A Boa-Fé no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor

AutorAlessandra Cristina Furlan/Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador/Simone de Paula Molinari
CargoMestre Universidade Estadual de Londrina (UEL)/Doutoranda em Direito Civil Universidade Federal do Paraná (UFPR)/Acadêmica do curso de Direito Universidade Norte do Paraná (UNOPAR)
Páginas73-80

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1 Introdução

O Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406, de 10.01.2002) rompeu com o paradigma liberalista, em que imperava o individualismo e a preocupação patrimonialista. Adotou a concepção social e instituiu como núcleo principal a pessoa humana, em consonância com a tábua axiológica da Constituição Federal de 1988.

O contrato, no cenário pós-moderno, volta-se à sua função social e à preocupação com os Direitos Fundamentais do Homem. Assim sendo, uma das importantes alterações trazidas pelo Código Civil de 2002 foi a previsão da cláusula geral da boa-fé objetiva, um dos princípios norteadores de todas as relações obrigacionais. Através dessa boa-fé objetiva e da função social do contrato, a autonomia da vontade deixa de ser absoluta para receber limites em prol dos interesses sociais, da proteção do equilíbrio e justiça contratual.

Nada obstante, anteriormente ao Código Civil de 2002, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.1990) não só prestigiou a regra da boa-fé objetiva em dois de seus artigos (art. 4º, III e 51, IV), como também a tutelou implicitamente em muitos outros dispositivos.

Portanto, a boa-fé é um dos pilares das relações contratuais, consistindo em um desdobramento dos princípios constitucionais fundamentais: dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade substancial.

O presente estudo tem por objetivo a análise da boa-fé objetiva no âmbito civil e consumerista. Para tanto, adota como premissa a perspectiva constitucional de contrato.

Igualmente, abandona-se a idéia de sistema fechado de instituições e normas, onde todo o caso pode ser enquadrado num determinado conceito formulado hipoteticamente, para adotar uma concepção de sistema aberto. Pela técnica legislativa das cláusulas gerais, oferece-se maior flexibilidade e capacidade de expansão do sistema, a fim de atingir a integração do ordenamento jurídico com os diversos elementos sociais, econômicos e culturais existentes (SLAWINSKI, 2002).

Outrossim, mais do que verificar o cumprimento dos requisitos formais para a validade dos negócios jurídicos caberá ao intérprete apreciar o conteúdo da relação contratual, analisando o equilíbrio entre prestações e contraprestações resultantes do contrato (AMARAL JÚNIOR, 1993). Analisar, pois, se as partes procederam com probidade e boa-fé.

O presente estudo é dividido em partes. Inicia o trabalho com a noção de princípio e diferenciação entre princípios e regras. Recorre às fontes históricas e ao Direito Comparado. Analisa as cláusulas gerais e diferencia boa-fé objetiva e subjetiva. Enfim, procede-se o estudo da boa-fé objetiva como cláusula geral e suas funções.

Apesar da divergência entre os estudiosos sobre a natureza jurídica da boa-fé objetiva, em face da impossibilidade de maior aprofundamento da questão neste trabalho, reconhece-

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se a boa-fé objetiva como um princípio jurídico, em conformidade com a doutrina majoritária e a jurisprudência.

Diante do que foi exposto até o presente momento, o trabalho traça algumas considerações sobre a boa-fé objetiva, sem a pretensão de esgotar o assunto. E para o seu desenvolvimento foi utilizado o método dedutivo, com consulta e análise da legislação e material doutrinário constante em livros, artigos e periódicos. Desta forma, tem por base a pesquisa legislativa e bibliográfica, apresentando diversos posicionamentos a respeito do assunto e extraindo-se conclusões.

2 Princípio

Para que seja possível a análise da boa-fé objetiva impõe que se precise qual o significado de princípio e sua função entre princípios e regras.

Canotilho (2003, p. 1159) afirma ser o sistema jurídico "um sistema normativo aberto de regras e princípios". A norma é gênero que comporta duas espécies: regras e princípios. Ambos (princípios e regras) são dotados de igual normatividade.

Segundo Oliveira (1997, p. 43), os princípios são:

Mandatos de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diversos graus e porque a medida ordenada de seu cumprimento não apenas depende das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O campo das possibilidades jurídicas encontra-se determinado através de princípios e regras que jogam em sentido contrário.

Nesta esteira, Canotilho (2003) entende que os princípios são normas jurídicas impositivas de uma otimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoantes os condicionalismos fáticos e jurídicos, ou seja, os princípios "são normas que ordenam algo que deve ser realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes" (SANTOS, 1998, p. 111).

