Breves Considerações sobre Direito Penal do Inimigo

AutorGisele Leite
CargoMestrado em Direito e pós-graduação em Direito Privado (UFRJ)
Páginas6-13

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Será mesmo possível existir um direito penal e um direito constitucional divorciados e calcados em novos paradigmas e baseados em novos pressupostos de fato?

A esta inquietação o artigo tenta responder, especulando e explanando sobre o direito penal do inimigo e ainda seus principais efeitos no ordenamento jurídico brasileiro.

A versão contemporânea da doutrina penal prestigia o direito penal do inimigo idealizado por Günther Jakobs1, que abertamente defendeu a necessidade imperativa de existir um direito penal direcionado aos cidadãos e outro direito penal que afirma ser voltado ao inimigo.

O normativismo funcional de Jakobs formulou a teoria da imputação objetiva, que passou a desenvolver uma tese do crime orientada para os fins do direito penal.

Enquanto a maioria dos doutrinadores coloca a dignidade da pessoa humana como centro do sistema, Luhmann e Jakobs fazem justamente o oposto e posicionam, no centro do sistema, a sociedade.

Para Jakobs pessoa é conceito eminentemente jurídico, sujeito de direitos e obrigações em obediência ao contrato social. A sociedade enquanto sistema de comunicação funciona por meio de nexos de expectativas, sendo que a norma nada mais é que expectativas de comportamento estabilizadas.

Quando o indivíduo não realiza seu papel social, há uma quebra de expectativa e o infrator ao delinquir desestabiliza o sistema, configurando-se a violação da norma, o que implica necessariamente a futura aplicação da pena.

O ponto crucial da tese da imputação objetiva refere-se exatamente a estes papéis que se relacionam com a função que o indivíduo desempenha em específico contrato social.

Na teoria de Jakobs a ação, uma vez ocorrida, transmuta-se em fato. Repudia então o doutrinador alemão a tese welzeniana2 de índole finalista e reafirma que a função do direito penal não é a proteção ao bem jurídico. Irá proteger as normas - e a culpabilidade é entendida como ruptura do sujeito como direito.

Günther Jakobs foi reconhecido como um dos mais brilhantes discípulos de Wezel e criou o radical funcionalismo sistêmico que aponta o direito penal dotado da função primordial de proteger a norma, e que apenas indiretamente tutela os bens jurídicos mais fundamentais.

Além da notável inflexibilidade punitiva, a tese de Jakobs também propõe a relativização dos direitos fundamentais, o que demonstra ser incompatível com o Estado Demo-crático de Direito e, mesmo assim, vem se alastrando no ordenamento jurídico pátrio.

Aliás, deve-se esta adesão à falta de eficiência das políticas criminais e ainda à falta de seriedade em

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se atender aos anseios sociais de pacificação eficaz e inclusiva.

Em meados da década de oitenta e em função da crescente criminalidade3, Günther Jakobs elaborou a tese de direito penal do inimigo, que visa melhor atender à sociedade e garantir a segurança através da atuação estatal mais contundente em combater o transgressor que insiste em ignorar e violar as normas penais.

É verdade que o direito penal do inimigo pugna pela severa aplicação das normas punitivas com a consequente eliminação dos direitos e garantias fundamentais e até mesmo as processuais, consagrando uma atuação estatal não exatamente contra o mero transgressor, porém, insurgindo-se contra um inimigo posto que não consiga manter-se fiel às normas.

Os inimigos são criminosos econômicos, terroristas, genocidas, delinquentes organizados, criminosos sexuais e toda sorte de infrações perigosas e de alto teor ofensivo.

O inimigo é quem insiste permanentemente em se afastar do direito e não oferece garantias cognitivas de que vai ser fiel às normas. Exemplifica Jakobs o fatídico dia 11 de setembro de 2001 como um típico ato de inimigo.

Elege-se o inimigo como aqueles sujeitos subordinados à legislação de exceção, definindo-se um evidente direito penal do autor, indiferente do grau de culpabilidade, reprovabilidade ou do bem jurídico afetado; seria então o agente pelo que é, desconsiderando-se o fato delitivo cometido.

