Breve ensaio sobre direito, justiça e ativismo judicial

AutorMárcio Tokars
Páginas167-182

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Ver Nota1

“Acho que o único momento em que as pessoas pensam em injustiça é quando acontece com elas.”

(Charles Bukowski)

Quando concluí o curso de direito, ouvi do meu pai uma história muito interessante que ele sabiamente ocultara até então. Ele, um homem de filosofia e letras, que também se aventurou no curso de direito, no qual, já no início, ouviu de um renomado catedrático que direito e justiça não são a mesma coisa. Então, ele, que na inocência da juventude acreditava que os professores sempre têm razão, decepcionado, abandonou o curso e seguiu outro caminho. Agora, tanto tempo depois, o mesmo dilema continua em pauta, porém atormentando toda a nação.

Nesta época de delações a prostituta das provas foi canonizada e surgem medidas judiciais extremas, fundamentadas no sentimento popular de impunidade, que estaria supostamente incentivando a criminalidade. A suposta ineficácia das leis, principal-mente as processuais, parece condenar à morte o estado de direito pela sua virtual incapacidade de implementar políticas públicas eficientes. A lógica da falácia punitivista parte do pressuposto de que o Estado está impotente diante da criminalidade e da corrupção, para concluir que o único meio de enfrentar isto é tolerar que se vá além da “cartilha”, subvertendo-se a importância do “clamor

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público” no processo penal, como se este fosse sua diretriz principal.

É o momento de se refletir seriamente sobre a influência da opinião pública na hermenêutica jurídica. A palavra “opinião” vem do latim, significando conjectura; crença ou reputação; tudo que se espalha pela palavra; aquilo que se ouve falar, ou seja, é tudo aquilo que se pensa pela cabeça dos outros. Nos dicionários de filosofia a origem grega do termo (doxa) se refere às conjecturas populares; às ideias confusas acerca da realidade e que se opõem ao conhecimento verdadeiro, como sinônimo de erro. A fé é reservada às certezas metafísicas, ao contrário das certezas processuais, que exigem lastro objetivo. Por isso, o processualista Geraldo Prado afirma que a “convicção judicial deve ser situada teórica e idealmente no polo oposto da crença”. Portanto, o livre convencimento do juiz não é absoluto, mas sim relativo, pois só pode emergir de fundamentos jurídicos e jamais do senso comum, de experiências pessoais ou notícias de jornais.

A opinião é a manifestação leviana, pueril e superficial sobre algo que se conhece de longe. É o palpite irresponsável que sempre vem depois de um “eu acho”, ou “eu acredito que”. É assim que os leigos julgam os julgadores. São fileiras de amadores erigindo os templos da verdade com tijolos de mentira. O clamor público é senso comum, que é muito diferente e mais frágil que o jurídico, mas qualquer cidadão tem direito às próprias convicções porque a lei garante tal liberdade; ou seja, muitos têm direito ao senso comum graças ao senso jurídico de poucos. Ao cidadão comum cabe a liberdade de pensar o que quiser, ou até mesmo de não pensar, optando pela ignorância, mas os agentes públicos têm a obrigação profissional de buscar a verdade somente pela técnica, conforme os princípios da eficiência e da impessoalidade. Desse modo, mesmo sendo tudo naturalmente politizado na vida em sociedade, a jurisdição não pode sê-lo. Nela, só cabe a técnica, e uma opinião pessoal jamais poderá ser o fiel da balança. A pessoalidade que move o senso comum é proibida aos julgadores, justamente para preservar o interesse público maior, que é a ordem jurídica.

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A banalização da acusação é a contramão da civilização, pois onde todos são suspeitos de tudo e os justos têm que provar que o são, não há mais solução que não seja a ilusão. Infelizmente essa hipnose coletiva é um fenômeno mundial e quanto mais subdesenvolvido é um povo, mais ele precisa de demônios e vilões, para lhes transferir a culpa pela incompetência generalizada. Os fracos precisam de heróis para depositar neles a esperança de salvação. Sob o viés psicanalítico, eles sucumbem à autopiedade neurótica e buscam mecanismos de defesa para suportar a frustração e motivos para justificar a preguiça, cultuando uma luta imaginária entre o bem e o mal, com promotores e juízes paladinos atuando como anjos alados sobre tudo e sobre todos, ao invés de desenvolver soluções dignas e efetivas para problemas históricos. todavia, embora seja uma doce ilusão, admitir heróis com poderes acima do sistema para combater os vilões que estão fora dele é uma lógica suicida, segundo a qual é preciso criar monstros para combater outros monstros.

A sensação da impotência punitiva tem caráter político, pois deriva do senso comum e deve ser considerada como uma dire-triz menor diante de outras preponderantes, como a legalidade, o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a impessoalidade, a dignidade, a isonomia e a presunção de inocência, todos princípios constitucionais que não se pode olvidar pela sedução do pragmatismo judicial, tautológico e solipsista, em que o juiz paladino coloca a subjetividade à frente da objetividade, permitindo que as conclusões abstratas sejam postas à frente da comprovação empírica da essência dos fenômenos.

O direito só autoriza a coerção estatal porque a sua racionali-dade é objetiva, ou seja, não é um sistema moral, teológico nem político. A ideologia do magistrado não pode se colocar acima do direito positivo, sob pena de ficar à mercê do populismo judicial, como se fosse dado ao Poder Judiciário dizer as leis e não o direito. Aqueles que defendem a politização da jurisdição e criticam os

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juízes legalistas esquecem que a outra opção não é compatível com o estado democrático de direito.

A missão da justiça não é ser politicamente correta, pois toda decisão desagrada pessoas ou grupos sociais. Ademais, esperar soluções políticas pela via judicial seria a negação da isenção da magistratura a bem de determinados indivíduos ou segmentos da sociedade, em detrimento de outros. O ativismo judicial não fortalece, mas, ao contrário, desmoraliza o Poder Judiciário. Faltar com a imparcialidade não é afirmação da autoridade, mas sim a negação daquilo que a legitima.

O juiz não é investigador, mas destinatário da investigação, conforme o princípio acusatório. Os poderes do juiz são expressos e limitados porque seria impossível cumprir a lei descumprindo-a. Não há solução fácil para problemas difíceis e sonhar com super--heróis togados e julgamentos sumários é uma tola ilusão. O dever de cautela recomenda que diante das maiores acusações se exija uma prova ainda maior. A mera gravidade da acusação não pode ofuscar a necessidade da prova, alimentando a mesma neurose fascista do passado medieval, quando todos tinham certeza que queimavam bruxas.

O culto à crítica criou um ambiente onde rivais têm que ser inimigos; onde os “donos da razão” esquecem que, pelo simples fato de não permitirem a expressão da razão alheia, perdem a própria. Isso se chama...

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