Brazilian Constitutional Court on a gendered perspective: decision, access and speech/O Supremo Tribunal Federal em uma perspectiva de genero: merito, acesso, representatividade e discurso.

AutorGomes, Juliana Cesario Alvim
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

O principal argumento para justificar que, por meio do controle de constitucionalidade, um orgao nao eleito do Judiciario possa derrubar decisoes proferidas por poderes eleitos (como leis proveniente do Poder Legislativo e atos normativos da Administracao Publica) e o de que, por nao atuar em segundo a logica eleitoral, seria uma instancia capaz de assegurar, ainda que contramajoritariamente, os direitos e principios entrincheirados na Constituicao. Nesse sentido, as cortes constitucionais poderiam funcionar, a despeito das paixoes politicas, como uma arena de protecao de minorias politicas.

Embora essa atuacao seja frequentemente destacada para lhes atribuir legitimidade e para justificar uma postura ativista por parte das cortes constitucionais (1), na pratica, nem sempre esses tribunais funcionam como um espaco acolhedor a grupos socialmente oprimidos, marginalizados e estigmatizados. Exemplo comumente utilizado e o do julgamento da Suprema Corte do Estados Unidos em que se negou a liberdade pleiteada por homem negro escravizado que havia sido levado para territorios em que a escravidao havia sido abolida, afirmando-se que negros e seus descendentes nao poderiam ser considerados cidadaos. (2) Nesse sentido, a analise da jurisprudencia de um tribunal constitucional e fundamental para a avaliacao do desempenho de suas tarefas institucionais, notadamente a protecao de direitos de minorias politicas.

Pretendo defender no presente artigo, contudo, que a atuacao das cortes em prol dos direitos fundamentais de minorias nao deve ser avaliada tomando-se por base apenas sua jurisprudencia, isto e, o merito do conjunto de decisoes proferidas. E preciso, igualmente, levar em conta outros importantes aspectos relativos ao funcionamento dessas cortes, como o tratamento que conferem cotidianamente as populacoes minoritarias, seja sob a forma do discurso que utilizam, seja no que tange a sua permeabilidade a esses grupos.

Sustento, a partir de reflexoes desenvolvidas a partir de estudos feministas, que, para que possa ser considerada protetiva em materia de genero, uma Corte como o Supremo Tribunal Federal simultaneamente devera (i) levar a julgamento e decidir, em termos de conteudo, favoravelmente aos direitos de genero pleiteados; (ii) ser acessivel para que os grupos minoritarios interessados (in casu mulheres (3) e pessoas trans) possam levar-lhe seus pleitos e integrar seus quadros; e (iii) respeitar em suas praticas e discursos os grupos em questao.

A luz dessa perspectiva, buscarei evidenciar certos aspectos do tratamento conferido pelo STF a questoes relativas a genero e suas limitacoes, propondo alguns caminhos para reflexao.

  1. Feminismo e genero: algumas premissas

    Os estudos de genero podem ser observados por dois vieses. Sob a perspectiva descritiva, buscam evidenciar os mecanismos por meio do qual a nocao de genero atua nas relacoes humanas, na percepcao do conhecimento, na estrutura das instituicoes etc. Prescritivamente, visam a romper com hierarquia existente que favorece o sexo masculino sobre o feminino.

    Ao longo do tempo, essas analises tem partido de duas abordagens distintas. A primeira, pressupoe a existencia de uma feminilidade universal, de origem biologica ou psicanalitica, frequentemente exaltando-a (4), a outra, de vies culturalista, pugna a existencia de fatores sociais e historicos responsaveis para justificar a diferenciacao entres os generos feminino e masculino. (5)

    Essa segunda visao, longe de considerar a origem social do genero como fundamento para uma suposta fragilidade ou plasticidade da categoria, reitera seu papel determinante na construcao dos sujeitos e das estruturas sociais. (6) Nesse sentido, abre a possibilidade para avaliar em que medida os discursos cotidianos constituem as relacoes de genero. Para alem a identificacao de genero dos emissores, assinala como a forma por meio da qual o discurso e produzido (se por meio de antagonismo, solidariedade ou, por exemplo, deferencia) contribui para essa significacao. (7) Alem de identificar quem fala, chama atencao para como se fala. Assim, a facilidade com que homens interrompem a fala de mulheres e buscam ter controle sobre suas ideias sao exemplos de como a organizacao da fala promove desvantagens as mulheres (8) e constituem nao apenas meros discursos flutuantes e episodicos discriminatorios, mas elementos que se cristalizam em significados e normas. (9) O problema, longe de ser meramente intersubjetivo e estrutural, ou seja, esta nao apenas nas relacoes travadas entre sujeitos (frequentemente hierarquizadas), mas na organizacao social que se da a partir de uma logica sexista. (10)

