Bioetica, biopolitica e biodireito: novas conexoes ou antigos ideais?/Bioethics, Biopolitics and Biolaw: New Connections or Former Ideals?

Autorde Pinho, Antonio Augusto M.

Os termos bioetica, biopolitica e biodireito sao muitas vezes utilizados como se referindo a um nucleo de significacao comum onde nao se costuma identificar nenhuma incompatibilidade entre seus significados. Os neologismos, engendrados a partir do prefixo "bios", parecem remeter a etica aplicada a vida ou, mais especificamente, as ciencias da vida e as praticas medicas, bem como a regulamentacao das politicas publicas e privadas referentes as atividades de pesquisa e ao exercicio da clinica medica e de seu universo(exames laboratoriais; relacao medico-instituicao, medico paciente etc..), bem como as decisoes administrativas e judiciais proferidas neste ambito.

Neste sentido, a Bioetica, como um campo especifico do conhecimento humano, tem sua data de nascimento marcada por dois acontecimentos: a publicacao do livro Bioethics: bridge to the future (Bioetica: ponte para o futuro), de autoria do bioquimico e oncologo Van Rensselaer Potter, professor da Universidade de Wisconsin, no qual resgata e desenvolve a definicao proposta em artigo publicado no ano anterior, cujo titulo a exprime Bioethics:the Science of Survival (PESSINE, L., 2013;21(1):9-19), e a criacao, pelo obstetra Andre Hellegers, do Joseph e Rose Kennedy Institute for Study of Human Reproduction and Bioethics, (2) na Universidade de Georgetown, onde lecionava, ambos no mesmo ano de 1971 (JUNGES, R., 1999: 16-17).

Talvez, por esta dupla paternidade oficial - a de pesquisadores e medicos, na area de saude -, alem de sua vinculacao a um instituto de pesquisas medicas, o significado de bioetica, em contexto norte americano, acabou quase por se confundir, num primeiro momento, com o da etica medica, o da antiga deontologia, muito embora sua definicao fosse bem mais abrangente, conforme se constata, na primeira edicao da Enciclopedia de Bioetica. A bioetica e ai definida como sendo:".. o estudo sistematico da conduta humana na area das ciencias da vida e da saude, enquanto esta conduta e examinada a luz de valores e principios"; quanto ao seu alcance, constata-se que: "A bioetica engloba a etica medica, porem a ela nao esta limitada A bioetica constitui um conceito mais amplo, com quatro aspectos importantes: 1) compreende os problemas relacionados a valores que surgem em todas profissoes de saude(...); 2) aplica-se as investigacoes biomedicas(....), independentemente de influirem ou nao de forma direta na terapeutica; 3) aborda uma ampla gama de questoes sociais, como as que se relacionam com a saude ocupacional e internacional e com a etica do controle de natalidade, entre outras; 4)(...)compreende questoes relativas aos animais e das plantas, por exemplo, no que concerne as experimentacoes com animais e as demandas ambientais conflitivas "( REICH, W.T,1978: XIX, apud JUNGES, 1999:20).

A vasta compreensao da bioetica, exemplificada nos distintos usos dos quais resultam seus diversos significados, sugere a retomada do topico do rol dos direitos humanos fundamentais e de suas geracoes ou dimensoes (3), reescrita sob o prisma do direito a vida - primeira dimensao - desdobrados nos direitos de segunda, terceira e, quica, quarta dimensoes: o direito de exigir a prestacao adequada de servicos na area de saude, o direito a preservacao do meio ambiente de forma compativel a uma boa qualidade de vida e o direito de protecao dos animais contra maus tratos. Mais sugere, fundamentalmente, que a bioetica teve a pretensao, em seu nascimento, de subordinar a politica e o direito ao seu proprio campo, tornando o conceito de biopolitica parasitario, em grande parte, de suas pretensoes normativas e, consequentemente, retardando o aparecimento do biodireito, condicionando-o aos propositos de efetivacao de seus proprios principios. Ou seja: foi preciso aguardar o amadurecimentos das questoes e problemas eticos decorrentes do impacto das novas biotecnologias nas ciencias da vida e na medicina, tanto no que concerne a pesquisa, quanto as praticas clinicas, para a emergencia do biodireito.

O carater parasitario da biopolitica, o qual viria, no limite, a se confundir com o biodireito, ambos concernindo aos processos normativos e decisorios nas instancias administrativas e judiciais em questoes relacionadas as ciencias da vida e as praticas medicas, nao teria outra finalidade senao a de zelar pela boa aplicacao dos principios da bioetica e editar normas adequadas a tais principios. Neste sentido, foi por intermedio de seu Conselho Nacional de Saude, que o Brasil recepcionou e fixou os principios de bioetica na Resolucao 196/96, em "diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas com seres humanos", fundamentando-se "(...) nos principais documentos internacionais que emanaram as declaracoes e diretrizes sobre pesquisas que envolvem seres humanos(...)", bem como, evidentemente, na Constituicao de 1988 e da legislacao infraconstitucional pertinente. Estes principios aparecem claramente formulados no terceiro capitulo da Resolucao, nos seguintes termos:

III.1 - A eticidade da pesquisa implica em: a) consentimento livre e esclarecido dos individuos-alvo e a protecao a grupos vulneraveis e aos legalmente incapazes (autonomia). Neste sentid, a pesquisa envolvendo seres humanos devera sempre trata-los em sua dignidade, respeita-los em sua autonomia e defende-los em sua vulnerabilidade; b) ponderacao entre riscos e beneficios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficencia), comprometendo-se com o maximo de beneficios e o minimo de danos e riscos; c) garantia de que danos previsiveis serao evitados (nao maleficencia); d) relevancia social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimizacao do onus para os sujeitos vulneraveis, o que garante a igual consideracao dos interesses envolvidos, nao perdendo o sentido de sua destinacao socio-humanitaria (justica e equidade)" (4) (os grifos sao nossos). Autonomia, beneficiencia (e nao maleficiencia), justica (e equidade), portanto, sao os tres principios em torno dos quais a bioetica se estrutura. Os ecos da filosofia pratica de I. Kant(1724-1804) na enunciacao do principio da autonomia, explicitado em termos de dignidade e ancorado na protecao de vulnerabilidade de grupos e de individuos legalmente incapazes, evocam um dos enunciados do imperativo categorico que expressa, segundo o filosofo alemao, a lei moral, a saber: "Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim nunca meramente como meio" (2009:245).

Impossivel e desnecessario saber se, historicamente, os diversos documentos emitidos por uma enorme variedade de orgaos, organismos e conselhos nacionais e internacionais, que trataram, ou tratam, de temas de bioetica, adotaram ou adotam, ainda que alusivamente, por intermedio de seus membros, a referencia kantiana como referencia privilegiada para estas questoes. Fato e que o principio da dignidade da pessoa humana tem sido, frequentemente, evocado, por constitucionalistas e juristas-filosofos, como um dos nucleos axiologicos fundamentais das constituicoes dos estados democraticos de direito e tambem para resolucao dos conflitos resultantes da implementacao das novas biotecnologias.

Aqui o filosofo de Konigsberg, em maior ou menor grau e de forma explicita ou implicita, atraiu as atencoes de teoricos de todas as areas, da Teologia ao Direito, passando pela ciencias medicas e da vida a Filosofia. Isso a tal ponto que, na...

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