A boa-fé objetiva e a proteção da confiança legítima

AutorCaroline Vasconcellos Martins
CargoBacharelanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Páginas182-191

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I Introdução

Nas últimas1 décadas, houve uma profusão de publicações sobre a constitucionalização comportada pelo direito civil a partir do momento em que foram reconhecidas força normativa e superioridade hierárquica aos preceitos, sejam regras ou princípios, trazidos pela Constituição. Trata-se de tema esmiuçado por autores de peso, os quais também se referem à fragmentação do direito civil, decorrente da necessidade de edição de leis especiais para responder aos apelos da sociedade pós-moderna, uma vez que esta se caracteriza pela ponderosa presença de setores socioeconômicos particularizados, cujos anseios são voláteis 3 . Nesse contexto, são frequentes as considerações acerca da publicização das relações jurídico-privadas, porém é cabível indagar em que medida não haveria, igualmente, uma privatização do direito público.

A resposta para esta questão é afirmativa, sobretudo quando se abordam situações como a busca do consensualismo nos contratos administrativos, a aplicação de critérios de economia concorrencial a empresas estatais, a expansão da responsabilidade civil do Estado, entre outras. Não obstante, tais hipóteses apresentam limites precisos e podem ser ditas pontuais, em vista da infuência bem maior que o direito civil exerce sobre todo o ordenamento, não já por ocupar uma posição privilegiada, como quando se pretendiam congregar temas interdependententes e “mantê-los todos no arcabouço de um Código” 4 , e sim pela expansão de princípios como o da boa-fé objetiva.

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Segundo Francisco Amaral, a constitucionalização “significa que os princípios básicos do direito privado emigram do Código Civil para a Constituição, que passa a ocupar uma posição central no ordenamento jurídico, assumindo o lugar até então privilegiadamente ocupado pelo Código Civil5 . Embora não se encontre expressamente prevista na Constituição, a boa-fé objetiva já é majoritariamente considerada como um princípio constitucional implícito, que se aplica além do direito contratual e do próprio direito privado 6 . Mesmo se assim não o fosse, pretendemos demonstrar ter o princípio conquistado tamanha eficácia, que se tornou oponível aos três Poderes, ainda que por vias indiretas.

Que vias indiretas seriam essas? Trata-se da presença da boa-fé, tanto na sua vertente subjetiva, quanto na objetiva, como um dos elementos integrantes de princípio construído recentemente e com forte atuação na esfera pública por ser especificamente voltado para a tutela do administrado: a proteção da confiança legítima. Este é um princípio constitucional extraído da garantia da segurança jurídica, portanto deve ser respeitado pelo Executivo, pelo Judiciário e, o que traduz posicionamento unânime dos juristas brasileiros em tema controvertido, pelo Legislativo. Ademais, em virtude da conjugação com outros pressupostos da proteção da confiança, a incidência da boa-fé objetiva se dá de maneira concreta, com precisão e para além da tríplice função construída pelos civilistas.

II Objetivos

Intenta-se explorar as potencialidades do príncipio da boa-fé objetiva como elemento unificador do ordenamento jurídico 7 . Para isso, toma-se como ponto de partida a tríplice função 8 que pauta, nas relações jurídicas privadas, o emprego da boa-fé objetiva, paraPage 184pesquisar se esta encontraria aplicação igualmente criteriosa se transportada para o domínio publicista.

Porém, não se trata meramente de observar a incidência da boa-fé objetiva nas relações de direito público, que é admitida pela doutrina majoritária e encontra até supedâneo legal nos arts. 2º, parágrafo único, IV e 4º, II, da Lei nº 9.784/99; trata-se, sim, de mostrar como esse emprego da boa-fé amadureceu quando se associou aos parâmetros bem definidos ofertados pelo princípio da proteção da confiança.

Destarte, outro desiderato é verificar se a boa-fé objetiva encontrou meios de opor-se também aos futuros legisladores, mesmo em face de quem não queira conferir a ela um status constitucional. Com isso, não restaria dúvidas sobre a posição da boa-fé objetiva como um dos principais liames a conferirem caráter unitário ao ordenamento jurídico.

III Resultados

Desde que, na Alemanha de meados do século XX, se iniciaram discussões sobre a proteção da confiança legítima, há posicionamento que pretende fundamentá-la na boa-fé objetiva. Não obstante os dois princípios tenham por base o valor da confiança, eles apresentam características próprias, não se devendo afirmar que um deriva do outro, mas que ambos se reforçam. Conferindo a doutrina tedesca, Valter Schuenquener explica:

“O princípio da boa-fé objetiva teria aplicação sempre que existisse uma relação jurídica específica e de efeitos concretos. PETER HAAS, por exemplo, exclui seu emprego quando faltar uma relação jurídica especial (...). Já o princípio da proteção da confiança não exigiria esse fator limitador. (...) Uma outra diferença diz respeito a quem pode fazer uso dos dois princípios. (...) O princípio da boa-fé objetiva teria, como destaca PETER HAAS, ao analisar seu emprego no Direito Tributário, aplicação não só em favor dos sujeitos passivos tributários (Steuerpflichtiger), mas também dos órgãos públicos com competência nessa matéria (Finanzbehörde). No entanto, segundo defende o referido jurista, o princípio da proteção da confiança sóPage 185ofereceria proteção num único sentido: em favor do particular que se relaciona com o Estado” 9 .

De fato, a proteção da confiança legítima apresenta um viés protetivo do administrado. Por isso encontrou maior expansão no direito público que o princípio, de cunho nitidamente privatista, da boa-fé objetiva 10 . Por sua vez, a possibilidade de ter por objeto não apenas relações jurídicas concretas, como também genéricas, permite que o princípio da proteção da confiança alcance o plano do poder normativo da Administração e, o que se discute mais, do Legislativo. A este respeito, posiciona-se Humberto Ávila:

“Em primeiro lugar, a expectativa pode ser produzida em razão de ato jurídico de cunho geral, impessoal e abstrato. (...) Quando um ato normativo, com validade presumida, cria, na esfera jurídica do particular, uma razoável expectativa quanto ao seu cumprimento, há incidência do princípio da proteção da confiança. Em segundo lugar, a expectativa pode ser formada em razão de ato jurídico de cunho individual, pessoal e concreto. Isso ocorre quando o Poder Público tem contatos individuais com os particulares, especialmente por meio de atos administrativos, que instituem uma relação concreta de confiança na Administração, por meio de seu representante, quanto ao seu cumprimento. (...) Quando um ato administrativo cria uma expectativa para o particular quanto ao seu cumprimento, há incidência do princípio da boa-fé objetiva” 11 .

Assim, a proteção da confiança não pode ser extraída da boa-fé objetiva, princípio em relação ao qual possui objeto mais amplo. É corolário do Estado de Direito,Page 186conforme já reconheceram Tribunais Constitucionais como o alemão 12 e o brasileiro, e encontra fundamento no princípio da segurança jurídica. A tendência de fazer repousar a proteção da confiança na boa-fé objetiva pode ser melhor explicada apenas por uma perspectiva histórica, pois...

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