A Teoria Geral do Direito diferencia princípios e regras. Como acima disposto, ambos apresentam igual normatividade. Nada obstante, enquanto os princípios são pautas genéricas, não aplicáveis à maneira de "tudo ou nada", que estabelecem verdadeiros programas de ação para o legislador e para o intérprete, as regras são prescrições específicas que estabelecem pressupostos e conseqüências determinadas. A regra é formulada para ser aplicada a uma situação jurídica específica, elaborada por um determinado número de atos ou fatos. O princípio é mais geral que a regra porque comporta uma série indeterminada de aplicações. Os princípios permitem avaliações flexíveis, não necessariamente excludentes, enquanto as regras, embora admitindo exceções, quando contrariadas provocam a exclusão do dispositivo colidente (AMARAL JÚNIOR, 1993).

O Código Civil de 2002 estabeleceu como princípios basilares o da eticidade, da socialidade, da praticidade e da operabilidade (DELGADO, 2007). E a boa-fé objetiva está diretamente relacionada com esses princípios adotados pelo Código Civil de 2002, como se passa a demonstrar.

Antes, porém, salienta-se que o Código de Defesa do Consumidor elenca vários princípios próprios para o equilíbrio nas relações de consumo, como os princípios da vulnerabilidade, da boa-fé, da harmonia, da transparência, da proteção governamental, princípio da informação, todos estes relacionados (MARTINS, 2002).

Nesse sentido, oportuna a lição de Slawinski (2002, p. 116) que explica:

Os tecidos normativos do Código Civil e da legislação especial devem ser informados pelos mesmos princípios, estando ambos, por conseguinte, condicionados, vinculados, instrumentalizados, ao projeto constitucional e aos princípios por ele consagrados.

Em suma, atualmente, a boa-fé objetiva encontra previsão expressa tanto no Código Civil de 2002 como no Código de Defesa do Consumidor1. Mas nem sempre essa previsão foi expressa. Para uma análise e compreensão da boa-fé objetiva recorre-se, inicialmente, à consulta das fontes históricas.

3 Evolução Histórica

O Direito Contratual apresenta princípios próprios que o regem: os clássicos (princípio da autonomia da vontade, princípio da força obrigatória do contrato e princípio da relatividade subjetivados efeitos do contrato) e os modernos, que estabelecem limites aos primeiros (princípio da função social do contrato, princípio da boa-fé objetiva e princípio da equivalência material). Constata-se que os princípios contratuais se desenvolvem ao longo do tempo adequando-se às necessidades e alterações sociais.

Na concepção clássica de contrato, predominante nos séculos XVIII e XIX, imperava o princípio da autonomia da vontade2

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e da liberdade de contratar e contratual. Isto significava que a pessoa era livre e soberana para decidir se e com quem contratar, de estabelecer o tipo, o conteúdo, a forma e os efeitos do acordo. As partes eram consideradas livres e formalmente iguais, sem privilégios, sem proteção legislativa. E apenas duas limitações poderiam ser impostas: a ordem pública e os bons costumes.

Essa doutrina clássica, seja para a teoria subjetiva, seja para a teoria objetiva, estabelece o predomínio do voluntarismo como fundamento do negócio jurídico, pois em ambas as teorias não se dispensa a exteriorização da vontade para o contrato (OLIVEIRA, 1997). A prevalência da vontade interior (teoria subjetiva ou da vontade) ou da vontade declarada (teoria objetiva ou da declaração) em caso de conflito não afetava diretamente o princípio da autonomia da vontade. A vontade (interna ou declarada) era, pois, soberana.

Esse pensamento clássico pautou-se nos fundamentos filosóficos do individualismo e voluntarismo. Como fundamento ideológico e econômico tem-se o liberalismo. Vedava-se a intromissão estatal no setor privado e os juízes não se intrometiam naquilo que as partes acordaram no negócio jurídico. Ao legislador cabia tão-somente resguardar a manifestação de vontade isenta de vícios.

Todos esses fundamentos que predominaram após a Revolução Francesa atendiam aos interesses da classe burguesa na livre produção e circulação de bens e na aquisição de propriedade3.

Portanto, nos séculos XVIII e XIX, o dogma da vontade preponderou de forma praticamente absoluta, pressupondo a igualdade formal entre todos os sujeitos e a liberdade econômica.

No âmbito do direito pátrio, o Código Civil de 1916 foi inspirado nas doutrinas individualista e voluntarista, consagradas estas pelo Código de Napoleão. O valor fundamental deste Código era o indivíduo. O Direito Privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuação dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e o proprietário, os quais visavam poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens sem restrições ou entraves legais. Por sua vez, o Direito Público não interferia na esfera privada (TEPEDINO, 2001).

Somente no final do século XIX, após a Primeira Guerra Mundial é que desponta uma mudança radical, com alterações econômicas e sociais. Os movimentos sociais, a oposição aos regimes totalitários, o processo de industrialização...

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