição de homo sacer, à medida que o Direito Penal do Inimigo, enquanto guerra pura e simples, não pressupõe qualquer vínculo normativo. É capturado apenas na sua 'matabilidade'"13.

É dessa forma, em nome da luta contra o terror, tratando certos elementos como inimigos, como "não pessoas", que se cometerão as maiores atrocidades em busca de uma (falsa) ilusão de segurança e de combate ao terror. O que se pretende com o direito penal do inimigo é a eliminação de um perigo, de uma ameaça, o que, então, justifica (leia-se justificaria) intervenções até mesmo em atividades preparatórias, nas quais não mais se ressalta a culpabilidade, mas sim a mera periculosidade do inimigo.

Não é a toa que para Jakobs o direito penal "conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade"14.

Assim, há uma dicotomia enorme entre o direito penal do inimigo e o direito penal do cidadão. Para uns a indiferença, o preconceito, o rótulo de inimigo e de constante ameaça, perigo a tudo e a...

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