A Bioética e os novos direitos nas questões do início e do fim da vida humana. Uma nova prática científica a partir de outro nível ético

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas41-50

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A partir de conceitos teóricos e clínicos que tocam a intimidade dos seres humanos, indagamos então nas nossas pesquisas em que a teoria psicanalítica pode contribuir ?s relexões jurídicas bioéticas e às políticas sociais da pós-modernidade, tempos em que a medicalização dos corpos se impõe para o viver e o morrer.

Antes de abordarmos ambas as questões quanto aos novos direitos alusivos ao início e ao im da vida humana neste primeiro capítulo introdutório, para contextualizar o surgimento da "Homoparentalidade" como uma das novas modalidades de família, ressaltamos sucintamente que apesar das recentes legislações em alguns países da Comunidade Europeia e da forte pressão midiática que gira em torno de diversos fatos de sociedade, até o momento as leis francesas resistem a certas liberalizações.

Ainda que a França tenha aprovado recentemente o casamento civil homossexual por meio da Lei nº. 2013-404, de 17 de maio de 2013, em decorrência de forças políticas associativas, mesmo a despeito de fortes opiniões cientíicas e sociais contrárias, ela ainda não normatizou as complexas questões de-correntes das demandas de lésbicas pela Procriação Assistida Medicamente. Esta técnica médica, desde 1994, somente é autorizada para casais heterossexuais, por tratar-se de problema decorrente de esterilidade de origem médica, e não de impossibilidade de procriar decorrente de preferência ou opção sexual.

Tendo-se em vista que há alguns anos a "Adoção" na França foi aberta para pessoas solteiras heterossexuais, estendendo-se implicitamente para homossexuais declarados celibatários, consequentemente, a atual lei que autorizou o casamento homossexual autorizou, também, a "Adoção de criança" pelos dois "esposos(as)" do mesmo sexo, assim como a "Adoção" de ilho de um dos cônjuges.

Contudo, a nosso ver, apesar de esta lei ter determinado a retirada, em alguns textos de leis ordinárias, das palavras "pai e mãe" substituindo-as por "parentes" ou "pais", ou ainda, "marido e mulher" substituindo-as por "esposos" no plural, ela não conseguiu excluir a referência à relação natural e coerente à bissexualidade macho-fêmea na procriação.

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Esta questão é complexa, pois se trata de discurso e de níveis de construção de linguagem. O lugar e a função simbólica de cada pessoa numa família têm sempre um ponto de relação com o real do corpo físico. A mãe é uma mulher e o pai é um homem, assim como a avó é uma mulher e o avô é um homem e assim por diante, e dentro dessa coerência é então possível a tradução de termos em várias línguas. Justamente por ser assim para os seres falantes, seguindo-se a coerência necessária da linguagem com os corpos aos quais ela se refere, a ordem genealógica apresentada no Direito Civil não é pura convenção, ela é determinada pela profunda e coerente relação da condição sexuada e heterogênea (bissexual) da existência humana que ainda diz respeito à maioria a qual ainda é gerada pela sexualidade natural bissexuada. Dito de outra forma, esta lei francesa omitiu palavras (pai/mãe, marido/mulher), mas não conseguiu resolver as complexas questões de parentesco e filiação decorrentes de relações homos-sexuais. Tanto é assim que tais modiicações nominativas, somente em leis ordinárias, não concernem aos Atos de Estado Civil e nem ao Livro de Nascimento genealógico de cada cidadão francês.

Além do mais, a demanda de casais estéreis heterossexuais, assim como de casais homens homossexuais, a proceder pela (GPA) "gestação por outrem" (mãe de aluguel) continua não sendo permitida na França, e, para os casais que a fazem em outros países e que retornaram com suas crianças, continuam os sérios problemas alusivos aos respectivos registros civis, cujas soluções notariais são obscuras tanto na legislação como na jurisprudência. A França não libera certiicados de nacionalidade francesa para as crianças nascidas de mãe portadora no estrangeiro. O movimento feminista, por sua vez, critica a GPA afirmando que ela dá aos homens a possibilidade de dispor do corpo das mulheres, tratando-se de uma indústria de ventres femininos.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo, apelidado de "casamento para todos" foi autorizado na França pela recente Lei no. 2013-404 de 2013, mas desde 1999 os casais homossexuais, assim como os heterossexuais têm também a possibilidade, ao invés de se casar, de assinar o Pacte Civil de Solidarité (PACS = Pacto Civil de Solidariedade), diante de um tribunal de instância ou de uma embaixada. Ou ainda, de se estabelecer em concubinato (uma união de fato entre duas pessoas maiores, desprovida de todo estatuto) perante a prefeitura, ato este que praticamente não tem efeitos civis, quando muito auto-riza encargos junto ao sistema de saúde.