    Assim, as hierarquias de genero sao institucionalizadas em instancias e orgaos que aplicam sistematicamente o "bias masculino". Um exemplo dessa pratica se da na selecao e promocao de pessoal (11) e e ilustrada pelo significativo incremento no ingresso de mulheres na magistratura no Brasil a partir de 1996, quando se passou a nao identificar nominalmente as provas para ingresso na carreira. (12) Aprofundando o olhar para o Estado, analises feministas denunciam que a tradicional cisao entre esferas publica e privada tem sido responsavel por blindar a esfera domestica dos influxos liberais de liberdade e igualdade e por ocultar as opressoes que ocorrem nessa esfera. (13) Por outro lado, a vinculacao das mulheres ao ambito domestico tem consequencias tanto culturais e simbolicas (veja-se os estereotipos relacionados a feminilidade) quanto economicas (salarios inferiores aos dos homens, trabalho nao pago, jornada dupla, por exemplo) e acaba por produzir sua exclusao dos espacos de tomada de decisoes politicas e sociais. (14)

    Esse processo ocorre de maneira distintiva de acordo a incidencia de outros marcadores social de exclusao como etnia e raca, orientacao sexual e classe, o que gera a necessidade de assegurar visibilidade para as experiencias concretas de genero, levando-se em conta tais peculiaridades, e buscando-se, ao mesmo tempo, articula-las com uma demanda universal maior que possibilite uma mudanca politica. (15) Nesse ponto, o feminismo negro chama atencao para o fato de que o machismo e vivido de maneira especifica pelas mulheres negras (que, por exemplo, jamais se reconheceram no "mito da fragilidade feminina") e que o racismo "determina a propria hierarquia de genero em nossa sociedade". (16) Nesse mesmo sentido, o chamado feminismo pos-colonial ou do terceiro mundo, rejeita a universalidade do uso da categoria "mulher", considerando o discurso do chamado "feminismo de ocidente" o reflexo de uma construcao colonizadora "reducionista e homogenea". (17)

    Outro aspecto importante e a aproximacao dos estudos de genero das discussoes relativas a sexualidade e dos debates acerca da necessidade de desconstrucao do proprio sexo biologico, que, em ultima instancia tambem seria um produto social, e da matriz heterosexista, intrinsecamente relacionada a opressao da mulher. (18) Tais discussoes tem inumeros desdobramentos, sendo de extrema importancia, para o debate sobre identidade de genero de homens e mulheres trans.

    Do ponto de vista do estudo do Direito, tais estudos aportaram e continuam aportando relevantes contribuicoes. Alem de sugerir novos metodos para a analise juridica, trazem para a pauta temas invisibilizados, como a questao da violencia domestica, e desmistificam abordagens tradicionais relativas a certos assuntos, como por exemplo a pornografia. (19)

  2. Jurisprudencia de genero do Supremo Tribunal Federal

    A luz das reflexoes acima, um primeiro aspecto que deve ser analisado a fim de se verificar o alinhamento do Supremo Tribunal Federal com a agenda de direitos relacionados ao genero e sua jurisprudencia, isto e, e preciso verificar como se expressa o conteudo substantivo de suas decisoes sobre a materia. Em outras palavras, e necessario identificar se e em que medida as decisoes da Corte fazem avancar a protecao e a promocao de tais direitos. Conforme se depreende das decisoes proferidas em plenario apos a edicao da Constituicao de 1988, o Supremo se deparou com o tema em algumas oportunidades. (20)

    O primeiro caso relativo a genero julgado pelo Supremo Tribunal Federal foi uma acao em controle abstrato de inconstitucionalidade, julgada em 2003, em que se discutiu os limites de dispositivo previsto na emenda constitucional n. 20 de 1998, que fixou um teto para o valor dos beneficios do regime geral de previdencia social, cujo excedente seria pago pelo empregador (ADI 1946, Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, julgado em 03/04/2003). Na ocasiao, o tribunal, em argumentacao sucinta, excluiu da aplicacao do referido teto o salario da licenca gestante, constante do art. 7, inciso XVIII, da Constituicao Federal. Nos termos da ementa,

    (...) Na verdade, se se entender que a Previdencia Social, doravante, respondera apenas por R$1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mes, durante a licenca da gestante, e que o empregador respondera, sozinho, pelo restante, ficara sobremaneira, facilitada e estimulada a opcao deste pelo trabalhador masculino, ao inves da mulher trabalhadora. Estara, entao, propiciada a discriminacao que a Constituicao buscou combater, quando proibiu diferenca de salarios, de exercicio de funcoes e de criterios de admissao, por motivo de sexo (art. 7, inc. XXX, da C.F./88), proibicao, que, em substancia, e um desdobramento do principio da igualdade de direitos, entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5 da Constituicao Federal. Estara, ainda, conclamado o empregador a oferecer a mulher trabalhadora, quaisquer que sejam suas aptidoes, salario nunca superior a R$1.200,00, para nao ter de responder pela diferenca. Nao e crivel que o constituinte derivado, de 1998, tenha chegado a esse ponto, na chamada Reforma da Previdencia Social, desatento a tais consequencias. Ao menos nao e de se presumir que o tenha feito, sem o dizer expressamente, assumindo a grave responsabilidade. (...).

    Nesse caso...

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