Os adeptos aos minimalistas do direito penal gestaram um legislador que, na ânsia de oferecer célere resposta e de forma mais efetiva em face do pânico generalizado e a onda de crescente criminalidade, projetou leis esparsas que impõem cerceamento de garantias e punições exacerbadas aos autores, em desatenção à real culpabilidade dos transgressores, mais atinente somente às suas características pessoais como forma de promover a segura repressão.

No Brasil o direito penal do inimigo tem ganhado franca adesão e guarida até mesmo dentro do poder judiciário.

E, apesar de não significar a solução para a criminalidade contemporânea, traz à baila um ascendente punitivismo, que vem sendo praticado nas mais diversas esferas do governo, colocando sob séria suspeita a legitimidade do

Estado Democrático de Direito.

Para Jakobs a primordial função do direito penal seria a proteção da norma e, portanto, da sociedade, e só indiretamente a proteção de bens jurídicos.

Explica o doutrinador alemão que não é possível obter a pacificação social através do direito penal tradicional, sendo indispensável o direito penal de exceção, que se obstina em restabelecer e proteger a norma jurídica.

Ainda, continua explanando que não denomina o criminoso como pessoa, posto que os transgressores justifiquem sofrer maior rigor na punição e execução da pena como forma de mantê-los fora da sociedade sem ter vistas à ressocialização ou reinserção social.

Há três pilares que sustentam o chamado direito penal do inimigo, a saber:

  1. a necessidade de antecipação da punição do inimigo -, não importa o cometimento fático de qualquer crime -, sendo puníveis inclusive os atos preparatórios mesmo que não signifiquem crimes autônomos, em modelo oposto ao que vige atualmente no Brasil;

  2. desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de certas garantias processuais. Para Jakobs, as penas são eficazes quando puderem extirpar da sociedade o indivíduo perigoso, ou seja, o inimigo;

  3. a criação de leis mais severas direcionadas diretamente aos inimigos. Portanto, ter-se-ia dois direitos penais materiais e diametralmente opostos, um referente ao cidadão comum (Bürgerstrafrecht) onde prevalecem todos os direitos processuais e a integralidade do princípio do devido processo legal e um direito penal aplicável ao inimigo (Feindstrafrecht) com pesadas penas dirigidas aos que atentam contra o Estado, indo desde a coação física até o estado de guerra, objetivando o restabelecimento da norma, apartando o inimigo do seio da sociedade, bem como servindo de intimidação para outras pessoas.

    Busca punir não apenas os fatos pretéritos mas igualmente os fatos futuros, daí dizer que é um direito penal prospectivo, em oposição a um direito penal preventivo. Portanto, segundo a tese de Jakobs não há distinção entre o conceito de cidadão e pessoa, de forma que igualmente não separa os direitos inatos da pessoa humana, dos direitos do cidadão.

    Todavia, é forçoso reconhecer que ser humano não se refere a

    O NORMATIVISMO FUNCIONAL DE JAKOBS FORMULOU A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA, QUE PASSOU A DESENVOLVER UMA TESE DO CRIME ORIENTADA PARA OS FINS DO DIREITO PENAL

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    uma qualidade que possa ser retirada do agente, sendo pois inata característica bem como os direitos a esta inerentes.

    Acredito que a base filosófica de Jakobs está nas obras de Rousseau e Fichte principalmente quando define como inimigo aquele que rompe com o contrato social, e o criminoso por não se adaptar à sociedade pode ter sua qualidade e direitos de cidadão suprimidos.

    No direito penal do inimigo o ordenamento jurídico está preocupado com a completa eliminação daqueles eleitos como inimigos, em oposição ao cidadão comum, esquadrinhando uma autêntica guerra na qual os direitos e garantias são relativizados, flexibilizados e até mesmo por vezes suprimidos.

    Ocupa-se com a aplicação da punição do autor que é o inimigo e não apenas do fato infrator da norma. Há doutrinadores que acre-ditam tratar-se de um novo movimento lombrosiano embora apontados por Lombroso buscando a punição antecipada e preventiva, o que é justificável por ser perpetrado por não pessoas (Feinde sind aktuelle Unpersonen).

    O direito penal do inimigo é igualmente criticado por Claus Roxin (que defende um funcionalismo moderado) e ainda pecha a tese de Jakobs de "direito penal simbólico".

    Veemente, Roxin4 aponta que a tese tende a beneficiar certos grupos políticos ou ideológicos e a apaziguar o cidadão, fazendo-o crer que medidas positivas...

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