Bionomia, Bioética e Direitos Fundamentais

AutorCarlos Lema Añón
CargoProfessor de Direito, Universidade Carlos III de Madrid, Espanha
Páginas158-175

    Traduzido do original em espanhol Bionomía, bioética y derechos fundamentales, com a gentil permissão do autor.

    Tradução Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

Palavras-Chave: Direitos Fundamentais; Bioética; Bionomia.

Keywords: Fundamental Rights; Bioétchis; Bionomy.

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  1. A expressão bioética tem sido utilizada há um pouco mais de três décadas para agrupar um rol de reflexões e debates mais ou menos homogêneos, bem como para designar uma disciplina acadêmica mais ou menos institucionalizada. O fato de que a institucionalização da bioética seja ainda um processo aberto e inacabado1 – e, por isso, também objeto de disputas acadêmicas –, assim como a autoridade singular na mediação de conflitos e na configuração dos discursos públicos que reclamam para si os “especialistas em bioética”, e a existência de uma pluralidade de aproximações e paradigmas discursivos – às vezes francamente incompatíveis entre si –, junto com o entrecruzamento de numerosas disciplinas acadêmicas consolidadas que fazem da bioética uma subespecialidade (de diversos ramos como a ética, a medicina, a biologia, a filosofia, a teologia ou o direito), têm contribuído para a ambigüidade e vagueza do termo bioética.

    Neste sentido, seria preferível a partir de um primeiro momento propor uma denominação alternativa, bionomia, não para eliminar a ambigüidade e vagueza do termo bioética, mas para tornar seu sentido mais preciso e para aproximar estes problemas que serão discutidos nas páginas seguintes. Utilizaremos a denominação de bionomia para nos referirmos à discussão das repercussões sociais dos avanços das ciências da vida e da medicina a partir de uma perspectiva em que se conjuguem pelo menos os aspectos éticos e jurídicos. A observância dos aspectos jurídicos junto com os morais no tratamento dessas questões é tanto mais necessário quando se pretende relacionar todos esses assuntos com a noção de direitos fundamentais. A evidência de que a “bioética” que teria de ser mantida não podendo contrariar os aspectos jurídicos, conflita, em certa medida, com o próprio nome tradicional da matéria: “bioética”. Na própria denominação “bioética” não há qualquer repercussão da vertente jurídica, a não ser quando se refira a uma ética aplicada, neste caso à vida, à medicina e às ciências da vida. Caso seja aceita aPage 159 denominação alternativa de bionomia, esta teria, em princípio, duas partes: “bioética” e “bionomia jurídica”, que, sem dúvida, teria de ser complementada com a “biopolítica2”.

    Na minha idéia de “bionomia” e na inclusão necessária da vertente biopolítica estaria também implícita a idéia de que esta disciplina há de romper amarras com as versões reducionistas da bioética, que buscam aproximar esta de uma gestão tecnocrática dos conflitos que são gerados neste âmbito.

  2. Bom, independente da denominação utilizada ou ainda da orientação de nossas reflexões, porque tem sido comum falar de bioética? Porque têm aumentado exponencialmente o número de publicações, instituições, cursos, títulos, especialistas em bioética3? A palavra “bioética” foi cunhada pelo oncologista norteamericano Van Rensselaer Potter (19714): como um princípio com um caráter mais de “ciência da superveniência” de tipo ecológico, ou como ponte entre as culturas das ciências naturais e humanidades. Contudo, desde então, a “bionomia” tem-se centrado com freqüência nos problemas éticos e jurídicos derivados do cuidado da saúde e das ciências biomédicas: a chamada bionomia “global” que de alguma forma retoma o ponto de vista de Potter.

    O certo é que claramente desde a década de 1960, os problemas normativos relativos ao cuidado da saúde e ao desenvolvimento das ciências biomédicas (e emPage 160 geral às ciências da vida) têm ocupado um lugar cada vez mais destacado nos assuntos públicos. Provavelmente seria arriscado pretender explicar a origem destas preocupações em poucas linhas, de modo que, humildemente são assinalados alguns fatores relevantes:

    1. Descobertas e avanços nas ciências biomédicas e na medicina clínica. Nos anos 1960 ocorreu uma série de avanços médicos espetaculares, cuja característica mais chamativa foi a permissão de manter vivos pacientes que de outra forma teria morrido. Pense-se, neste sentido, nas máquinas de diálise, nos ventiladores (pulmonares) artificiais ou nos transplantes de órgãos. Estes avanços, sendo positivos sem ambigüidade, trazem, sem embargo, problemas de distribuição, na medida em que são terapias e tecnologias caras e escassas. Se um hospital tem apenas uma máquina de diálise, por exemplo, ou se dispõe somente de um número limitado de órgãos para transplante, é necessário decidir quem será beneficiado dentre os vários candidatos possíveis. Estas novas tecnologias, portanto, fazem explícita a necessidade de tomar decisões de vida ou morte e de definir critérios justos (ante a evidência de que os critérios que de fato funcionam, com freqüência se baseiam em prejuízos – por exemplo: raciais – ou são simplesmente arbitrários5). De outro modo, estas e outras tecnologias, ao permitir prolongar a vida dos pacientes, ainda que nem sempre em condições ótimas, também tornarão estimulante a questão da tomada de decisões no fim da vida e todo conjunto de problemas relacionados com a eutanásia. Mas não apenas estes avanços são relevantes para que os assuntos bionômicos chamem a atenção pública. As novas tecnologias reprodutivas permitem (sobretudo desde a década de 1980, embora já existisse antes) novas formas de relação entre pais e filhos, como, por exemplo – dentre muitos outros –, o nascimento de um filho que não tenha relação genética com a mulher que gesta. E, inclusive, mais relevantes desde o ponto de vista social, que os resultados espetaculares das tecnologias reprodutivas e também no campo da reprodução humana se produzem descobertas que permitem dizer conscientemente sobre quanto ter ou não ter filhos: é o caso da anticoncepção, da possibilidade de realizar abortos com segurança, ou, em menor medida, das técnicas de diagnóstico pré-natal. Por fim, ainda sem ser exaustivo, não se pode deixar de mencionar o que se supõe ser a revolução genética. Desde inícios dos anos 1970 se desenvolve a tecnologia do DNA recombinante, ou, o que é o mesmo, começa a ter lugar a engenharia genética.

    2. Conhecimento de abusos na investigação científica e periculosidade das aplicações tecnológicas. Pode-se dizer que nos anos posteriores à segunda guerra mundial tem-se manifestado uma vertente obscura no desenvolvimento científico e tecnológico, ou, com maior precisão, tem-se aumentado a suspeita de que talvez tenha pouco fundamento a confiança em que o progresso científico, tecnológico e material da humanidade está acompanhado de um progresso moral – tal comoPage 161 parecia supor-se desde a Ilustração6. A consideração mais evidente é a de que as atrocidades cometidas pelos nazistas com os prisioneiros dos campos de concentração e de extermínio, nalguns casos pretensiosamente em nome do progresso científico e da experimentação7. A consciência de tais atrocidades é o antecedente de diferentes declarações internacionais para regular os experimentos médicos com pacientes humanos. Mas talvez tenham sido mais perturbadoras outras duas constatações. A primeira é que este tipo de abusos não era exclusivo de regimes totalitários: também em países tão democráticos como Suécia e os Estados Unidos da América – para citar apenas dois exemplos – ocorreram abusos deste tipo (experimentos brutais com membros da minoria afro-americana, exposição a radiações, esterilizações em massa etc.8). A segunda é a consciência do perigo, não dos abusos ou dos maus-usos da tecnologia inclusive em contextos democráticos, e sim da periculosidade intrínseca (em termos de riscos, de acidentes, conseqüências imprevisíveis etc.) de tecnologias tais como a nuclear ou a engenharia genética. A consciência ecológica sobre os limites do crescimento ou sobre as consequências ambientais da utilização de determinadas tecnologias podem também ser incluídas neste ponto.

    3. Mudanças na moralidade positiva. Algumas das mudanças que influíram no nascimento da bioética como disciplina tiveram mais espaço a nível ideológico ou cultural nos países centrais do capitalismo. Ainda que se trate de um nível muito mais difuso e difícil de quantificar, creio ao menos que podem ser mencionados dois fenômenos: por um lado, a aparição de uma nova forma de conceber a vida e a morte; por outro lado, a crise do chamado “paternalismo médico”. No que diz respeito ao primeiro, às vezes tem-se querido falar de uma mudança da ética da sacralidade da vida para uma ética da qualidade de vida, normalmente atribuindo um valor positivo ou negativo a esta transformação9. Em qualquer caso, a idéia que a vida humana é o valor supremo entra em crise ante a evidência, por exemplo, de que a medicina pode chegar a manter pessoas com vida em condições, por assim dizer, pouco humanas. O caso da progressiva aceitação e reivindicação do direito de dispor da própria vida em situações de grave enfermidade é talvez o caso mais claro em que o valor de manter a vida humana a qualquer preço se perfaz com a afirmação de outras considerações, dentre as quais a da autonomia para decidirPage 162 como viver e como morrer. Esta referência à autonomia nos leva à crise do chamado “paternalismo médico” ou, em uma definição genérica, a crise da concepção tradicional baseada na “recusa a aceitar ou consentir os desejos, opções e ações das pessoas que gozam de informação suficiente e capacidade adequada, para o próprio benefício do paciente10”. Diante da tradição do paternalismo médico, afirmase a idéia de que os pacientes não podem continuar passivos na medida em que são sujeitos autônomos e – sobretudo – titulares de direitos enquanto pessoas, enquanto cidadãos e também enquanto pacientes (direitos dos pacientes).

    4. Preocupação pelo crescente poder dos meios científicos e técnicos. De alguma forma, pode-se...

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