O Pacto é proibido entre pessoas já casadas ou pactuadas, entre ascendentes, descendentes ligados em linha direta ou colateral até terceiro grau. Ele não permite, também, a "adoção de criança" conjunta entre os parceiros. Apesar de ele dar um statul de casal aos parceiros, seja qual for a orientação sexual, ele não cria relações familiares com efeitos de filiação e autoridade parental. Assim sendo, nenhum des-ses enquadramentos, o concubinato administrativo ou o pacto jurídico (o qual oferece mais leveza que o instituto do casamento), oferece as mesmas garantias jurídico-administrativas, sucessórias e tributárias, que o casamento regulado pelo Código Civil.

Observamos que essas transformações institucionais vêm surgindo na França desde a década de 1980, com a descriminalização da homossexualidade e depois com a sua despatologização pela Organização Mundial de Saúde. E, ainda que a batalha política e social pelo reconhecimento do casal homossexual já tivesse encontrado uma saída legal por meio do PACS - uma das duas formas de união civil na França, Lei nº. 99-944, de 15 de novembro de 1999 - esta lei, concomitantemente ainda em vigor com o casamento civil, regulamenta a união estável tanto para pessoas com práticas homossexuais como heterossexuais, mantendo, porém, a diferença com relação ao instituto do casamento previsto no Código Civil. Apesar de esta lei do PACS enquadrar juridicamente as uniões estáveis em geral, ela não satisfaz as reivindicações de constituir família de parte de certas minorias homossexuais. Essas minorias visavam - e de modo implícito conseguiram por meio da recente Lei no. 2013-404, de 2013, que autorizou o casamento também para pessoas do mesmo sexo -, uma modiicação simbólica normativa mais profunda, jamais vista na história do Direito Civil, que viesse a instituir suas práticas sexuais homossexuais como legais e, ouso dizer, até mesmo obrigatórias no matrimônio.

Airmamos, então, que o PACS, em vigor desde 1999, representa no Direito Francês uma das primeiras expressões de uma lógica relativa menos universalista. Esta lei regra os direitos dos parceiros tanto homossexuais como heterossexuais, e garante a liberdade dos que não pretendem se casar nos moldes tra-

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dicionais. Mantendo a diferença entre os institutos do casamento e da união estável esta lei, a nosso ver, abre um novo caminho jurídico para a subjetividade singular, e acertadamente, ainda dentro dos limites da licitude do respeito à procriação natural e bissexuada como base da genealogia e da família.

Da mesma forma, no que diz respeito aos direitos dos pacientes em im de vida, a Lei francesa nº. 2005-370, de 22 de abril de 2005, apesar de acolher a vontade dos pacientes mediante "diretivas antecipadas" abrindo um espaço para análise concreta, caso a caso, da "interrupção da insistência de tratamento" médico, ela mantém o limite legal que constitui o "homicídio" sem descriminalizar ou despenalizar a eutanásia por meio do suicídio assistido consentido. Assim, o direito francês não autoriza a eutanásia, mas se volta, antes de mais nada, a uma aproximação dos "cuidados paliativos" dos pacientes em im de vida. Esta lei busca um equilíbrio da relação médico-paciente através da "colegialidade e traçabilidade" da decisão médica.

Ainda que esta lei francesa concernente aos direitos dos pacientes em inal de vida também represente, a nosso ver, uma das primeiras expressões de uma ética menos universalista, acolhendo a vontade dos pacientes e abrindo um novo caminho jurídico para a subjetividade, dentro dos limites da licitude do respeito à vida, o governo francês vem sofrendo, igualmente, pressões de grupos minoritários e da mídia para legalizar o "suicídio assistido" medicamente.

Portanto, tais complexidades sociais e políticas reforçadas pelas novas tecnologias medicais - aplicadas sobre o corpo humano, tanto para o início da vida como para o im da vida, a serviço do progresso e do capital -, vêm forçando o sistema do Direito a novas tomadas de posição quanto à Bioética.

Nesse contexto de liberalismo generalizado, nossos estudos transdisciplinares, a nível internacio-nal, em Direito Médico demonstram que é necessário aprofundar as relexões sobre "o que é a Lei enquanto instância simbólica", visto que ela se constrói num processo profundo de busca de equilíbrio entre as tensões e os conlitos individuais e coletivos, em níveis conscientes, mas, também, inconscien-tes. Nossas pesquisas destacam que é a partir da consideração da lógica inconsciente, ou seja, de outro nível ético de alteridade que poderá surgir uma nova prática cientíica.

Então, nesta busca de novos fundamentos para o arejamento e equilíbrio entre "ciência da moral" e "moral das práticas cientíicas", cabe aos proissionais tanto do Direito como das áreas médicas se inter-rogarem: a quais interesses as regras jurídicas e as...

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