Bitcoin: o Estado tem medo de quê?
Autor | Douglas de Castro |
Cargo | Advogado |
Páginas | 24-29 |
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Aemissão e o controle da utilização da moeda pelo Estado é um dos atributos do exercício da soberania. Aspectos relacionados ao ingresso e saída de divisas do território nacional são tratados em suas dimensões tributárias e de segurança nacional – corrupção e lavagem de dinheiro são as justificativas mais citadas para que o Estado adote medidas de controle.
Com o fim da guerra fria, houve aumento significativo da globalização, tornando as fronteiras estatais mais porosas quanto ao fluxo de pessoas, bens e serviços, aumento consequente do fluxo de moedas entre os países e, em alguns casos, a permanência da moeda estrangeira e sua utilização no dia a dia pelas pessoas.
Este fenômeno é o que Benjamim J. Cohen, autor do livro The Geography of Money, chamou de currency waves, ou seja, a rivalidade darwiniana que surge ao se colocar no mercado local a moeda nacional e outra moeda estrangeira que tenha mais força, como o dólar norte-americano ou o euro.
Como resultado desse movimento, o Estado é testado no controle sobre ditas transações visando à tributação e ao combate à ilicitude de sua utilização, p. ex. no tráfico de armas e drogas.
Além das currency waves, a globalização desafia o poder estatal pelo aumento da participação de atores não estatais, seja pela ineficiência, inabilidade ou demora na resposta do Estado às crescentes demandas e ameaças sociais, seja pela velocidade vertiginosa com que a aplicação dessas tecnologias é feita por esses atores vis-à-vis a morosidade do Estado. É justamente no contexto de grande transformação do papel do Estado que surgem as criptomoedas.
Parafraseando Cohen, estamos vivenciando uma verdadeira criptocurrency wave, tendo como caso representativo o bitcoin. Dado o inexorável avanço da tecnologia e da comunicação, a utilização de bitcoin produz um maior senso de pertencimento e participação social e política, já que “enables mere mortals to manufacture trust through clever code”1.
As criptomoedas atingem em cheio um dos atributos mais incensados do Estado: a soberania.
Sua relativização ocorre como consequência de quatro fenômenos básicos, tal como obtempera Gustavo Zagrebelsy: “(1) O pluralismo político-social interno, que se opõe à própria ideia de soberania e de sujeição; (2) A formação de centros de poder alternativos e concorrentes com o Estado, os quais operam no campo político, econômico, cultural e religioso, frequentemente em dimensões totalmente independentes do território estatal, como é o caso das empresas transnacionais e organizações não governamentais; (3)
A progressiva institucionalização de situações que integram seus poderes em dimensões supraestatais que fogem do controle dos Estados individualmente; e (4) A atribuição de direitos aos indivíduos, os quais podem fazê-los valer perante jurisdições interna-
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cionais em face dos Estados a que pertencem”2.
Há, portanto, a desintegração do dinheiro como a fonte de projeção de poder no sistema internacional e no plano doméstico, bem como a incapacidade das instituições internacionais de prover um sistema de governança apropriado e que responda às mudanças e aos fenômenos sociais emergentes.
O dinheiro como construção de uma realidade social fundada no elemento geográfico perde sua importância e passa a ser visto em outra realidade: a virtual.
Na pós-modernidade, há uma transformação ontológica e epistemológica da moeda, pois ela passa a circular no ciberespaço, um locus atemporal em que as percepções de passado e de futuro são secundárias, importando o presente por ser nele que tudo se realiza. Corroborando essa perspectiva, Massey3 assevera que no ciberespaço não é possível determinar o proceder social, a conduta do agente, fazer previsões acertadas, estabelecer critérios, pois não existe uma única ordem, mas a conjugação de todas.
Por sua vez, o entendimento de Lévy4 demonstra que, no ciberespaço, a liberdade não pode ser restringida por uma ordem específica, pois o que se tem é a sociabilidade dos usuários, a vontade de se relacionarem nos mesmos moldes que se verificam no mundo físico. O ciberespaço não pertence à estrutura estatal, resume-se ao desejo manifesto de todos que o acessam.
Doreen Massey caracteriza o que acontece nesse espaço com as seguintes palavras:
“O espaço é mais do que a distância.
É a esfera de configurações de resultados imprevisíveis, dentro de multiplicidades. Isto considerado, a questão realmente séria que é levantada pela aceleração, pela “revolução nas comunicações” e pelo ciberespaço não é se o espaço será aniquilado ou não, mas que tipos de multiplicidades (padrões de unicidade [uniquiness]) e relações serão co-construídas com esses novos tipos de configurações espaciais.”5
O Bitcoin surge, no ano de 2008, em um fórum online de criptografia, cercado de mistérios e instabilidades ao redor do mundo: a crise nos Estados Unidos, que levou ao descrédito das instituições financeiras e à aparição de um personagem cujo nome é derivado de um selo criptográfico ou de um acrônimo: Satoshi Nakamoto6.
A ideia adéqua-se ao espírito libertário dos cyberpunks de criar uma unidade monetária digital, descentralizada, protegida pelo anonimato (ainda que parcial), imune ao resgate por ouro ou mercadoria e, melhor, sem a tutela de qualquer governo.
Ao trazer o tema ao Brasil, o economista Fernando Ulrich define o bitcoin como:
“uma moeda digital peer-to-peer (par a par ou, simplesmente, de ponto a ponto), de código aberto, que não depende de uma autoridade central. Entre muitas outras coisas, o que faz o Bitcoin ser único é o fato de ele ser o primeiro sistema de pagamentos global totalmente descentralizado.
Ainda que à primeira vista possa parecer complicado, os conceitos fundamentais não são difíceis de compreender.”7
O grande segredo, como aqui será demonstrado, está no livro público (blockchain) que, em troca de pequenas taxas, uma vez que não existe a figura do intermediário (ou banco ou instituição financeira), registra as operações utilizando avançado sistema de segurança criptográfica. Garantem os operadores que a nova tecnologia é livre do ataque de hackers, simplesmente porque não existe o conceito de banco de dados centralizado. As informações são descentralizadas, ou seja, todo e qualquer usuário, ao conectar-se, passa também a armazenar informações das...
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